O discurso indireto livre é a técnica literária na qual o discurso do pensamento da personagem se mistura e se confunde com o discurso narrativo do autor. É uma maneira especial que este tem de expressar o interior daquela. Esse amálgama entre personagem e narrador causa grande efeito estético, e ajuda melhor o leitor a compreender e se identificar com a personagem de maneira mais profunda. A alma dela aparece, assim, mais viva e direta ao leitor; as palavras do seu espírito são “vomitadas” cruamente no papel, como se este tivesse possuído o “corpo” do narrador. A técnica é característica fundamental e freqüente das narrativas literárias modernas, a partir do início do século XX. O discurso indireto livre é usado de maneira programática pelo grande romancista Graciliano Ramos, particularmente em Vidas Secas, do qual reproduzimos um trecho exemplar:
(O narrador mostra o personagem Fabiano em um momento de reflexão)
“Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passaria dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um século. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles.”
(O narrador mostra o personagem Fabiano em um momento de reflexão)
“Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passaria dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um século. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles.”
É nos pensamentos mais carregados de conteúdo emocional que percebemos mais claramente o discurso indireto livre.
E o Cinema, será que possui maturidade narrativa para utilizar um estilo sutil como esse? Acredito que sim. O Cinema é arte visual, mais do que literária ou qualquer outra. Muitas vezes se criticam os aspectos excessivamente literários ou teatrais de um filme. Alfred Hitchcock (na famosa entrevista dada a François Truffaut), dentre outros grandes realizadores, defende com unhas e dentes a narrativa e a descrição empreendidas com meios puramente cinematográficos. Desse modo, melhor do que fazer o ator dizer em voz alta o pensamento de sua personagem (o que é, geralmente, tolo e ridículo), ou ainda, reproduzir o discurso interior pela voz em “off” (isso não fica tão ingênuo, mas já é muito banal), seria encontrar alguma maneira de mostrar – com imagens – o que se passa na cabeça de alguém.
Não estou falando do velho recurso do corte esfumaçado, da fusão encadeada, ou outros artifícios básicos da gramática cinematográfica que deixam claro, consensualmente, que o que virá depois trata-se de conteúdo do devaneio interior. Isso poderia ser equivalente apenas ao discurso indireto na Literatura, no qual as vozes do narrador e da personagem estão razoavelmente separadas e distintas. Quero propor uma maneira mais sutil de a câmera expressar um determinado pensamento da personagem, de forma que este invada, mais ou menos perceptível (sub-reptciamente) e por um rápido momento, o trabalho narrativo-descritivo da câmera-caneta.
Isso, a meu ver, é o que mais se aproximaria de um discurso indireto livre. Nos filmes de Hitchcock temos alguns momentos assim; mas o exemplo mais belo e evidente acredito que encontra-se em Umberto D, obra-prima do Neo-Realismo italiano dirigida por Vittorio de Sica, com roteiro de Cesare Zavattini. A cena em questão mostra, essencialmente, o seguinte:
Umberto D é um aposentado semi-miserável e sozinho. O elemento mais importante em sua vida é o cãozinho vira-lata que cria, ao qual ele é extremamente apegado. A vida vai ficando cada vez mais difícil e o Sr. Umberto está prestes a ser despejado da pensão onde vive. Uma noite, em seu quarto, o personagem vai até a janela e a abre: a câmera faz um “travelling” frontal e fecha em cima do seu rosto. Ele olha para o pavimento (em paralelepípedos) da rua, alguns andares abaixo: a câmera, subjetiva, mostra o que ele vê: o pavimento, só que em um plano mais próximo, não-correspondente à altura que o Sr. Umberto se encontra (representando, naturalmente, a atenção maior que sua visão dirige ao pavimento). Voltamos ao rosto, preocupado, da personagem. Então, a câmera (mais uma vez naquela visão subjetiva) faz um “travelling” veloz para baixo e fecha quase em primeiríssimo plano nos paralelepípedos do pavimento. Voltamos, mais uma vez, para o rosto de Umberto (de uma intensa gravidade): ele, então, volta-o para trás e contempla o seu cãozinho, que dorme tranqüilamente em cima da cama. Fica a contemplá-lo por alguns instantes. O Sr. Umberto, então, olha para os próprios pés, olha rapidamente para a rua abaixo e fecha a janela. Volta para a cama, senta-se e acaricia o cãozinho.
É um crime contra a Arte descrever com palavras uma cena dessas, uma das mais cinematográficas e comoventes que já vi no Cinema. Mas quero destacar que nela, sem que seja pronunciada uma palavra sequer, é comunicado a nós o pensamento de suicídio do personagem, o dilema em que fica ao contemplar o seu cão, e a decisão de abortar a própria morte, em favor do cão, que é a única criatura neste mundo que realmente depende do Sr. Umberto.
