quinta-feira, setembro 07, 2006

A imagem metafórica no Cinema

No livro O Discurso Cinematográfico: Opacidade e Transparência, Ismail Xavier discute a ontologia da imagem cinematográfica (capítulo I: “A Janela do Cinema e a Identificação”). Para tanto, ele cita as formulações de Maya Deren, cineasta importante na vanguarda norte-americana entre 1947 e 1961, que reproduzimos aqui como ponto de partida para as nossas discussões.

“O termo imagem (originalmente baseado em imitação) significa, em sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo distingue e estabelece um tipo de experiência visual que não é a experiência de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negativo – no sentido de que a fotografia de um cavalo não é o próprio cavalo – a fotografia é uma imagem”. (in Cinema: o uso criativo da realidade).

Ismail Xavier, baseado no lingüista Pierce, compreende essa formulação como definidora do signo que é ícone. O “ícone” é a imagem que se assemelha à coisa representada, independentemente do processo de representação. A outra citação de Maya Deren diz o seguinte:

“Uma pintura não é, fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela é algo semelhante a um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintura abstrata, não carregar nenhuma relação visível com um objeto real. A fotografia, entretanto, é um processo pelo qual um objeto cria sua própria imagem pela ação da luz sobre o material sensível. Ela, portanto, apresenta um circuito fechado precisamente no ponto em que, nas formas tradicionais de arte, ocorre o processo criativo uma vez que a realidade passa através do artista”.

Para Ismail Xavier, ela está falando do tipo de signo denominado índice. O “índice” é semelhante ao objeto a que se refere, porque foi diretamente afetado por ele – a imagem do cavalo que se imprime no filme. É a representação direta das coisas, e não a sua interpretação (mais ou menos exata) mediada pela visão de mundo do artista.
Assim, a imagem fotográfica, e também a cinematográfica, são ícones e índices ao mesmo tempo. Daí vem o poder singular de realidade do cinema, que afeta profundamente o artista e o estudioso crítico tanto quanto o público geral. Dessa mesma característica ontológica da imagem cinematográfica também decorrem as teorias fenomenológicas da arte do filme, como as de André Bazin, Henri Agel, Marcel Martin.
Entretanto, a mediação do artista também se faz presente no Cinema; um filme não é a realidade pura e crua (como muitos gostariam que fosse). Podemos afirmar que o Cinema é a mais “realista” dentre as outras artes, sem esquecer que nele também encontramos elementos da visão subjetiva e criativa – caso contrário, o Cinema não seria uma arte. Essa concepção se faz presente em Jean Mitry, historiador e teórico de cinema que encontrou um ponto de equilíbrio entre as linhas estruturalista e fenomenológica, entre as teorias idealistas e as realistas da sétima arte.
A vocação de ícone-índice do Cinema é algo inquestionável, e deve ser explorada pelos artistas e estudiosos em todo o seu potencial. Não obstante, o filme também deve servir de veículo de comunicação para a alma do autor, que transforma a realidade mostrada, recriando-a ou criando novas que expressem a subjetividade única que define o valor do artista.
Desse modo, é perfeitamente possível e – em alguns casos – necessário que a imagem cinematográfica signifique algo que vá além de seu caráter icônico essencial, além do objeto que denota. A imagem não pode se relacionar apenas consigo mesma, ela deve conotar algo que se esconde em sua aparência, mas que ao mesmo tempo dá indícios que podem nos levar à revelação. Essa é a natureza da metáfora. A imagem que transcende. Aristóteles já dizia, a respeito da estética artística, que o momento mais belo da arte é aquele em que ela revela (trata-se da epifania) algo que está além de si própria.
São vários os grandes momentos metafóricos do Cinema. Vamos falar aqui de apenas um deles, que foi muito mal interpretado pelos críticos fenomenológicos: O Gabinete do Dr. Caligari (“Das Kabinett des Dr. Caligari”), obra capital do Expressionismo Alemão, filmada em 1919 por Robert Wiene.
O filme narra a história de um artista de feiras circenses (o Dr. Caligari, interpretado por Werner Krauss) cujo show é a apresentação e as “profecias” de um sonâmbulo (Cesare, vivido por Conrad Veidt) sob o seu total controle. Esse sonâmbulo começa, então, a cometer assassinatos noturnos. Após uma investigação de muitos percalços, descobre-se que Caligari é um médico, diretor de um hospício, que está usando o sonâmbulo num estudo extremamente ambicioso, no qual os homicídios apenas fazem parte do experimento. O Dr. é amarrado como louco em uma camisa-de-força.
Entretanto, toda essa história é contada por um homem a seu colega, que aparecem no início do filme, os dois num jardim. No final, volta-se a eles e revela-se que ambos estão em um hospício, que os personagens da história contada (Caligari, Cesare e outros) apenas correspondem a pessoas reais ali presentes (o “Caligari” é de fato o diretor do hospital), e que toda a narrativa não passa de fruto da imaginação doentia do narrador.
Bem, a crítica fenomenológica usa esse filme como exemplo máximo do vício da estetização anti-realista, pois os cenários são todos construídos em linhas tortas e inquietantes, os volumes são de tamanho e perspectiva absurdos, a interpretação dos atores é pra lá de exagerada, e também são exagerados os contrastes entre luz e sombra. Todas essas são características básicas do Expressionismo Alemão no cinema, mas os fenomenólogos as desprezam, pois emulam excessivamente o universo artificial do teatro.
Porém, eles não percebem que o filme de Robert Wiene é uma narrativa, uma representação do real em duas camadas: a primeira mostra a realidade do louco contador de histórias, trancado num hospício; a segunda camada, mais profunda, representa ao espectador a realidade da história narrada da maneira como o louco a imaginou. Sendo assim, tem perfeita lógica o absurdo anti-realista dos cenários, da iluminação e da atuação dos atores, pois tudo faz parte da visão de mundo de uma mente perturbada.
A deformação proposital da realidade nesse filme é uma alegoria: ela metaforiza a subjetividade do personagem que, nesse ponto, é como o artista: cria um mundo fantástico de acordo com seu estado interior. O Gabinete do Dr. Caligari não mostra a realidade objetiva, por isso, reclamam que ele não é “realista”. Mas, sob outro ponto de vista, o filme só pode ser elogiado por ser extremamente “realista”, já que mostra com pormenor a visão de mundo deformada por alguém. Nesse caso particular, a cinematografia é realista na medida em que foge do “realismo” tradicional.
A crítica não tem do que reclamar. Ainda que se considere apenas o lugar comum de que não se pode reclamar de uma obra de arte aquilo que ela não pretendeu dar. Na análise de uma obra, devemos ter em mente o objetivo particular do artista com ela, julgando se ele conseguiu ou não atingi-lo; e deixar de lado o que nós queremos que ele faça. Essa lição é óbvia, aprende-se isso na escola; no entanto, algumas vezes até grandes críticos e teóricos, movidos certamente por altas ideologias, parecem esquecer-se dela.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, legal seu texto, gostaria de apontar algumas discordâncias:

