quinta-feira, setembro 14, 2006

O Karma de Tarantino

Pulp Fiction - EUA, 1994, dir.: Quentin Tarantino
Quentin Tarantino é um daqueles cineastas queridinhos da crítica e do público cinéfilo, tais como Pedro Almodóvar ou David Lynch. Cria-se um hype imenso em torno de cada novo filme seu, especialmente nos dois Kill Bill (2003). O hype é, hoje, algo comum nas produções mais “eruditas” da indústria do entretenimento de massas, por isso mesmo consideradas “cults”. Por isso, vamos ver o que Tarantino tem de “cult”; o que é que nele é considerado interessante e o que é que é realmente interessante em seus filmes. Isso, não pode ser o fato de um cinéfilo, ex-atendente de locadora de vídeo, atingir o sucesso fazendo fitas que emulam as suas prediletas. Isso funciona muito bem para a nossa catarse, mas é um fato extra-cinematográfico.

O que interessa realmente é perguntar onde está, dentro do texto cinematográfico do diretor, o nosso foco de interesse. Esse interesse não pode ser o fato de Quentin Tarantino criar uma bem trançada colcha de retalhos de referências e intertextualidades fílmicas e culturais (tudo dentro da cultura pop). Isso funciona apenas como purpurina jogada nos olhos de espectadores mais inexperientes, visto que temos aqui uma “colcha”, mas uma colcha, lembremos, de “retalhos”. Por maior que seja o seu talento “emulador”, Tarantino não atinge, no que podemos considerar a parte “original” de seus filmes (salvo a idéia-tema que consideraremos a seguir), a profundidade e densidade de um Kurosawa, de um Coppola ou de um Ford. Além do mais, já existem outros “emuladores” de filmes e gêneros mais clássicos e densos, como Sérgio Leone em Era Uma Vez no Oeste.

Kill Bill é um caso emblemático: as múltiplas e variadas referências e citações a filmes específicos, gêneros de filmes e outras coisas do gosto do cineasta (como o seu fetiche por pés femininos, confirmado recentemente por Uma Thurman e que também aparece em outros filmes do diretor) se trombam umas contra as outras e se esfacelam, perdem-se no ritmo ágil de uma narrativa que coloca o espectador como que em uma montanha-russa. Isso poderia ser interessante como releitura satírica dessas fontes, como acontece – na nossa Literatura – com o Macunaíma, de Mário de Andrade.

Mas não acho que seja esse o caso de Quentin Tarantino. Kill Bill pretende ser sério. O fato é que o gênero principal no qual se inspira (artes marciais) não é sério. Por isso, a evidente falta de seriedade (e até mesmo o humor) em cenas como a luta solitária da “Noiva” contra um verdadeiro exército de capangas no bar japonês (Volume 1) não deve ser vista como uma revisão irônica dos filmes de luta, mas sim como uma tentativa de homenagem e de mímese exata e pormenorizada do espetáculo pictórico de violência abundante e gratuita (e irreal) comum nos filmes B dos quais Tarantino é fã.

Essa “seriedade” de Kill Bill só fica atrás daquela que vemos na série The Matrix (1999 e 2003, Irmãos Wachowski), outra “colcha de retalhos”; mas é da mesma natureza. Em ambos os casos, as narrativas perdem muito em densidade. São tantas citações e idéias que esses filmes querem trazer, que acaba sendo deixado de lado o conteúdo humano: o aprofundamento de questões psicológicas e das relações de causa e conseqüência nas ações. Isso, é claro, pode ser um problema na fonte (os filmes de luta); nesse caso, o emulador Kill Bill estaria apenas se reportando fielmente a um gênero historicamente ingênuo. Mesmo assim, em termos de “densidade” e de oferecer interesse a espectadores que não são fãs iniciados nos mesmos gêneros específicos e que, por isso, buscam outras coisas, Kill Bill não chega aos pés de Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sérgio Leone, essa sim uma “colcha de retalhos” bem mais interessante.

Por tudo isso, o aspecto da citação não é o melhor em Tarantino. Devemos procurar um “outro” Tarantino, para além da erudição pop e do virtuosismo pueril. Lá sim descobriremos algo profundamente interessante. O realizador de Pulp Fiction não deve ser engrandecido pelos aspectos que explicamos nos parágrafos anteriores, mas creditado e valorizado por uma idéia-tema que se faz presente em (quase) todos os seus filmes. É isso que faria dele um autor de fato.

Essa idéia é, sucintamente, a da redenção do bandido, que pode ser estendida a todo indivíduo comprometido com um passado do qual quer se libertar. É um grande tema, de fundo mítico-filosófico, já trabalhado por obras-primas da Literatura universal e que diz respeito a todos nós. Em todas as narrativas tarantinescas temos um (ex) criminoso que busca uma evolução e uma redenção pessoal, uma mudança-de-vida, mas tem que lidar com o seu “karma”, ou seja, com as conseqüências de seus atos anteriores.

Essa mudança de vida envolve (dentre várias atitudes e escolhas difíceis a serem tomadas) a traição necessária de antigos amigos e parceiros (e aqui a coisa se complica); contudo, após terríveis mas firmes peripécias, o indivíduo que busca consegue a redenção almejada. Quem busca a ética e a justiça, e se esforça suficientemente para tanto, não ficará de mãos abanando. Temos isso em Pulp Fiction (com os personagens de Bruce Willis e de Samuel L. Jackson), em Jackie Brown e, de maneira particular, em Kill Bill (no Volume 2, quando há o diálogo onde Bill e “a Noiva” explicam suas motivações). Não acontece em Cães de Aluguel (o filme de estréia), mas, mesmo ali, temos a comoção provocada pela traição (a última cena, muito bela e forte, entre o fora-da-lei Harvey Keitel e o policial disfarçado Tim Roth).

A cena acima referida de Kill Bill, Volume 2 é de uma força dramática realmente comovente, mas, no conjunto, o melhor e mais maduro filme de Tarantino – no qual mais e melhor aparece a idéia-tema aqui tratada – continua sendo Pulp Fiction.

Apesar de tudo, essa idéia-tema, se for tratada sem maiores variações, acredito que dará só para mais um filme ou dois. Vamos esperar e ver.

Um comentário:

LIGA DOS BLOGUES CINEMATOGRÁFICOS disse...

Caro, seu blogue foi aprovado para ser um novo integrante da Liga dos Blogues Cinematográficos, mas vc não deixou seu email de contato. Faça isso assim que vc puder.