quarta-feira, setembro 06, 2006

A realeza de Fred Astaire

Arte é encanto. Ainda que se acredite radicalmente em uma estética realista, é necessária e natural a transformação mínima da realidade ao ser transposta para o plano das artes. A sublimação do real, operada pelo fazer artístico, contribui enormemente para deixar uma marca indelével no espectador; de modo que, quando ele voltar à “realidade”, vai prestar atenção nela com olhos diferentes, conforme a visão sugerida pelo artista. É evidente que essa sugestão pode não ser algo louvável, dependendo do objetivo do autor; mas, por outro lado, não se pode exigir que a obra se desnude de quaisquer princípios estéticos: nesse caso, teremos qualquer outro tipo de discurso, menos o artístico.
A arte que busca o Belo (qualquer que seja a noção de “belo”), a arte-espetáculo ou arte-ilusão, de fato coloca o espectador em uma posição passiva, porém, longe de ser alienante. O espectador não deixa de sair enriquecido com uma nova visão de mundo, renovado em seu interior pelo poder único da beleza que contempla, estimulado a ver, ouvir, sentir e pensar diferente.
Dentro dessa concepção, o Cinema é a mais completa das artes. Ele empresta de todas as outras: Literatura, Teatro, Pintura, Música e Dança, para compor o seu estilo próprio. No Cinema, o amálgama de todos os componentes da realidade, e de todas as artes ao representá-la em filme, ocupa toda a alma do espectador com o poder de uma invasão orquestrada.
O prazer não é de “ver”, mas de experimentar um filme. A experiência de uma obra fílmica tem mais força do que qualquer outra. Pode não ter poder maior que a música, mas é uma experiência mais completa, porque também inclui a música. Se o Cinema é a arte que capta mais diretamente o real, e sendo o Cinema um amálgama das outras artes, então o Cinema é a arte que traz as outras mais próximo do real do que elas poderiam fazer por si próprias. Se o valor da arte mede-se pela sua relação pertinente com a vida, temos que afirmar, logo, que o Cinema mostra de uma maneira única e especial o valor da Literatura, do Teatro, da Pintura, da Música e da Dança.
Os melhores filmes almejam a totalização da experiência audiovisual. Assim, o gênero de filmes musicais pode se considerar particularmente privilegiado. É evidente que um filme cuja estrutura essencial seja a apresentação de números de música e de dança não é a única nem melhor maneira de se relacionar imagem e som. Contudo, tem-se nos musicais algumas das mais antológicas “pérolas” audiovisuais.
São muitos os filmes e muitas as cenas; portanto, vamos nos ater, aqui, a uma fita que parece ser um musical menor; não é tão conhecido nem exibido quanto, por exemplo, Cantando na Chuva (“Singing in the Rain”, EUA, 1952) que é, não obstante, do mesmo diretor (Stanley Donen). Estamos falando de Núpcias Reais (“Royal Wedding”), nascido um ano antes do seu irmão mais famoso (1951), com o genial Fred Astaire. Nesses dois filmes, Stanley Donen teve a graça de ter extraído as mais antológicas apresentações dos dois mais antológicos dançarinos de Hollywood (Gene Kelly estrela Cantando na Chuva).
O roteiro de Núpcias Reais envolve um casal de irmãos dançarinos (Tom e Ellen Bowen, vividos por Fred Astaire e Jane Powell) cujo show em Nova York é tirado de cartaz. Seu agente, então, arruma-lhes apresentações em Londres, na mesma época em que será celebrado o casamento real. No navio a caminho da Inglaterra, Ellen se apaixona por um aristocrata britânico e se envolve com ele; com isso, ela acaba deixando em segundo plano o trabalho com o irmão, que fica descontente. Mas ele logo conhecerá também o seu amor e, após cultivarem por um tempo o dilema de abandonar ou não a carreira artística pelo casamento, Tom e Ellen decidem que seu tempo de dançarinos já passou e que está na hora de casar. Ambos optam pelo matrimônio, cada um acompanhado de seu par, no meio da multidão que assiste ao casamento real.
É um enredo bastante convencional, coisa que não é rara em musicais norte-americanos. Núpcias Reais não é o melhor filme estrelado por Fred Astaire. Mas é o que contém os seus melhores números de dança. Particularmente, duas cenas, que são daquelas que fazem o orgulho do Cinema; nelas, o Audiovisual se manifesta nas suas melhores potencialidades artísticas.
No primeiro número, Tom Bowen, abandonado pela irmã que faltara ao ensaio, dança com um porta-casacos e outros aparelhos da sala de ginástica do navio. A imagem é epifânica: a alegria do artista em seu fazer, em seu meio, quase como uma criança a brincar nos aparelhos de um playground. Um dos atributos do artista é a sua interação peculiar com o meio. Fred Astaire mostra que é mestre em relacionar-se harmoniosa e criativamente com o meio (cenário), assimilando-o e deixando-se assimilar por ele, domando-o e liberando-o alternadamente, extraindo dele todo o seu potencial artístico e, o que é mais interessante: ensinando o espectador a enxergar os objetos da realidade mais banal de maneira sublime, fazendo sua beleza única, escondida no interior de um cotidiano cego, vir à tona e dialogar com o artista e com o público. Só os grandes poetas conseguem fazer isso, gente como Manuel Bandeira e João Guimarães Rosa, para ficar na nossa Literatura.
Fred Astaire, assim, pertence à mais alta categoria de artista-mago, aquele que nos leva a transcender a aparência material das coisas, dando vida a elas. Ver um número de dança como esse é hipnotizar-se, entrar em um estado de contemplação espiritual só comparável com a leitura de certos poemas, a audição de certas músicas, ou com a meditação.
A “dança com o porta-casacos” foi magnificamente montada em paralelo com dribles de Mané Garrincha, no documentário brasileiro Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), dirigido por Marcelo Masagão. Essa cena, de montagem ritmada como uma música, nos faz apreciar de uma maneira ainda mais especial o balé de Fred Astaire (e também o de Garrincha).
O segundo número mostra o mesmo Tom Bowen dançando pelo teto e paredes de um quarto de hotel, após contemplar o retrato da sua amada. É interessante saber como esse número foi filmado. Montou-se o cenário do quarto, em tamanho natural, dentro de uma caixa enorme, conectada a eixos a que faziam girar verticalmente. A câmera estava fixa em uma janela lateral, de modo que o espectador tinha a impressão de que era Fred Astaire quem se movimentava. Isso mostra o talento do dançarino, que baila ao movimento giratório do set sem perder o passo.
Em termos de narrativa, antes que se reclame da inverossimilhança, é preciso atentar que essa cena é a expressão metafórica do devaneio amoroso do Sr. Bowen. Em um outro momento do filme, anterior a esse, Tom Bowen e sua amada confessavam um ao outro os efeitos maravilhosos que o amor lhes provocava: ela diz que o amor a fazia ter vontade de subir pelas paredes a dançar. Eis a ligação.
Como metáfora cinematográfica, a cena já revela seu caráter estético. Mas o principal é testemunhar Fred Astaire bailando alegremente (de novo nos vem a imagem da pureza e da ingenuidade infantis), manifestando a sua arte e o seu amor, passando por cima (literalmente) da lei da gravidade, a maior de todas as leis. Eis o artista. Ele supera qualquer obstáculo ao agir, faz pouco caso das “camisas-de-força” que se lhe apresentam; ele ri delas. No seu trabalho divino de criação, o artista é quem domina todas as forças e circunstâncias. Não exclui nada nem se exclui de nada; ele toma tudo e tudo transforma, procurando sempre o novo, o inusitado, chamativo, o belo. Assim é o espetáculo. E Fred Astaire é mestre nele.

