domingo, dezembro 16, 2007

O Preço de Um Homem


Muito já foi dito sobre a utilização que os faroestes de Anthony Mann fazem dos cenários naturais. Mas tal “utilização” – que vai muito além de uma mera utilização – é tão maravilhosa que nunca será demais falar mais um pouco disso. Em O Preço de Um Homem (“The Naked Spur”, EUA, 1953) a pequenina figura humana dos personagens, com suas mesquinharias, suas ganâncias, suas intrigas, suas mentiras, suas frustrações, seus medos, e principalmente suas lutas, contrasta magnificamente com a grandeza, a beleza pura e nobre da paisagem natural do centro-norte dos EUA, caracterizada por montanhas rochosas, florestas de coníferas e corredeiras d’água.

Muito se fala sobre o cenário como personagem em filmes. Mas é em Anthony Mann que esse recurso torna-se excepcional, com grande rigor formal, carregado de significado e de dramaticidade. Em “The Naked Spur”, mais do que um personagem ativo e independente, a natureza é manipulada estrategicamente como se fosse uma arma por cada pessoa ali na luta de uns contra os outros; da mesma maneira como se manipulam uns aos outros. No fundo, a natureza e o ser humano, no filme, não passam de instrumentos. Ainda no contraste entre a grandeza daquela e a pequenez deste, entre a beleza pura daquela e a feiúra moral deste, cabe no final da história uma ironia de ares moralizantes: é a natureza quem fica com o prêmio não-reclamado; só a terra (ou as águas) cobrará o preço de um homem. “Do pó vieste e ao pó retornarás.”

Assim, o tema mais profundo de O Preço de Um Homem é a relação deste com o mundo natural. Como nas grandes obras de arte, esse tema é encadeado significativamente com vários outros, como a relação dos homens entre si e suas ridículas questões humanas – ridículas se forem postas em perspectiva com as questões da ordem da Natureza, que é o que o filme faz o tempo todo, com grande beleza cinematográfica. No enredo, acompanhamos o drama de Howard Kemp (James Stewart), veterano da Guerra Civil que perdera a mulher e as terras. Ele está à caça do assassino fugitivo Ben Vandergroat (Robert Ryan), pois a recompensa de 5 mil dólares por sua captura – vivo ou morto – é o bastante para Kemp reaver seu rancho.

Nesta jornada, ele encontra um velho e frustrado minerador de ouro (Jesse Tate, vivido por Millard Mitchell) e o contrata para ajudar na busca pelo bandido. Logo em seguida, aparece um ex-militar, Roy Anderson (Ralph Meeker) – ainda vestindo o uniforme da Cavalaria – que vem de receber uma baixa desonrosa (por um comportamento moral “instável”). Os três acabam encontrando e capturando Bem, junto de uma jovem e inocente garota que o acompanha (Lina Patch – Janet Leigh). Quando Roy e Jesse descobrem o preço que tem a cabeça de Ben – informação essa que Howard Kemp tinha estrategicamente escondido – a verdadeira tensão começa. Assim, a viagem por montanhas de rochas íngremes, duras e escarpadas, atravessando corredeiras violentas e florestas escuras para levá-lo de volta a algum entreposto da civilização e entregá-lo à justiça (pela qual ele será enforcado) não ocorrerá sem alguns percalços, para dizer o mínimo.

O título original é bastante poético: “spur” denota “espora”, mas pode ter as seguintes conotações: impulso, estímulo, ambição, vaidade, incentivo, ou seja, algo que nos coloque em movimento assim como a espora ao cavalo. Desse modo, o título poderia se traduzir por: “O impulso nu”, “A ambição desnudada”, etc. Revelador, não? Porém, o título em Português é dotado daquela dramaticidade explícita, chocante e trágica comum em nomes de faroestes - basta lembrar de “Rastros de “Ódio” (The Searchers, ou, mais exatamente, “Aqueles que procuram”) ou de “Os Brutos Também Amam” (Shane, que é apenas o nome do protagonista). Aqui, temos “O Preço de Um Homem”, que, não obstante, já revela um dos aspectos principais da história: a reificação do indivíduo. Ben Vandergroat não é um homem de verdade, ele é apenas um saco de dinheiro para Howard Kemp e os outros. Exceto para Lina. No final, é a visão dela que prevalece. Boa parte da tensão dramática, incluindo os diálogos, é construída com base no fato de que Ben é, desde o começo, um cadáver ambulante – ou melhor, um cadáver carregado pelos demais (cadáveres também, em certo sentido). Ben já está morto, condenado desde antes de sua primeira aparição na tela. Toda a seqüência final torna-se incrível se pensada nesse contexto.

Os faroestes normalmente procuram mostrar o valor dos homens. Para Anthony Mann, os homens têm preço.

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