sexta-feira, setembro 22, 2006

continuação de O Abismo do Medo

(continuação do post acima)

The Descent (o título original é o mais adequado) é uma verdadeira “descida” às regiões mais profundas da natureza exterior e – ao mesmo tempo – interior, sem que isso constitua um paradoxo. Já foi assinalada por diversas mitologias, especialmente as mais primitivas, a analogia entre a Natureza e o corpo humano, particularmente o feminino. É a “mãe-terra” que nos dá vida e sustento. O filme apresenta essas analogias, de modo visual e evidente. O mergulho que as personagens mulheres fazem na terra é um mergulho que fazem em si mesmas – como bem diz uma delas, a propósito da personalidade da líder do grupo, que aquela era uma “ego trip”. A idéia é que, quanto mais o homem (ou mulher) explora audaciosamente o desconhecido, mais ele (ou ela) encontra um “espelho”; o espaço exterior e o interior organizam-se e se relacionam de maneira dialética. Tal idéia está presente em várias culturas, mitologias, filosofias, ciências (psicanálise jungiana) e artes. Essa é a “odisséia” de 2001, um Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick.

Tanto o corpo físico quanto o psíquico estão presentes nessas analogias. O mergulho em cavernas misteriosas e de múltiplos compartimentos como símbolo do mergulho no inconsciente – especialmente em suas zonas mais misteriosas e escondidas – já foi assinalado por Jung (psicanálise) e Campbell (mitologia). Aparece em várias narrativas, desde as folclóricas mais primitivas, até a literatura e o cinema recentes, seja em obras mais ambiciosas, seja no entretenimento muitas vezes infanto-juvenil. Os personagens de O Senhor dos Anéis vivem entrando em cavernas, assim como Luke Skywalker em Star Wars: O Império Contra-Ataca (dentro da qual ele enfrenta a figura de Darth Vader, seu pai, que revela por trás da máscara o próprio rosto do filho). Tais simbologias podem ser por demais evidentes ou didáticas, mas, mesmo assim, mantêm seu alto significado.

O Abismo do Medo não é uma fábula infanto-juvenil. Na forma, podemos dizer que é adolescente: ele apresenta todos os elementos típicos da “gramática cinematográfica” dos filmes de terror, para fazer o público pular da cadeira a cada cinco minutos: pseudo-sustos antes que venha a ameaça principal, elementos colocados sutilmente nas cenas iniciais que já anunciam o que as personagens vão enfrentar, preparando o programa da narrativa (o perigoso “rafting” como um dos esportes radicais, uma pá com “cara” monstruosa e a caveira de um boi penduradas do lado de fora da cabana, já anunciando o que elas vão ver dentro da caverna). Todavia, no conteúdo, é uma obra adulta, ou dirigida a adolescentes que querem se preparar para a fase adulta.

Se podemos reconhecer sinais nas coisas, então temos que afirmar com convicção que tudo, absolutamente tudo que elas encontram pela frente, antes e no início do mergulho subterrâneo, indica que, em favor da prudência, não devem fazer aquela exploração: o alce morto por alguma criatura selvagem; a caverna como simplesmente um buraco no chão, de entrada totalmente vertical; as marcas de garras na parede da gruta; e, por fim, a passagem extremamente estreita que desaba após a travessia das personagens. Esses fatos são colocados em favor do suspense, mas mostram que nada pode deter de antemão o espírito do homem (ou da mulher) – enfim, o espírito humano. É quase como se a natureza dissesse que não quer ser invadida e explorada temerariamente – em função apenas da ambição exagerada da ocupação e dominação e do egocentrismo da auto-superação – desejo que também pode ser aplicado ao corpo da mulher e ao nosso inconsciente.

Nessa caverna-inconsciente, pode ser significativo o fato de as exploradoras encontrarem e enfrentarem monstros de figura masculina (exceto por um, que pareceu ser fêmea). Isso lembra as análises psicanalíticas que se fazem a respeito de A Bela e a Fera. Um outro aspecto da leitura feminina que se pode fazer do filme é o fato de a líder do grupo se chamar Juno. A deusa romana Juno, que na mitologia grega se chama Hera e é esposa de Júpiter (Zeus para os gregos), é a protetora do casamento, do parto, enfim, da mulher em todos os aspectos do seu ser e da sua vida. Para os romanos, cada homem tinha um “gênio” e cada mulher uma “juno”. Juno é, então, a figura máxima da mulher, que no filme comanda as outras. Entretanto, a deusa Juno tem personalidade e vontade por demais fortes, promovendo intrigas e vinganças; tal é o caso de sua correspondente no filme. Mas o que mais chama a atenção é o fato de que Juno, no filme, tem um caráter notadamente negativo e traidor (ela é mais “vilã” do que os monstros, que agem apenas por instinto). Em Batman Forever, Hera é o nome da vilã. Seria isso anti-feminismo?

As relações que se desenvolvem entre as personagens, nesse tipo específico de contexto, lembram O Enigma de Outro Mundo (“The Thing”, EUA, 1982), de John Carpenter. Em certo momento, até a trilha sonora (marcação contínua do baixo) lembra a dos filmes de Carpenter. Quanto a outras comparações, podemos dizer que Abismo do Medo é a perfeita mistura entre duas obras capitais da ficção científica literária: Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, e A Máquina do Tempo, de H. G. Wells. Na verdade, o filme é o que teria sido a primeira, caso fosse escrita pelo autor da segunda; pois H. G. Wells é um escritor mais adulto, crítico e tenebroso do que Júlio Verne. As criaturas humanóides ferozes, adaptadas à vida escura no subterrâneo, em Abismo do Medo, lembram demais os morlocks do futuro mostrado por Wells, quando a espécie humana se dividiu em duas, sendo uma os “morlocks” do subsolo e a outra os “eloys”, criaturas infantilizadas que habitam a superfície (e servem de comida para as primeiras).

“The Descent” não acrescenta muito de original à linha da qual faz parte, na qual se destacam Alien, o Oitavo Passageiro (EUA, 1979), de Ridley Scott, e o já citado Enigma de Outro Mundo; talvez o grande mérito seja dar figura antropomórfica à ameaça da natureza desconhecida. De resto, assim como Eclipse Mortal, segue bem a cartilha do (sub) gênero.

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