sexta-feira, dezembro 21, 2007

A Lenda de Beowulf


Não há que subestimar a importância da exibição em 3D de A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007). É muito fácil, para o nosso gosto contemporâneo, desprezar esse recurso como uma apenas “pirotecnia” com função exclusivamente comercial: “Os efeitos especiais são arrebatadores, mas o roteiro do filme peca em...” – esse seria um lugar comum por demais... comum, na nossa crítica atual. No entanto, por que é que um filme não poderia ter, como dado de maior importância artística, justamente os chamados “efeitos especiais”? Porque eles estão sempre condicionados ao intuito comercial de atrair mais e mais público pagante? Mas Georges Meliès não foi, neste particular, o primeiro prestidigitador do cinema – e até hoje um dos maiores? Será que vamos desqualificar as experiências dele também?

O que eu gostaria de propor é o seguinte: o fator comercial tem a sua pertinência na descrição, na explicação e até mesmo, em alguns casos, na justificação de certos fenômenos cinematográficos; porém, não há qualquer relação lógica em usá-lo como argumento num juízo de valor a respeito de um filme, a não ser que se paute por uma questão de gosto, e de um gosto estritamente pessoal. Os efeitos especiais em um filme não serão dignos de desprezo por serem construídos sob um propósito “comercial”, mas se forem – em si mesmos – construídos de uma forma esteticamente ruim. Portanto, chamo a atenção para o que é realmente mais importante, algo que vez ou outra é esquecido: a experiência cinematográfica em si. Não quero saber se A Lenda de Beowulf é o mais novo “blockbuster” da temporada; o que interessa é que “Beowulf” resgata no público contemporâneo o olhar fascinado e assustado que tinham as platéias de Lumière ou de Meliès.

Eu nunca tinha visto, até então, uma película em 3D; por isso, o que estou prestes a dizer pode ser inexato (para dizer o mínimo): “Beowulf” pode ser considerado um dos momentos fundadores do Cinema. Um divisor de águas, um experimento que pode ou não abrir caminhos, mas que deixará sua marca. Digo isso não apenas me referindo à 3ª dimensão, mas ao cada vez mais rico processo de animação empregado no filme: a digitalização em computação gráfica da figura de atores reais, o que permite trabalhar os efeitos especiais em outro e altíssimo nível. “Beowulf” promove o resgate da experiência cinematográfica mais elementar, experiência essa que tem se tornado cada vez mais rara desde que o cinematógrafo deixou de ser uma novidade tecnológica quiçá curiosa, há praticamente 100 anos. No entanto, a ciência e a tecnologia devem se colocar sempre em movimento, buscando novas maneiras de reinventar a magia do cinema puro. Repito: não há que subestimar essa demanda.

“Beowulf” nos faz repensar toda a linguagem da sétima arte e da arte representativa em geral. A fotografia do cinema sempre se baseou nos princípios da construção pictórica dos quadros pintados em 2D. Mas quando temos a ponta da espada de Beowulf colocada a poucos centímetros do nosso rosto, saltando literalmente para fora do quadro em perspectiva, não conseguimos deixar de lado a tentação de relacionar esse fenômeno com a “perspectiva” inventada na pintura por Brunelleschi, lá pelos idos do século XV. Se aquilo foi considerado a “invenção da realidade”, agora temos a reinvenção da realidade. Trazendo à tona a terminologia especificamente cinematográfica, o nome “fotografia” – para falar da composição da imagem mostrada na tela, perde a exatidão, uma vez que o espectador torna-se como que uma testemunha de corpo presente aos fatos. Meu ceticismo natural fez com que entrasse na sala de exibição sem botar muita fé na tecnologia em 3D (como eu disse, para mim era algo totalmente desconhecido). Mas bastou ver o primeiro minuto de filme para eu sentir o que é “a coisa” de verdade.

A experiência não é como se a platéia estivesse dentro do cenário, envolvida por todos os lados. É mais como se o filme fosse um holograma exibido à nossa frente, o ponto de vista do espectador, obviamente, mantém-se sempre o mesmo. Usando uma imagem natalina, eu diria que “Beowulf” é como um presépio altamente sofisticado. Em dois ou três momentos do filme, eu tive o forte impulso de estender a mão para pegar uma moeda ou uma pedra à minha frente. Em outro momento, por puro reflexo eu joguei para trás o meu rosto quando um galho apareceu súbita e rapidamente para acertá-lo. Tudo isso pode parecer ridículo aos cinéfilos intelectualizados de hoje em dia, amantes de Bergman e de Godard; mas essas questões são as mais essenciais e originais do Cinema em si. Temos de recorrer aos primeiros teóricos da sétima arte, fascinados com a sua magia: Ricciotto Canudo, Louis Delluc, Germaine Dulac, Bela Balazs, Abel Gance, Jean Epstein, Leon Moussinac, Lotte Eisner, Rudolf Arnheim, Serguei Eisenstein.

