As Vinhas da Ira (“The Grapes of Wrath”, EUA, 1940) do grande, grande John Ford, é uma obra de arte que carrega e faz circular, no calor do seu próprio sangue, o autêntico DNA do clássico. Seus méritos são tão claros, o filme todo é tão acessível e bem organizado que chega a ser quase didático; sem, por outro lado, perder a sutileza que pedimos às obras-primas. Eis uma ótima dica de exibição para cineclubes, cine-debates e para todos os que se interessam por cinema e educação.
Nesta adaptação do famoso romance do norte-americano John Steinbeck, publicado em 1939 (um ano antes do filme, apenas) e ganhador do prêmio Pulitzer, o equilíbrio entre o típico e o alegórico, entre o particular e o universal, entre o social e o psicológico, entre o retrato jornalístico (objetivo) e o literário (subjetivo), entre a máquina e o homem, arrebata mente e coração do espectador. Fazendo coro com o que alguém já disse a respeito do grande cinema, As Vinhas da Ira é um daqueles filmes que fazem a gente olhar para o mundo com outros olhos. No espírito dos mais jovens, que ainda estão procurando e descobrindo o mundo como ele é e o seu papel individual nele, o filme pode exercer um efeito particularmente motivador (o que nos traz de novo às questões relativas a cinema e educação).
A força significativa está em que As Vinhas da Ira é um retrato ultra-realista e detalhado das migrações dos “sem-terra” norte-americanos dos anos 30, expulsos pelos bancos e corporações – ou seja, estruturas maquinais e “invisíveis” do moderno capitalismo financeiro – de suas terras que os avós conquistaram como pioneiros na expansão para o oeste. O romance original de John Steinbeck insere-se na linha do neo-realismo literário, que buscava a denúncia social inspirada por ideais marxistas (nesse aspecto, tanto o romance de Steinbeck, quanto o filme de John Ford possuem um lado evidente e decididamente “vermelho”; dificilmente, após a II Guerra Mundial, Hollywood permitiria que um filme assim fosse realizado). No Brasil, o romance regionalista da década de 30 é o que mais se aproxima dessa tendência, em escritores como Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e o Jorge Amado na fase inicial.
Mas o filme trata de todas essas particularidades não como um “romance de tese” – típico do primeiro realismo e do naturalismo literário do século XIX. John Ford, à maneira do que faria o cinema neo-realista italiano, mostra o social pelo viés do psicológico, ou melhor, do humano. Não quero dizer “psicológico”, pois poderia fazer pensar que há aqui todo aquele peso da psicanálise, das ciências psicológicas, o que nos levaria de volta ao “romance de tese”. As Vinhas da Ira é carregado de um olhar profundamente humano, francamente subjetivo, empático, que sofre junto o sofrimento do outro e se alegra com a esperança, com o espírito que permanece sempre vivo, apesar de toda a privação material. Eis o belo do filme. E, graças a essa visão humana dos fatos, a obra de John Ford transcende as dimensões mais históricas, universaliza-se, torna-se uma parábola arquetípica de proporções riquíssimas quase infinitas.
Há muitos elementos do filme, tanto os literários quanto os especificamente cinematográficos, que atestam a dimensão alegórica. Como exemplo dos primeiros, temos as falas das personagens, que, em alguns momentos, tornam-se verdadeiros discursos (poderíamos fazer uma crítica negativa aqui, dizendo que aquelas pessoas não teriam o esclarecimento de visão e de pensamento, tampouco a articulação de linguagem necessários a tais discursos, que soariam, assim, inverossímeis, exemplo típico da voz ideológica do narrador-autor ventríloquo. Neste aspecto, a zoomorfização que ganham os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos seria mais adequada, embora haja o risco de se cair em preconceitos deterministas; enfim, isso tudo é muito complicado. A propósito, ainda não vi o filme de Nelson Pereira dos Santos). O monólogo de Tom Joad no fim do filme (o grande, grande Henry Fonda), o “filho pródigo” às avessas que tem que abandonar a família para protegê-la e a si mesmo, mostra-nos com toda a força do artista que absolutamente não interessam questões mesquinhas de “esquerda” ou de “direita”, e sim a luta universal do homem contra as forças que procuram derrubá-lo – dentre as quais se destaca o próprio homem, através do medo, da dúvida e da falta de esperança subjetivos (o homem que causa mal a si mesmo), e através da opressão material e objetiva exercida nas estruturas sociais (o homem que causa mal a outro homem). As Vinhas da Ira é uma grande afirmação do espírito humano (parece que o final otimista não está no livro de Steinbeck).
Nesta adaptação do famoso romance do norte-americano John Steinbeck, publicado em 1939 (um ano antes do filme, apenas) e ganhador do prêmio Pulitzer, o equilíbrio entre o típico e o alegórico, entre o particular e o universal, entre o social e o psicológico, entre o retrato jornalístico (objetivo) e o literário (subjetivo), entre a máquina e o homem, arrebata mente e coração do espectador. Fazendo coro com o que alguém já disse a respeito do grande cinema, As Vinhas da Ira é um daqueles filmes que fazem a gente olhar para o mundo com outros olhos. No espírito dos mais jovens, que ainda estão procurando e descobrindo o mundo como ele é e o seu papel individual nele, o filme pode exercer um efeito particularmente motivador (o que nos traz de novo às questões relativas a cinema e educação).
