segunda-feira, setembro 04, 2006

A Dama na Água

É bom que se pare de fazer comparações entre M. Night Shyamalan e Alfred Hitchcock. Os dois têm mais diferenças: nas técnicas e, principalmente, nos temas e mensagens, do que semelhanças. O único ponto pacífico é que ambos são cineastas virtuoses, significando não que possuem grande talento (uma vez que ambos possuem, sendo Hitchcock o maior), mas que gostam de exibir e de se exibir. Todavia, aquilo que cada um exibe (já que o cinema é a arte do mostrar) e a maneira como se exibem (o estilo do “mostrar”, além do fato que ambos gostam de fazer pequenas pontas em seus filmes) é algo mais particular.
Na câmera-caneta de Shyamalan, o que nos pode remeter às tintas de Hitchcock são certos planos subjetivos, travellings e ângulos inusitados (assinatura do realizador indo-americano), mas esses processos vêm sendo trabalhados pelo Cinema desde Griffith. E Shyamalan certamente não é mestre neles.
Quanto ao suspense, no mestre britânico ele vai sendo construído sutilmente ao longo da narrativa fílmica, em acontecimentos misteriosos que vão misteriosamente se encadeando, cuja lógica cabe ao protagonista – apanhado à revelia em seu redemoinho – desvendar para se desvencilhar. Em M. Night Shyamalan, até que se tem essa estrutura (especialmente em O Sexto Sentido e neste recente A Dama na Água), porém, filmada a favor de uma visão de mundo ingênua (usando o termo sem qualquer sentido negativo), em comparação com a do diretor de Um Corpo que Cai.
Além de tudo, o suspense de Shyamalan é muitas vezes fervido no calor de uma cena, ou mesmo de um único plano; e essa cena ou plano não possuem uma pertinência forte para a progressão ou desenlace da narrativa. Parece mais um susto apenas criado para fazer a platéia pular em suas cadeiras. Shyamalan não é o “mestre do suspense”, ele é o mestre do susto. Como exemplo, temos a tomada, em O Sexto Sentido, onde se mostra o menino protagonista, de costas no banheiro, em um plano de conjunto, e, subitamente, passa o vulto de um fantasma em primeiríssimo plano. Em A Dama na Água, planos assim se multiplicam até irritar o espectador que busca manter um distanciamento crítico. Shyamalan brinca folgadamente e sem razão (coisa que Hitchcock não faz, ou faz raramente) com o envolvimento do espectador, a ponto até de criar um anti-suspense: no mesmo filme, mostra-se um jardim que já se sabe ser ocupado por monstros, quando, de repente, as torneiras giratórias de irrigação automática disparam, com um som pra lá de exagerado; só isso (!). Outro exemplo de virtuosismo gratuito e suspense tão exagerado que desemboca no anti-suspense: numa festa realizada nesse mesmo jardim, a câmera faz um travelling veloz de cima para baixo (em contre-plongé) até atingir o ombro de um personagem em pé que não estava dando conta de nada. Na tomada seguinte – um plano médio desse mesmo personagem olhando para o próprio ombro para ver o que o atingiu – descobrimos que se tratava apenas de uma gota de chuva; então, começa a chover pesadamente (!).
O mais recente filme do diretor de A Vila é acuado e atacado por essas cenas de virtuose fácil e vazia, tanto quanto a personagem (não por acaso chamada Story) de Bryce Dallas Howard é acuada e atacada por uma fera astuta. Mas assim como ela, graças à ajuda de uma equipe na qual cada um desempenha um papel, não será totalmente aniquilada pelo monstro, também o filme não será completamente destruído pela fera da estetização, que, tal qual a outra, usa de camuflagem (mais abstrata).
A fita funciona bem como uma fábula adulta, carregada de metáforas que só Jung explica: Story, que é como se fosse um anjo, sai do fundo da piscina onde mora para ajudar os outros personagens a se encontrarem, evoluírem e superarem-se como indivíduos. Ela lembra bem a figura arquetípica feminina da anima que, de acordo com C. G. Jung, desempenha esse mesmo papel dentro de cada um de nós. Além do mais, águas profundas (mares, lagos, ou mesmo uma piscina) são um símbolo conhecido para o Inconsciente. Sonhos em que a pessoa mergulha em águas (como o personagem Cleveland, de Paul Giamatti, mergulha na piscina) representam o mergulho em seu próprio Inconsciente, onde não raro o indivíduo descobre coisas jamais imaginadas (mesmo caso de Cleveland, na piscina). Assim, é altamente significativo o fato de o anjo Story ter saído do fundo da piscina, resgatado Cleveland e tê-lo levado inconsciente até sua cama, onde, ao recobrar os sentidos, dá com os olhos nela, que diz algo relativo ao “despertar”. Causa espanto o fato de a crítica norte-americana ter acusado o roteiro de “impertinência dramática”, conforme disse o crítico Christian Petermann, no Guia da Folha da última semana (aliás, o texto dele faz justiça ao filme).
O filme tem uma mensagem otimista e transcendente. Une, dialeticamente, os planos baixos aos mais altos da existência, mostrando que, não importa onde e como se está, esse é sempre apenas o ponto de partida para posições infinitamente melhores. É de um cinza condomínio na cinza cidade da Filadélfia que acontecerá o milagre que mudará o mundo todo, milagre esse operado em grande parte pelos habitantes do condomínio, em princípio absolutamente anti-heróis. A cena do menino vidente, profetizando a partir da leitura mística não das entranhas de um cordeiro ou de uma bola de cristal, mas de meras embalagens de cereal é exemplar.
Com tudo isso, o próprio fato de a “Inteligentzia” ter renegado o filme atesta a sua qualidade e a sua pertinência, e nos deixa preocupados com a cultura e a mentalidade dos nossos tempos encarnadas pelas classes intelectuais.

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