quinta-feira, outubro 04, 2007

Vidas Secas


Já discuti em outras postagens a dificuldade de se adaptar uma obra literária para o Cinema. Por ora, vamos apenas relembrar que a fidelidade ao enredo – que tanto se exige – absolutamente não importa. A não ser que o enredo, ou parte dele, seja de pertinência altíssima para a estética da obra ou para a sua mensagem. Um cineasta deve saber reconhecer qual o princípio que orienta uma determinada obra literária, e procurar fazer o seu filme movendo-se pelo mesmo princípio. O sucesso artístico de uma fita “baseada” em um livro depende exclusivamente disso. Um grande filme não será aquele que se agarra ao seu livro e mantém os seus olhos sempre fixos nele, como um apaixonado. Um grande filme e seu grande livro caminharão juntos tendo em vista um ponto comum. É mais uma relação de coordenação do que de subordinação.

O princípio, ou princípios que orientam uma obra literária e que serão tomados pela obra cinematográfica devem ser, logicamente, de caráter profundo e relativamente universal. Um poema ou um romance também se move por princípios particulares relativos à estética, mas esses dificilmente serão assimilados pelo Cinema, visto se tratarem de linguagens obviamente diferentes. Por exemplo: De que maneira Nelson Pereira dos Santos pode levar ao seu filme Vidas Secas a forte presença do discurso indireto livre, que tem grande função estética no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos? É complicado, não? Mas o diretor pode, com certeza, buscar na “poética” do Cinema algum recurso que ele acredite ser o mais equivalente ao discurso indireto livre literário...

Ou ele pode se orientar apenas por elementos estilísticos mais amplos que o romance possui: o silêncio das personagens; a estrutura narrativa fragmentária e cíclica; a atmosfera claustrofóbica do espaço infinitamente aberto do sertão na seca (paradoxo interessante); a angústia de uma condição da qual não há saída, aliada à esperança profunda que se procura manter com todas as forças, lutando com todas as forças contra as forças do meio; a escrita simples, despojada, concisa e objetiva (na qual a “câmera-caneta” pode muito bem se alfabetizar); dentre outros. Observando esses aspectos, o filme pode provocar no espectador efeitos subjetivos muito similares aos provocados pelo romance em seu leitor. E é justamente isso o que faz Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas (Brasil, 1964). Por isso é um grande filme e grande adaptação de uma obra literária.

Porém, eu não gosto de usar a palavra “adaptação”. Ela traz certa conotação de algo que está apenas subordinado. Prefiro agarrar-me ao termo “equivalência”. A estética do cinema Neo-Realista da Itália é perfeitamente equivalente à estética da obra de Graciliano Ramos que, por sua vez, aproxima-se bastante do romance Neo-Realista dos anos 30. Leia-se As Vinhas da Ira (“The Grapes of Wrath”) de John Steinbeck e faça-se o interessante exercício de comparar os dois livros, e sobretudo os dois filmes que se fizeram sobre eles. É claro que tais aproximações devem ser feitas com todo o cuidado, mas sem medo de ser feliz. Tendo em vista a filmografia anterior de Nelson Pereira dos Santos (principalmente Rio, 40 Graus, 1955; e Rio, Zona Norte, 1957), não consigo pensar em outro que seja mais apto a levar Vidas Secas para a tela grande. O Cinema-Novo brasileiro foi um saco de gatos e de estilos. Mas o Neo-Realismo de Nelson Pereira dos Santos casa muito bem com o de Graciliano Ramos.

Apesar de tudo, o filme Vidas Secas não está livre de problemas: a interpretação dura dos atores e o didatismo da expressão fílmica deixam a coisa um tanto artificial em alguns momentos – mas poucos momentos. O que importa é que a câmera de Nelson tem tanta sobriedade quanto a caneta de Graciliano; não há qualquer música na trilha sonora, não há qualquer apelo emocional. Predomina o silêncio mudo e seco de uma vida seca, de pessoas secas, de um universo seco. É natural que as personagens aqui falem mais do que no livro. Mas essa é apenas a solução encontrada pelo cineasta: o monólogo interior que se manifesta no exterior. É bem significativa a cena em que Fabiano e Sinhá Vitória falam ao mesmo tempo: não se trata de um diálogo, mas de dois fluxos de consciência que vão se atropelando. Em outros momentos, buscando o mergulho na alma das personagens que faz Graciliano Ramos, Nelson Pereira dos Santos simplesmente joga a câmera na cara das pessoas, como que tentando adivinhar o que se passa dentro daquelas cabeças. Eis a expressividade do Cinema. A cena da morte da cachorra Baleia é, por si só, antológica, assim como o seu capítulo equivalente no romance.

Vidas Secas, como todo grande Cinema, é um filme repleto de planos belos e plenos de significado – sem ser excessivamente pretensioso. Repare na fotografia acima deste texto e entenda que o cineasta de verdade é aquele que sabe exatamente onde colocar a câmera...


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