Este texto é para quem já viu O Labirinto do Fauno.
A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real (grifo meu). Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias (outro grifo meu). C. G. Jung, "Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo", in Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
Considerando a aparente ambigüidade, revelada sobremaneira no final de O Labirinto do Fauno (“El Laberinto del Fauno”, México, Espanha, EUA, 2006; dir.: Guillermo Del Toro), será pertinente questionar o “sentido real” da “fantasia” ali presente? Será que isso importa, de verdade? Em que pode acrescentar à mensagem do filme desmontarmos em termos psicologizantes o seu aspecto maravilhoso como mero construto de uma mente infantil (a da protagonista Ofélia) que, naturalmente, recusa-se a crescer e amadurecer, não aceitando todo o peso da realidade e não lidando com ela de maneira objetiva e racional – ou seja, de maneira adulta? Pergunto essas coisas porque ainda me lembro das violentas críticas que se fizeram a respeito de A Vida é Bela (Itália, 1997, dir.: Roberto Begnini). Agora, o filme de Gillermo Del Toro não foi “agraciado” com as mesmas opiniões, talvez porque ele não associe a solução fantasiosa a um grupo étnico tão alvo de polêmicas como os judeus, ou talvez porque se trate aqui da fantasia da mente infantil de uma criança (na verdade, pré-adolescente), e não da de um marmanjo, o que seria vergonhoso...
Sendo assim, eu pergunto novamente: será intelectual e moralmente justo nós, seres adultos e esclarecidos, cultivarmos essa condescendência esnobe com o que julgaríamos ser apenas fruto de um delírio infantil? Em nosso admirável mundo novo, quantas vezes não esquadrinhamos as mais magníficas expressões artísticas e culturais, que trazem de modo rico e enriquecedor as mais altas, profundas e pertinentes questões humanas e até mesmo sobre-humanas (transcendentais) como se fosse apenas curiosidades antropológicas ou psicológicas? Estou cansado desse materialismo racionalizante e redutor! Cansado na medida em que ele apaga (nas mentes mais doutrinárias) quaisquer possibilidades de outras leituras e significações. A Razão, grande razão do homem, não pode descambar para preconceitos e miopias, no dizer de Jung.
Desse modo, quantas inteligências não assistem ao Labirinto do Fauno, acham o filme “bonito e comovente”, mas no fundo e ao mesmo tempo, pensam que aquela menina deveria mesmo era amadurecer e “cair na real”, lidando objetivamente com os problemas reais e imediatos (pois só assim ela se salvaria)? Talvez ela devesse mesmo era entrar para a guerrilha, ora bolas! Eis o pensamento moderno!
O Labirinto do Fauno é um grande filme justamente porque ele se abre a duas leituras, basicamente: a materialista e a mágica. Na verdade, ele parte – dialeticamente – de contextos e discussões bem particulares (a guerrilha e o fascismo na Espanha) e transcende para questões mais universais. Que o espectador reduza o escopo do filme de acordo com os seus próprios preconceitos pessoais! A polivalência semântica é o que faz as grandes obras de arte. O fato é que muitas pessoas “inteligentes” correrão o sério risco de questionar o “sentido real” (Jung) da narrativa, permanecendo cegos ao sentido profundo e a priori dos arquétipos significativos ali presentes. Mas isso também pode se dever ao fato de o cinema ser a mais “realista” das artes, e a visão (ultra) realista parece estar na moda em nossos dias – eu já discuti em outros textos este fato de que os filmes mais recentes (mesmo os de fantasia) apegam-se à realidade de uma maneira quase naturalista, e isso parece ser um gosto e uma exigência do público: basta ver os últimos filmes de super-heróis, em que eles se transformaram mais em anti-heróis (até mesmo o super-homem, coitado!), ou o tão ilustrativo exemplo de Tróia, que está mais para cobertura de guerra da CNN do que tradução fílmica da Ilíada.
A “morte dos deuses” de que fala Jung traz graves problemas à nossa psique individual e coletiva. Ela pode fazer com que não percebamos o que há de mais belo e significativo em O Labirinto do Fauno: o fato de que só a fantasia (ainda que seja apenas fruto de um delírio psíquico) pode se opor à realidade (nazi-fascismo). Só a subjetividade pode se opor à objetividade. Só o irracional pode se opor ao racional. Só o infantil pode se opor ao adulto. Só a natureza (simbolizada pela magnífica figura arquetípica do Fauno) pode se opor à civilização. Só o feminino pode se opor ao masculino. Só a pureza pode se opor à malícia. Só a indisciplina pode se opor à disciplina. Só a esperança pode se opor ao desespero. Só o bem pode se opor ao mal. Esses são os embates que verdadeiramente ocorrem no filme de Guillermo Del Toro – a luta entre a guerrilha socialista e o governo fascista pouco importa. As melhores armas contra o horror, contra a barbárie totalitária são outras, bem outras. A verdadeira batalha não se dá entre pistolas e rifles, mas entre idéias. A verdadeira revolução é a das idéias. A história já se cansou de nos mostrar o perigo e os resultados tenebrosos de “revoluções” objetivas sem o seu devido acompanhamento subjetivo. Ofélia é o grande exemplo, do qual nunca devemos nos esquecer.