Não sei se é cabível chamar de realista a estética que seria fiel as atitudes do realizador. O realismo em si, em alguns momentos, já é enquadrado como uma convenção. Existem vários tipos de realismo, um deles aponta como sendo realista o que desvenda o contexto político da obra, não necessariamente numa chave naturalista, ou seja, verrosímil com a realidade. Logo, talvez esse raciocínio de mais perto ou mais longe do realismo seja apenas um problema de nomenclatura.

O exemplo de Gabinete do Dr. Caligari é interessante. Inicialmente ele ia ser dirigido por Fritz Lang, que fez as modificações no roteiro que se tornou o vemos nas telas. No roteiro original não havia esse ‘entre parênteses’ que põe o meio do filme como representação da visão do louco, sendo a realidade de fato. Não sei se sua leitura apontando o filme como uma alegoria é segura, mas foi um pensamento interessante. É legal lembrar, como é dito também no livro do Ismail, que o expressionismo tinha algo de místico e que, diferente das outras vanguardas da época, não se sustentava no específico cinematográfico, a montagem, para se opor à representação hegemônica naturalista (e que por isso era bastante criticada por outras visões vanguardistas) e sim, mais na fotografia, dramaturgia e direção de arte. Esse místico, mais do que a visão pessimista clichê que é ligada ao movimento, era o retorno de uma espiritualidade que a modernidade se distanciava.

E por fim, o comentário sobre as intenções do autor é problemático, pois nem sempre temos acesso a essas. Além disso, a análise de textos culturais vai em uma direção cada vez maior para a pulverização da recepção, em que interessa mais como o espectador apreende a obra numa espécie de mediação [entre o seu contexto e a obra], do que na transmissão de mensagem que seria o objetivo do autor. Essa é a tal morte do autor do Barthes, que nada mais é uma afirmação de não importar mais tanto os objetivos do autor na leitura da obra. Mas apesar disso acho que para um exercício de crítica o interessante mesmo é ter julgado seu sujeito, o filme como fenômeno de massa, e as intenções do autor, mas que nem sempre estão ao nosso alcance.