Pegue-se, como exemplo, as profundas e sutis reflexões de Bela Balazs, que tanto destacaram a importância estética e dramática do primeiro plano (“close-up”), como elemento mais importante da sétima arte. Ou ainda, num período posterior, a defesa apaixonada que André Bazin faz da profundidade de campo (que mantém no mesmo foco nítido tanto os objetos mais “próximos” quanto os mais “distantes” da tela). “Beowulf” praticamente reinventa o primeiro plano e a profundidade de campo. Imagine Bazin e Balazs assistindo a um filme desses. Faça-se a ligação daquele impulso que eu mencionei no parágrafo anterior ao impulso que tiveram os espectadores daquela lendária primeira exibição de “L’Arrivée d’un Train à la Ciotat”, dos irmãos Lumière: a platéia quis fugir do trem que estava para “sair da tela” e “atropelá-la”.

Enfim, a técnica de “Beowulf” em 3D é magnífica e altamente valorosa em si mesma. Mas é, naturalmente, uma técnica ainda pioneira – conseqüentemente, rara e insipiente. Assim, esperamos ansiosamente o desenvolvimento natural dessa estética, pensando no momento em que o 3D não será algo fascinante apenas em si, mas integrado organicamente, dramaticamente, significativamente ao conteúdo do filme, ajudando a expressá-lo de maneira poética, complexa e sutil. Essa integração semântica entre forma e conteúdo – na qual ambas as instâncias possuem valor em função uma da outra, e não um valor apenas em si mesmas – é o que faz as grandes obras de arte. Por exemplo, imagine uma obra-prima da estética do primeiro plano, como A Paixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, exibida em 3D. Ou uma obra-prima da estética da profundidade de campo, como o Cidadão Kane de Orson Welles, mostrado em três dimensões. É claro que sempre haverá algum “Velho do Restelo” (leia os Lusíadas de Camões) pronto para jogar um balde de água fria nisto tudo, mas tais reações fazem parte da dinâmica das mudanças históricas nas artes.

Agora, vamos ao resto – “last but not least”. A Lenda de Beowulf é a mais nova produção dirigida por Robert Zemeckis (de O Expresso Polar, animação em 3D da mesma natureza que “Beowulf”; Náufrago; Forrest Gump e a série De Volta para o Futuro). O elenco conta com atores de quilate do tipo de Anthony Hopkins, John Malkovich e Angelina Jolie. A história é a adaptação de uma graphic novel (romance em quadrinhos) escrita por Neil Gaiman, autor famoso da “nona arte” que também co-assina o roteiro do filme. Mas a obra em quadrinhos é, por sua vez, uma versão da antiga canção de gesta Beowulf (escrita entre os séculos 8 e 10 da era cristã), um dos mais antigos textos escritos em Língua Inglesa, numa forma pra lá de arcaica. Canção de Gesta é o nome dado a antigos poemas heróico-épicos escritos no início da Idade Média e que, posteriormente, darão origem às famosas Novelas de Cavalaria. Apesar do lado épico, o Beowulf do filme não é exatamente uma história para crianças. A obra literária é rica em temáticas shakespearianas como: as relações familiares e suas intrigas, questões políticas e religiosas (tal a cristianização da Escandinávia pagã).

O roteiro de Gaiman acrescenta algumas discussões mais modernas, como a diferença entre mito e realidade. Nesta história do grande guerreiro Beowulf, cabe aquela famosa frase de O Homem que Matou o Fascínora, de John Ford: “Quando a lenda se torna fato, imprima a lenda”. O filme de Zemeckis é ainda carregado de fortes conotações sexuais. Assim, há grandes diferenças entre o poema original e este filme, e é bom que o espectador saiba disso. No entanto, as diferenças são positivas. Principalmente na cena final, no que ela tem de dramaticamente ambíguo e no trabalho que faz do primeiro plano (lembrando que a exibição é em 3D) em tomadas múltiplas e lentas, contribuindo para o poder de ambigüidade e de sugestão. Aqui, o filme se aproxima de uma arte de nível efetivamente superior.

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