A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real (grifo meu). Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias (outro grifo meu). C. G. Jung, "Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo", in Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
Considerando a aparente ambigüidade, revelada sobremaneira no final de O Labirinto do Fauno (“El Laberinto del Fauno”, México, Espanha, EUA, 2006; dir.: Guillermo Del Toro), será pertinente questionar o “sentido real” da “fantasia” ali presente? Será que isso importa, de verdade? Em que pode acrescentar à mensagem do filme desmontarmos em termos psicologizantes o seu aspecto maravilhoso como mero construto de uma mente infantil (a da protagonista Ofélia) que, naturalmente, recusa-se a crescer e amadurecer, não aceitando todo o peso da realidade e não lidando com ela de maneira objetiva e racional – ou seja, de maneira adulta? Pergunto essas coisas porque ainda me lembro das violentas críticas que se fizeram a respeito de A Vida é Bela (Itália, 1997, dir.: Roberto Begnini). Agora, o filme de Gillermo Del Toro não foi “agraciado” com as mesmas opiniões, talvez porque ele não associe a solução fantasiosa a um grupo étnico tão alvo de polêmicas como os judeus, ou talvez porque se trate aqui da fantasia da mente infantil de uma criança (na verdade, pré-adolescente), e não da de um marmanjo, o que seria vergonhoso...
Sendo assim, eu pergunto novamente: será intelectual e moralmente justo nós, seres adultos e esclarecidos, cultivarmos essa condescendência esnobe com o que julgaríamos ser apenas fruto de um delírio infantil? Em nosso admirável mundo novo, quantas vezes não esquadrinhamos as mais magníficas expressões artísticas e culturais, que trazem de modo rico e enriquecedor as mais altas, profundas e pertinentes questões humanas e até mesmo sobre-humanas (transcendentais) como se fosse apenas curiosidades antropológicas ou psicológicas? Estou cansado desse materialismo racionalizante e redutor! Cansado na medida em que ele apaga (nas mentes mais doutrinárias) quaisquer possibilidades de outras leituras e significações. A Razão, grande razão do homem, não pode descambar para preconceitos e miopias, no dizer de Jung.
Desse modo, quantas inteligências não assistem ao Labirinto do Fauno, acham o filme “bonito e comovente”, mas no fundo e ao mesmo tempo, pensam que aquela menina deveria mesmo era amadurecer e “cair na real”, lidando objetivamente com os problemas reais e imediatos (pois só assim ela se salvaria)? Talvez ela devesse mesmo era entrar para a guerrilha, ora bolas! Eis o pensamento moderno!
O Labirinto do Fauno é um grande filme justamente porque ele se abre a duas leituras, basicamente: a materialista e a mágica. Na verdade, ele parte – dialeticamente – de contextos e discussões bem particulares (a guerrilha e o fascismo na Espanha) e transcende para questões mais universais. Que o espectador reduza o escopo do filme de acordo com os seus próprios preconceitos pessoais! A polivalência semântica é o que faz as grandes obras de arte. O fato é que muitas pessoas “inteligentes” correrão o sério risco de questionar o “sentido real” (Jung) da narrativa, permanecendo cegos ao sentido profundo e a priori dos arquétipos significativos ali presentes. Mas isso também pode se dever ao fato de o cinema ser a mais “realista” das artes, e a visão (ultra) realista parece estar na moda em nossos dias – eu já discuti em outros textos este fato de que os filmes mais recentes (mesmo os de fantasia) apegam-se à realidade de uma maneira quase naturalista, e isso parece ser um gosto e uma exigência do público: basta ver os últimos filmes de super-heróis, em que eles se transformaram mais em anti-heróis (até mesmo o super-homem, coitado!), ou o tão ilustrativo exemplo de Tróia, que está mais para cobertura de guerra da CNN do que tradução fílmica da Ilíada.
A “morte dos deuses” de que fala Jung traz graves problemas à nossa psique individual e coletiva. Ela pode fazer com que não percebamos o que há de mais belo e significativo em O Labirinto do Fauno: o fato de que só a fantasia (ainda que seja apenas fruto de um delírio psíquico) pode se opor à realidade (nazi-fascismo). Só a subjetividade pode se opor à objetividade. Só o irracional pode se opor ao racional. Só o infantil pode se opor ao adulto. Só a natureza (simbolizada pela magnífica figura arquetípica do Fauno) pode se opor à civilização. Só o feminino pode se opor ao masculino. Só a pureza pode se opor à malícia. Só a indisciplina pode se opor à disciplina. Só a esperança pode se opor ao desespero. Só o bem pode se opor ao mal. Esses são os embates que verdadeiramente ocorrem no filme de Guillermo Del Toro – a luta entre a guerrilha socialista e o governo fascista pouco importa. As melhores armas contra o horror, contra a barbárie totalitária são outras, bem outras. A verdadeira batalha não se dá entre pistolas e rifles, mas entre idéias. A verdadeira revolução é a das idéias. A história já se cansou de nos mostrar o perigo e os resultados tenebrosos de “revoluções” objetivas sem o seu devido acompanhamento subjetivo. Ofélia é o grande exemplo, do qual nunca devemos nos esquecer.