Não encare esses comentários como repreensões, só quero, se houver fruição, que começamos uma conversa sobre os assuntos.

André Renato disse...

Olá! Obrigado por comentar! Acho que podemos sim iniciar uma conversa.

As nomenclaturas e suas referências são, às vezes, confusas. Eu deveria ter especificado melhor os conceitos de “realismo” que quis utilizar, mas, no calor do texto, deixei isso de lado.

Concordo com você no referente à “morte do autor” de Barthes, a obra tem uma dele independência a partir do momento em que é “lançada”; a partir de então, pode-se estudar a sua sorte, a recepção que ela tem. No entanto, preciso lhe confessar que me desagradam certos exageros possíveis nos estudos da recepção: por mais que esses estudos culturais-antropológicos sejam altamente creditados (particularmente na literatura e no cinema), assusta-me um pouco essa “direção cada vez maior para a pulverização da recepção” como você diz e que é fato confirmado. Será mesmo o caso de pulverizar a obra de arte tanto assim? Para a compreensão de muitas delas talvez seja necessária essa pulverização, pois existem obras que, por fatores intrínsecos e extrínsecos, estão consideravelmente presas a determinados contextos sociais.

Contudo, as grandes obras-primas da História da Literatura são justamente consideradas “obras-primas” pelo seu caráter universal, que transcende qualquer contexto. Será que o estudo da recepção das obras de Shakespeare na Inglaterra de Jaime I pode ter alguma influência pertinente no fato de qualquer pessoa, de qualquer época e lugar, ser capaz de assistir e apreciar profundamente Otelo? Eu, sinceramente, prefiro acreditar que o que faz a grandeza de uma obra de arte são características intrínsecas a ela (que podem ter sido calculadas ou não (!) pelo autor) que transcendem qualquer forma de determinismos. A obra-prima tem algo que toca fundo em questões essenciais do homem e da vida; por isso, ela universaliza-se (Homero, Shakespeare, Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa), já que essas questões são sempre as mesmas.

Eu quero acreditar que qualquer obra artística toca, em menor ou maior grau, nessas questões “universais”. É isso o que eu mais procuro nelas, ao analisá-las. Pode me chamar de idealista, mas ainda acho que existe algo que une todos os homens, e esse algo deve ser trabalhado (paradoxalmente, tanto quanto as diferenças que fazem a identidade individual). Assim, a questão que eu quero lhe propor para debatermos é: será que o Cinema, em seus 111 anos, já foi capaz de produzir obras como as de Shakespeare? Quais?

Bem, de qualquer maneira, não chamei O Gabinete... de realista por enquadrar-se nas atitudes (e objetivos que, de fato, muitas vezes são inacessíveis) do realizador. O filme de Wiene quer mostrar a fantasia de um louco, e consegue fazer isso bem, porém, metaforicamente: as linhas tortas do cenário simbolizam a mente “torta” do personagem-narrador. Uma obra que pretende dar forma ao absurdo pode ser chamada de realista na medida em que consegue criar formas que nos fazem entender bem esse absurdo. Talvez o termo que melhor se aplique a isso seja a verossimilhança, mas com uma coerência interna, e não externa. O décor de Caligari é coerente (por isso, realista e verossímil) com a que eu chamei segunda camada da narrativa, mas obviamente, não é coerente com a primeira, nem com o nosso plano de realidade (como espectadores).

Acho que todos esses meus argumentos estão de acordo com a proposta expressionista de retorno da espiritualidade. De fato, o Expressionismo é a mais romântica das vanguardas modernistas. Ele emula a alma do Romantismo alemão de Goëthe e outros. Sendo assim, faz sentido o forte uso da metáfora com valor subjetivo nos filmes expressionistas (todos são ricos nessas metáforas); metáforas que são ainda mais freqüentes, fortes e evidentes nos filmes do Kammerspiel, que, apesar de se opor ao Expressionismo, também é expressão de um espírito alemão que retoma ao Romantismo. Mas já estou divagando... Acho que escrevi demais, é melhor parar. Bem, obrigado pela atenção.

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado