Enfim, toda a sociedade se une para combater o assassino desconhecido (o que, entendido com muito cuidado, não deixa de ser belo e interessante, já que se trata de uma ameaça a todos; porém, o que acaba acontecendo é que todos projetam seu ódio e sua paranóia na figura do “monstro assassino”, e isso, como já disse tem conseqüências perigosas). Até mesmo o crime organizado se une à tarefa – já que eles estão sofrendo cada vez maiores prejuízos com o aumento e a rigidez constantes da vigilância e das batidas policiais (por causa do serial killer). Em montagem paralela (mais uma vez), vemos a reunião dos criminosos e a reunião das autoridades da polícia, ambas discutindo meios de capturar o “vampiro”: o corte seco que separa os dois acontecimentos na verdade os une como se fosse uma rima, ou seja, igualando a lei e o fora-da-lei em equivalência. Chama muito a atenção aqui o exagero expressionista da fumaça dos cigarros – todos fumam nas duas reuniões. Mas é o crime organizado, com todo o seu “poder paralelo” que chega até mesmo a mobilizar os mendigos, que levará a melhor na captura do psicopata.
Falando nos mendigos, outro exemplo de virtuosismo cinematográfico é quando a câmera passeia folgadamente pela sede da organização dos indigentes, focalizando aqui e ali cada grupo: uns separando bitucas de cigarros e charutos, outros restos de comida, alguns jogando cartas. É o olhar travando conhecimento total do ambiente; essa movimentação livre da câmera lembra A Grande Ilusão (1936), de Jean Renoir. Mais um exemplo da rica apropriação da nova tecnologia do sonoro: o psicopata é caracterizado, ao longo do filme, por uma certa melodia que ele assobia quando está em vias de cometer o seu crime; sua captura ocorre graças a um cego que vendera o balão a ele, quando estava com Elise Beckmann. O cego reconhece o assobio. Esse tipo de reconhecimento, muito apegado às coincidências, é típico da tragédia clássica.
Finalmente, a longa seqüência final do julgamento (o filme todo se organiza em torno de longas seqüências muito detalhadas e explicativas, o que lhe dá certo caráter de reconstituição documental, já que se baseia numa história real: o “vampiro de Dusseldorf” agiu nos anos 20). É um julgamento totalmente informal, conduzido pelo crime organizado – com a presença da população local – na obscuridade do porão de uma fábrica abandonada. O “juiz” procura fazer o réu lembrar, enxergar, falar, lidar, enfrentar os seus atos hediondos. Então, Peter Lorre (que interpreta “M”) dá um show! Seu discurso é incrível e temos aqui de novo o bom aproveitamento dos recursos sonoros. É curioso pensar no fato de que o “vampiro” não recebe nome próprio algum, apenas alcunhas: “vampiro”, “M”, “monstro”, “assassino”, “pervertido”, etc. Apesar de a polícia, por sua vez, ter chegado a ele graças ao registro de sua internação passada em um manicômio, o filme não revela o seu nome ou a sua história. Ele não é um indivíduo humano dotado da dignidade cabível. Apesar dos seus crimes horripilantes, ele não passa de alvo, de encarnação para as piores projeções psíquicas da comunidade. A sombra que tomaria conta da Alemanha está se adensando.
Ainda assim, é concedido ao réu um advogado de “defesa”. A coisa torna-se mais complexa, ainda mais ambígua e interessante. Os argumentos da acusação e da defesa discutem calorosamente os limites até hoje polêmicos entre justiça e vingança; entre punição e correção. Todos os argumentos, pontos de vista e fatos que povoam o debate, no Brasil atual por exemplo, sobre o problema da violência, particularmente sobre a pena de morte, estão no filme. De novo lá – e também aqui – o perigo da coletividade entregue a emoções primárias e de novo o perigo do nazismo, do qual não estamos tão distantes quanto gostaríamos de imaginar.
Falando nos mendigos, outro exemplo de virtuosismo cinematográfico é quando a câmera passeia folgadamente pela sede da organização dos indigentes, focalizando aqui e ali cada grupo: uns separando bitucas de cigarros e charutos, outros restos de comida, alguns jogando cartas. É o olhar travando conhecimento total do ambiente; essa movimentação livre da câmera lembra A Grande Ilusão (1936), de Jean Renoir. Mais um exemplo da rica apropriação da nova tecnologia do sonoro: o psicopata é caracterizado, ao longo do filme, por uma certa melodia que ele assobia quando está em vias de cometer o seu crime; sua captura ocorre graças a um cego que vendera o balão a ele, quando estava com Elise Beckmann. O cego reconhece o assobio. Esse tipo de reconhecimento, muito apegado às coincidências, é típico da tragédia clássica.
Finalmente, a longa seqüência final do julgamento (o filme todo se organiza em torno de longas seqüências muito detalhadas e explicativas, o que lhe dá certo caráter de reconstituição documental, já que se baseia numa história real: o “vampiro de Dusseldorf” agiu nos anos 20). É um julgamento totalmente informal, conduzido pelo crime organizado – com a presença da população local – na obscuridade do porão de uma fábrica abandonada. O “juiz” procura fazer o réu lembrar, enxergar, falar, lidar, enfrentar os seus atos hediondos. Então, Peter Lorre (que interpreta “M”) dá um show! Seu discurso é incrível e temos aqui de novo o bom aproveitamento dos recursos sonoros. É curioso pensar no fato de que o “vampiro” não recebe nome próprio algum, apenas alcunhas: “vampiro”, “M”, “monstro”, “assassino”, “pervertido”, etc. Apesar de a polícia, por sua vez, ter chegado a ele graças ao registro de sua internação passada em um manicômio, o filme não revela o seu nome ou a sua história. Ele não é um indivíduo humano dotado da dignidade cabível. Apesar dos seus crimes horripilantes, ele não passa de alvo, de encarnação para as piores projeções psíquicas da comunidade. A sombra que tomaria conta da Alemanha está se adensando.
Ainda assim, é concedido ao réu um advogado de “defesa”. A coisa torna-se mais complexa, ainda mais ambígua e interessante. Os argumentos da acusação e da defesa discutem calorosamente os limites até hoje polêmicos entre justiça e vingança; entre punição e correção. Todos os argumentos, pontos de vista e fatos que povoam o debate, no Brasil atual por exemplo, sobre o problema da violência, particularmente sobre a pena de morte, estão no filme. De novo lá – e também aqui – o perigo da coletividade entregue a emoções primárias e de novo o perigo do nazismo, do qual não estamos tão distantes quanto gostaríamos de imaginar.
Será que eu conto o final? Veja o filme e surpreenda-se. E compare o seu desfecho com o fim que costumam levar muitos “vilões” em muitos filmes hollywoodianos da atualidade, até mesmo em desenhos animados. M, O Vampiro de Dusseldorf pode antecipar o nazismo, mas a posição que Fritz Lang toma em relação a ele é bem clara e reconfortante para nós. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito de muitos, muitos filmes de Hollywood que tratam de crime e castigo. Isso é que é realmente assustador...
Nenhum comentário:
Postar um comentário