Só a bondade incondicional de Ofélia pode se opor à maldade incondicional do fascismo. Ofélia não quis sacrificar o irmãozinho para o que seria um bem maior; será que a guerrilha faria o mesmo? A guerrilha executou friamente o capitão Vidal, já rendido; será que Ofélia faria o mesmo?
15 comentários:
Meu caro, o seu excelente texto sobre "O labirinto do fauna" em fez agendar uma revisão do filme. Vou a uma locadora nos próximos atrás de uma cópia. Quando vi o filme não me tocou tanto assim, não desgostei mas não me empolguei. Mas não passou largado. Talvez esperando ler sua análise... que lúcida e pertinente.
Quanto ao filme de Edward Yang é possível você encontrar em dvd.
Hábraço!
Óooooootima crítica. Parabéns!
li o texto, infelizmente ainda não vi o filme. : X
continua a escrever
cumprimentos
clap, clap, clap! Não sei se por arrogância, mas pensei que eu fosse a única que tivesse entendido o sentido maior do filme. Sentido este que acho que posso resumir com sua frase: "Só a esperança pode se opor ao desespero". Se cria-se deuses para que se achem respostas, cria-se também o paraíso para termos, ainda que remota, uma esperança. Ao assistir ao fime, é preciso acreditar que Ofélia foi para aquele mundo fantástico ou o mundo de quem "ainda" não se insensibilizou a, nem se tornou tolerante frente à violência tende a ruir. Sua crítica me chamou atenção a algo em que eu não havia pensado, que é a pureza opondo-se à violência, ainda que aquela perdesse alguma coisa, coisa que nenhum idealista que se diga convicto é capaz de fazer: sempre se sacrificarão vidas em nome de algo maior. Pergunto-me apenas o quão maior.
Ótimo comentário... essa constante linguagem dialética do filme é muito expressiva e muito especial, e fora o que mais me chamou a atenção. Esse é um filme que desperta a criticidade, pois apresenta vários elementos para a realizar. Adorei o filme, e seu texto pôs palavras na minha boca, ao defender a magnitude de tal obra.
Ótimo texto!
Mas que a menininha é uma palerma completa do início ao fim, isso é.
Para mim, esse filme é uma OBRA-PRIMA! Ele faz me lembrar do poder da imaginação que tinhamos quando criança, das sensações. Com ele Del Toro assina seu nome na calçada da fama.
Gostei dos comentários sobre o filme,mas pra mim ele trás muito mais do que a dialética...pra mim o filme inteiro é simbólico, representando ao mesmo tempo a figura de cristo, e trazendo elementos fortíssimos, como quando o fauno fala pra Ofélia que ela irá passear em seu palácio, fazendo referência ao Apocalipso, que fala repetidamente no número "sete", ou quando ela encontra o pai e a mãe, onde vê-se a Trindade...ou quando ela (uma inocente) deve dar o sangue para salvar outro inocente... enfim, o filme é carregado de símbolos, porém também pensei num Deus-Mulher, que pecou (comeu um fruto proibido na mesa das "tentações"...na sua breve passagem pela provação, errou como qualquer humano o faria...). Amo esse filme e sempre me emociono quando vejo!!!
filme do ocultismo...
o restante são meras maquiagens em perfeito sincronismo para "deixar mais light" o filme.
E desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas. 2 Timóteo 4:4
Belo texto, o legal que as ideias do filme vão surgindo depois que você assiste. O texto pode materealizar algumas ideias que tive ao ver o filme.
revolução de ideias ......essa é a verdadeira revolução, a força fisica nada nada pode contra a inocencia,fé acreditar sempre , até mesmo no inacretitavel ......valeu muito bom texto .
robinrude
Seu texto não contém conteúdo nenhum para tal tamanho e confusão. Não existe objetividade. Sim o filme é baseado em um assunto com dois polos opostos. Podemos ver claramente essa ideia no próprio filme. Uma análise deve ter mais conteúdo e ser mais objetiva, assim como muitas outras que já existem. Seu texto é uma perca de tempo.
Agradeço a crítica, companheiro. E acredito, realmente, que meu texto possa ser uma PERDA de tempo. Assim como acredito que possa não possuir conteúdo ALGUM...
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