Isso que é Cinema!
E o Cinema, será que possui maturidade narrativa para utilizar um estilo sutil como esse? Acredito que sim. O Cinema é arte visual, mais do que literária ou qualquer outra. Muitas vezes se criticam os aspectos excessivamente literários ou teatrais de um filme. Alfred Hitchcock (na famosa entrevista dada a François Truffaut), dentre outros grandes realizadores, defende com unhas e dentes a narrativa e a descrição empreendidas com meios puramente cinematográficos. Desse modo, melhor do que fazer o ator dizer em voz alta o pensamento de sua personagem (o que é, geralmente, tolo e ridículo), ou ainda, reproduzir o discurso interior pela voz em “off” (isso não fica tão ingênuo, mas já é muito banal), seria encontrar alguma maneira de mostrar – com imagens – o que se passa na cabeça de alguém.
Não estou falando do velho recurso do corte esfumaçado, da fusão encadeada, ou outros artifícios básicos da gramática cinematográfica que deixam claro, consensualmente, que o que virá depois trata-se de conteúdo do devaneio interior. Isso poderia ser equivalente apenas ao discurso indireto na Literatura, no qual as vozes do narrador e da personagem estão razoavelmente separadas e distintas. Quero propor uma maneira mais sutil de a câmera expressar um determinado pensamento da personagem, de forma que este invada, mais ou menos perceptível (sub-reptciamente) e por um rápido momento, o trabalho narrativo-descritivo da câmera-caneta.
Isso, a meu ver, é o que mais se aproximaria de um discurso indireto livre. Nos filmes de Hitchcock temos alguns momentos assim; mas o exemplo mais belo e evidente acredito que encontra-se em Umberto D, obra-prima do Neo-Realismo italiano dirigida por Vittorio de Sica, com roteiro de Cesare Zavattini. A cena em questão mostra, essencialmente, o seguinte:
Umberto D é um aposentado semi-miserável e sozinho. O elemento mais importante em sua vida é o cãozinho vira-lata que cria, ao qual ele é extremamente apegado. A vida vai ficando cada vez mais difícil e o Sr. Umberto está prestes a ser despejado da pensão onde vive. Uma noite, em seu quarto, o personagem vai até a janela e a abre: a câmera faz um “travelling” frontal e fecha em cima do seu rosto. Ele olha para o pavimento (em paralelepípedos) da rua, alguns andares abaixo: a câmera, subjetiva, mostra o que ele vê: o pavimento, só que em um plano mais próximo, não-correspondente à altura que o Sr. Umberto se encontra (representando, naturalmente, a atenção maior que sua visão dirige ao pavimento). Voltamos ao rosto, preocupado, da personagem. Então, a câmera (mais uma vez naquela visão subjetiva) faz um “travelling” veloz para baixo e fecha quase em primeiríssimo plano nos paralelepípedos do pavimento. Voltamos, mais uma vez, para o rosto de Umberto (de uma intensa gravidade): ele, então, volta-o para trás e contempla o seu cãozinho, que dorme tranqüilamente em cima da cama. Fica a contemplá-lo por alguns instantes. O Sr. Umberto, então, olha para os próprios pés, olha rapidamente para a rua abaixo e fecha a janela. Volta para a cama, senta-se e acaricia o cãozinho.
É um crime contra a Arte descrever com palavras uma cena dessas, uma das mais cinematográficas e comoventes que já vi no Cinema. Mas quero destacar que nela, sem que seja pronunciada uma palavra sequer, é comunicado a nós o pensamento de suicídio do personagem, o dilema em que fica ao contemplar o seu cão, e a decisão de abortar a própria morte, em favor do cão, que é a única criatura neste mundo que realmente depende do Sr. Umberto.
Isso que é Cinema!
2 comentários:
a teoria do 'cinema de poesia' do Pasolini se calca um pouco no discurso indireto livre, refletindo a subjetividade do autor em toda a mise-en-scene. acho que este seria um exemplo mais radical do que o de Umberto D., pois este último usa um efeito, a câmera subjetiva, ainda muito semelhante ao que seria a relação entre voz narrativa e voz do personagem na literatura.
De fato, Pasolini é bem mais radical. Para comparar, acho que enquanto De Sica corresponde a narradores mais tradicionais (como Graciliano Ramos, em Vidas Secas), Pasolini estaria mais para as loucuras do "nouveau roman" francês (Alain Robbe-Grillet) ou de Calrice Lispector (Perto do coração selvagem A hora da estrela). Um abraço.
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