(continuação do post anterior)
O filme Farenheit 451 (que é a temperatura em que o papel dos livros entra em combustão, equivalente a 233º Celsius) revela a paixão de François Truffaut pelas obras impressas, que também é mostrada em uma cena tocante de A Noite Americana (França, 1973). Uma das edições queimadas é a revista Cahiers du Cinéma, a bíblia francesa do cinema, na qual o cineasta trabalhou como crítico. Os close-ups com que Truffaut filma os livros sendo incendiados são altamente expressivos, procuram fazer o espectador prestar uma atenção tão próxima que é como se ele encarnasse nos livros e sentisse o seu sofrimento, sentisse o calor daquele fogo impiedoso.
O sofrimento dos livros sendo destruídos. Truffaut mostra essas cenas de barbárie como se fossem homicídios, ou melhor, genocídios – o próprio Montag diz, para explicar sua paixão recém-descoberta pelos livros, que “por trás de cada livro há um homem”. A cena mais bela é a da senhora que se imola em um auto-sacrifício junto com a sua biblioteca. Truffaut vai alternando closes do rosto dela e dos “rostos” dos livros na pira incendiária.
O mundo representado em Farenheit 451 promove aquilo que o Professor Arlindo Machado (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da USP) explica como, em princípio, um retorno à oralidade: sabemos que a cultura humana originou-se sob formas de expressão orais; com o nascimento e o progressivo aperfeiçoamento da escrita e da leitura – especialmente em alguns momentos-chave, como na invenção da imprensa por Gutenberg no século XV e o salto cultural do Século das Luzes (XVIII) –, a natureza e a manifestação da cultura foram se tornando cada vez mais escritas, letradas.
Podemos afirmar que o auge dessa cultura livresca encontra-se em meados do século XIX, com o imenso sucesso dos folhetins: narrativas romanescas de entretenimento cujos capítulos eram publicados diariamente nos jornais. Já no princípio do século XX, com o uso do cinema sob forma de narrativas de ficção para entretenimento, e posteriormente com a grande Era do Rádio, a cultura letrada foi perdendo as entradas que tinha na sociedade geral. O gigantesco sucesso do cinema, do rádio, e ainda mais da televisão – que mais contribuiu para esse quadro de mudanças, mais até do que o cinema –, tomou de assalto e ocupou os amplos terrenos antes dominados pelos livros e outras “mídias impressas”, agora enterradas e de certa maneira restritas a grupos sociais mais específicos.
Ainda de acordo com o Prof. Arlindo Machado, melhor do que entender esse movimento como um retorno à cultura falada (em oposição à escrita), é enxergá-lo como uma segunda oralidade: pois, embora a comunicação promovida pelo cinema, rádio e TV seja oral, não ocorre nesses veículos a mesma interação próxima e dinâmica entre o emissor (os próprios veículos) e o receptor (espectador e ouvintes) tal qual vemos em uma conversa banal. O engraçado é que os recentes desenvolvimentos da Internet permitem-nos vislumbrar uma segunda escrita, também diferente da primeira e que teria vindo para suplantá-la, assim como o rádio e a TV suplantaram a conversa em família e as noites passadas na varanda com os vizinhos.
É claro que nem tudo são cactos: Jean-Luc Godard, por exemplo, ciente da “segunda oralidade” da TV, decide tirar o melhor proveito dela, levando o modelo socrático de diálogo para as suas minisséries televisivas de entrevistas 6 x 2; e France / Tour / Detour / Deux / Enfants (1978).
Contudo, nos anos 50 e 60, a visão que se tinha do futuro era naturalmente condicionada pelo poder crescente e assustador da TV. Assim, Ray Bradbury imaginou a TV como peça central de manutenção e propagação de um novo totalitarismo, fabulando em seu romance toda uma distopia muito bem traduzida em imagens audiovisuais por François Truffaut.
Como filme de cinema, Farenheit 451 funciona de uma maneira mais especial do que o livro, causando um efeito a mais que só vem a engrandecer a imaginação da obra literária original. Isso acontece porque o filme aparece numa época em que o cinema tinha acabado de perder parte considerável de seu público e poder para a televisão (anos 50 e 60). Farenheit 451 de Truffaut não se mostra ressentido, mas tem alto significado o fato de o filme começar focalizando antenas de TV em tons monocromáticos bem fortes, com os créditos iniciais sendo falados pela voz em off de um locutor tal como em um programa televisivo.
Temos aqui a perfeita correspondência poética entre o universo diegético (a história do filme) e a instância da narração (a feitura do filme) que caracteriza a estética da grande literatura e do melhor cinema: a escrita foi de tal forma abolida daquele mundo representado que até mesmo o filme que o representa abstém-se de utilizá-la inclusive nos créditos, ou seja, na parte do filme que não corresponde necessariamente à representação “mimética” da realidade narrada, parte essa em que o filme se revela como construção de um universo fictício. Tudo para fazer o espectador entrar “no clima” dos acontecimentos.
Nesse grande filme, François Truffaut denuncia o mal da TV tanto quanto lamenta o mal feito aos livros.
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