“Disponha!”
É o que deveria dizer o espectador para entrar no espírito da brincadeira desse filme. Brincadeira sim, pois o que se vê na tela não é, quase absolutamente, sério (exceto por uma única ação responsável que o protagonista toma no final – mostrando que ainda há esperanças para ele). Chama muito a atenção o largo abismo que há entre a gravidade do assunto (o lobby e as campanhas de manipulação pública promovidas pela indústria tabagista) e o tom jocoso da apresentação fílmica. Mas isso não é uma contradição.
A produção de estréia do diretor Jason Reitman (filho de Ivan Reitman, de Os Caça-Fantasmas) ocupa-se em mostrar com minúcias o trabalho de um porta-voz das indústrias de cigarro, Nick Naylor (interpretado por Aaron Eckhart). Dotado de talento retórico e carisma imensos, o Sr. Naylor luta para convencer governo e população de que o tabaco não faz mal à saúde – ele mostra que, em algumas ocasiões, fumar até faz bem (!).
Ele é o foco narrativo. A narração em 1ª pessoa (através da sua voz em off) nos revela que o mundo apresentado é o mundo visto por seus olhos. O que nós vemos é filtrado pela visão de mundo do Sr. Naylor. Assim, o tom do filme é leve e jocoso, pois o seu protagonista é um homem que adora o seu trabalho; um profissional fascinado é um profissional que se diverte no seu fazer. Nick Naylor abraça com prazer a tarefa que, no fundo, faz por manter e até aumentar as mortes causadas pelo cigarro. E ele se orgulha disso: a cena que mostra o protagonista competindo com seus colegas que possuem papéis equivalentes na indústria do álcool e das armas, para descobrir quem “mata mais”, escancara ao espectador a personalidade, a ideologia e o caráter do Sr. Naylor.
Afora o seu cinismo, ele só vai assumir uma expressão facial realmente grave quando, participando de um programa de entrevistas, é ameaçado de morte; a câmera de TV (que ali se confunde com a do filme) capta sua mudança repentina de “cara” em um plano magnífico.
A representação facial de Aaron Eckhart dá vida e características muito particulares ao personagem. Nick Naylor sabe que o seu trabalho é maléfico, mas, como bom spokesman, a expressão dele não é a de um cínico, que demonstra o fingir falar a verdade; pelo contrário, é uma expressão em que transparece o entusiasmo ingênuo de quem realmente acredita que o que diz é bom, importante e verdadeiro. Sua expressão lembra, em alguns momentos, a de George Bush em aparições públicas e discursos.
Obrigado por Fumar lembra o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Neste, temos também um narrador-protagonista de caráter ambíguo mas com grande talento para a retórica, que busca “justificar-se” o tempo todo para o leitor e ganhar as suas graças. Sendo assim, podemos aplicar ao Sr. Naylor a atitude de uma desfaçatez muito próxima daquela que o crítico Roberto Schwarz atribuiu a Brás Cubas (a “desfaçatez de classe”). Talvez maior, pois o personagem do romance (escrito pelo norte-americano Christopher Buckley, autor de sátiras políticas) que deu origem a este filme não precisou morrer – ou fingir-se de morto – para mostrar livremente sua desfaçatez.
Desse modo, o que vemos na tela não é sério pois é a expressão e representação de um homem ridículo (da mesma maneira, não devemos levar a sério o discurso de Brás Cubas). Todavia, não se pode afirmar que o filme (o discurso do filme no plano do realizador) não seja sério. O humor de Obrigado por Fumar serve à visão de mundo cínica de Nick Naylor e serve também à ironia, à sátira que Jason Reitman faz de seu personagem e seu universo. Temos aqui a mesma sutileza que Machado de Assis promove nas “meias-tintas” de seu grande romance e bem melhor do que o sarcasmo grosseiro de Michael Moore.
Sente-se no filme um tom de absurdo, tal qual em um universo paralelo bizarro, onde todos os fatos, informações e valores estão às avessas. Em um mundo “positivo”, dominado por valores, quem nós vamos eleger como modelo a ser apreciado e seguido? É claro que é aquele que encarna mais a fundo tais valores. Agora, em um mundo “negativo”, regido por anti-valores, é natural que nos apeguemos àquele que melhor obedece esses anti-valores. Eis o carismático Nick Naylor. Todos no filme possuem defeitos de caráter: o próprio diretor confirma, em entrevista dada à Folha de S. Paulo (18/08/2006):
“Acho que todos os personagens do filme são desprezíveis, em certo sentido. Eu tentei dar pelo menos um porrada em cada profissão polêmica. E, para mim, jornalismo está no mesmo ambiente da política e das corporações...”
Esses personagens, como (além do protagonista) a jornalista interpretada por Katie Holmes e o senador anti-tabaco vivido por William H. Macy, usam e abusam de estratégias anti-éticas para conseguir seus desígnios profissionais (que consideram altamente justos, ao contrário do seu inimigo – o protagonista –, que não se dá ao trabalho de enganar a si próprio; isso é um agravante para eles). No entanto, quem melhor consegue aplicar essas técnicas “maldosas” e atingir seus objetivos, sofrendo o menor dos danos, é o Sr. Naylor. Ele se transforma, assim, em uma figura bastante admirável para o espectador.
Por tudo isso, Obrigado por Fumar parece uma piada de humor negro. O filme não é a crítica de um herói da indústria tabagista. É o anti-elogio de um anti-herói.
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