Links:

http://www.youtube.com/watch?v=ac6o8PXthzQ Assista à famosa “Ceiling Dance” (Dançando no Teto) de Fred Astaire em Núpcias Reais. Pena que o vídeo não a mostra até o final. Para ver o número completo, acesse esta opção: http://www.youtube.com/watch?v=5Yw4_mafblk&mode=related&search=, mas a qualidade da imagem é pior.

http://www.youtube.com/watch?v=RDnmR4EVde0&mode=related&search= Assista à famosa “Coat Hanger Dancing” (Dançando com o Porta-Casacos) de Fred Astaire em Núpcias Reais. Este vídeo é completo.

http://www.youtube.com/watch?v=tap1sPd4LyI Aqui temos a “dança” paralela de Fred Astaire e Mané Garrincha, retirada de Nós que aqui estamos por vós esperamos.

http://themave.com/Astaire/ Um bonito site de homenagem a Fred Astaire, com biografia, filmografia e fotos. Em Inglês.

http://www.reelclassics.com/Actors/Astaire/astaire.htm Informações detalhadas sobre Fred Astaire. Biografia, filmografia, fotos e vídeos. Em Inglês.
Filmografia de Fred Astaire:
1981 - História de fantasmas (Ghost story);
1979 - O homem vestido de Papai Noel (Man in the Santa Claus suit, The) (TV);
1978 - A family upside down (TV);
1977 - Un taxi mauve;
1977 - Easter Bunny is comin' to town, The (TV) (voz - narrador);
1976 - Amazing dobermans, The;
1974 - Inferno na torre (Towering inferno, The);
1970 - Santa Claus is comin' to town (TV) (voz - narrador);
1970 - Over-the-hill gang rides again, The (TV);
1969 - Midas run;
1968 - O caminho do arco-íris (Finian's rainbow);
1962 - Aconteceu num apartamento (Notorious landlady, The);
1961 - Papai playboy (Pleasure of his company, The);
1959 - A hora final (On the beach);
1957 - Meias de seda (Silk stockings);
1957 - Cinderela em Paris (Funny face);
1955 - Papai pernilongo (Daddy long legs);
1953 - A roda da fortuna (Band wagon, The);
1952 - Ver, gostar e amar (Belle of New York, The);
1951 - Núpcias reais (Royal wedding);
1950 - Nasci para bailar (Let's dance);
1950 - Três palavrinhas (Three little words);
1949 - Ciúme, sinal de amor (Barkleys of Broadway, The);
1948 - Desfile de Páscoa (Easter parade);
1946 - Romance inacabado (Blue skies);
1946 - Ziegfeld follies (Ziegfeld follies);
1945 - Yolanda e o ladrão (Yolanda and the thief);
1943 - Tudo por ti (Sky's the limit, The);
1942 - Bonita como nunca (You were never lovelier);
1942 - Duas semanas de prazer (Holiday inn);
1941 - Ao compasso do amor (You'll never get rich);
1940 - Amor da minha vida (Second chorus);
1940 - Melodia da Broadway (Broadway melody of 1940);
1939 - A história de Vernon e Irene Castle (Story of Vernon and Irene Castle, The);
1938 - Dança comigo (Carefree);
1937 - Cativa e cativante (A damsell in distress);
1937 - Vamos dançar? (Shall we dance);
1936 - Ritmo louco (Swing time);
1936 - Nas águas da esquadra (Follow the fleet);
1935 - O picolino (Top hat);
1935 - Roberta (Roberta);
1934 - A alegre divorciada (Gay divorcee, The);
1933 - Voando para o Rio (Flying down to Rio);
1915 - Fanchon, the cricket.

2 comentários:

Madalena Gatto disse...

Muito bom este texto. Parabéns!

Madalena Gatto disse...

Muito bom texto. Parabéns!