A força significativa está em que As Vinhas da Ira é um retrato ultra-realista e detalhado das migrações dos “sem-terra” norte-americanos dos anos 30, expulsos pelos bancos e corporações – ou seja, estruturas maquinais e “invisíveis” do moderno capitalismo financeiro – de suas terras que os avós conquistaram como pioneiros na expansão para o oeste. O romance original de John Steinbeck insere-se na linha do neo-realismo literário, que buscava a denúncia social inspirada por ideais marxistas (nesse aspecto, tanto o romance de Steinbeck, quanto o filme de John Ford possuem um lado evidente e decididamente “vermelho”; dificilmente, após a II Guerra Mundial, Hollywood permitiria que um filme assim fosse realizado). No Brasil, o romance regionalista da década de 30 é o que mais se aproxima dessa tendência, em escritores como Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e o Jorge Amado na fase inicial.
Mas o filme trata de todas essas particularidades não como um “romance de tese” – típico do primeiro realismo e do naturalismo literário do século XIX. John Ford, à maneira do que faria o cinema neo-realista italiano, mostra o social pelo viés do psicológico, ou melhor, do humano. Não quero dizer “psicológico”, pois poderia fazer pensar que há aqui todo aquele peso da psicanálise, das ciências psicológicas, o que nos levaria de volta ao “romance de tese”. As Vinhas da Ira é carregado de um olhar profundamente humano, francamente subjetivo, empático, que sofre junto o sofrimento do outro e se alegra com a esperança, com o espírito que permanece sempre vivo, apesar de toda a privação material. Eis o belo do filme. E, graças a essa visão humana dos fatos, a obra de John Ford transcende as dimensões mais históricas, universaliza-se, torna-se uma parábola arquetípica de proporções riquíssimas quase infinitas.
Há muitos elementos do filme, tanto os literários quanto os especificamente cinematográficos, que atestam a dimensão alegórica. Como exemplo dos primeiros, temos as falas das personagens, que, em alguns momentos, tornam-se verdadeiros discursos (poderíamos fazer uma crítica negativa aqui, dizendo que aquelas pessoas não teriam o esclarecimento de visão e de pensamento, tampouco a articulação de linguagem necessários a tais discursos, que soariam, assim, inverossímeis, exemplo típico da voz ideológica do narrador-autor ventríloquo. Neste aspecto, a zoomorfização que ganham os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos seria mais adequada, embora haja o risco de se cair em preconceitos deterministas; enfim, isso tudo é muito complicado. A propósito, ainda não vi o filme de Nelson Pereira dos Santos). O monólogo de Tom Joad no fim do filme (o grande, grande Henry Fonda), o “filho pródigo” às avessas que tem que abandonar a família para protegê-la e a si mesmo, mostra-nos com toda a força do artista que absolutamente não interessam questões mesquinhas de “esquerda” ou de “direita”, e sim a luta universal do homem contra as forças que procuram derrubá-lo – dentre as quais se destaca o próprio homem, através do medo, da dúvida e da falta de esperança subjetivos (o homem que causa mal a si mesmo), e através da opressão material e objetiva exercida nas estruturas sociais (o homem que causa mal a outro homem). As Vinhas da Ira é uma grande afirmação do espírito humano (parece que o final otimista não está no livro de Steinbeck).
O discurso da matriarca da família Joad (Ma Joad, interpretada por Jane Darwell, que ganhou um Oscar por isso) também é altamente significativo, ela representa o verdadeiro arquétipo da Grande Mãe: a tragédia da família Joad é que ela foi expulsa, desenraizada violentamente da Mãe Terra, na qual nascera e sempre vivera; mesmo assim, a família (só) permanece unida, coesa e coerente física e psiquicamente, graças à presença da figura feminina da mãe natural, a Ma Joad, que, assim como a Mãe Terra, é expressão do arquétipo da Grande Mãe. A Mãe Terra: as cenas, no começo do filme, com o pobre diabo Muley também merecem ser lembradas; contrariando os novos donos, ele diz que nascer, viver e morrer em uma terra é o que faz com que seja nossa, e não um pedaço de papel escrito com letras bonitas. É a natureza contra a cultura: o papel, que vem originalmente da terra, representa em si todo o processo industrial que destrói a mesma terra-mãe, processo que corre violentamente rumo a uma segunda natureza, em parte maquinal (os tratores que derrubam as casas dos farmers), em parte invisível (as corporações e os bancos), em todo caso desumana. É cômico e trágico e penoso ver os pobres lavradores, em toda a sua ingenuidade natural, discutindo com os representantes e empregados dos novos donos da terra, perguntando e procurando desesperadamente quem é o “culpado”, com quem devem eles verdadeiramente reclamar, xingar, chorar, eventualmente bater e atirar com a espingarda. Admirável mundo novo!
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