segunda-feira, julho 16, 2007

A Noite dos Mortos Vivos


O grande poeta e crítico literário norte-americano Ezra Pound, em seu ABC da Literatura, fala de dois tipos de escritores: os inventores, que simplesmente criam novos paradigmas, e os mestres, que dão perfeita continuidade a uma tradição já existente. George Romero, com os seus filmes de zumbis, está na intersecção das duas espécies de artistas. Por um lado, Romero traz a si (e lança até nós) todo o universo das fitas de horror, de monstros sanguinolentos – no caso, os mortos-vivos canibais, os zumbis, que remetem a muitas e variadas mitologias, embora a mais próxima da literatura e do cinema ocidentais seja a mitologia voodoo, que primeiro aparece no romance satírico O Zumbi do grande Peru (1697), do francês Pierre-Corneille; no cinema, o mais antigo “filme de zumbi” é White Zombie (1932), dirigido por Victor Halperin e estrelado por Bela Lugosi.

A mais remota referência mítica aos mortos comedores de carne humana dos vivos talvez se encontre na epopéia de Gilgamesh (lendário rei sumério que teria vivido entre 2750 e 2500 a.C.), considerada o mais antigo texto literário da humanidade (sua forma original é a de tábuas de argila com escrita cuneiforme; algumas dessas tábuas datam do século XX a.C.). No texto, a deusa Ishtar esbraveja as seguintes palavras proféticas:

Eu derrubarei os portões do mundo subterrâneo,
Eu arrancarei os batentes das portas e deixarei as portas caídas no chão,
E deixarei os mortos subirem e comerem os vivos!
E os mortos superarão em número os vivos!

Por outro lado, George Romero dá uma roupagem formal e temática completamente novas ao arquétipo (pois, sem dúvida nenhuma, os mortos-vivos têm grande potencial arquetípico) do zumbi: em primeiro lugar, o roteirista e diretor deixa de lado os elementos “voodoo”; inspirado pela ficção científica comum dos anos 50, Romero trata a questão da “epidemia de zumbis” como se fosse uma invasão alienígena – a qual, naturalmente, mobilizará toda a sociedade (particularmente os militares) um estado de emergência, de catástrofe que beira as raias do apocalíptico. Esta é a primeira grande invenção de George Romero: unir o apocalipse e o pós-apocalipse míticos das histórias de ficção científica como A Guerra dos Mundos (de H. G. Wells, filmada recentemente por Steven Spielberg) ao horror do sobrenatural, que, ainda assim, não é tão sobrenatural; Romero mantêm-se na chave científico-espacial, ao especular, em A Noite dos Mortos-Vivos, que a tragédia tenha sido causada pela forte e peculiar radiação que um satélite teria trazido de Vênus. O embasamento científico de fenômenos sobrenaturais é necessidade psíquica da cultura de nossos tempos, de acordo com Carl Gustav Jung. Mas os monstros de Romero não são extraterrestres, eles não vêm de fora, eles vêm de dentro: somos nós mesmos.

De qualquer maneira, o interessante aqui (estamos falando de A Noite dos Mortos Vivos, de 1968, o primeiro filme da série; mas muitas das conclusões podem se aplicar também às outras partes: Despertar dos Mortos – 1978 –, Dia dos Mortos – 1985 –, e Terra dos Mortos – 2005) é perceber que Romero, como nos grandes romances, trabalha nas duas frentes da experiência humana: a individual e a coletiva. No microcosmo individual, os filmes são como muitas fitas de horror: num foco narrativo bem próximo, bem subjetivo, temos uma pessoa, ou grupo pequeno de pessoas, perseguida pelo “outro” monstruoso, fantasmagórico, desconhecido. Já no macrocosmo coletivo, vemos toda a seriedade da situação do “dia do juízo”: a sociedade se esfacelando e agonizando devagar, sem que qualquer autoridade ou instituição consiga dar explicações ou soluções, ao ponto em que não há mais leis – apenas a da “selva”: é cada um por si e contra todos os outros; a barbárie e a selvageria histérica se instauram com todo o poder de uma libido que antes era reprimida; os vivos, os sobreviventes – que em princípio eram vítimas – tornam-se um perigo tão grande ou maior uns para os outros do que os mortos-vivos. Eis o verdadeiro embate: de um lado os mortos-vivos, de outro os “vivos-mortos” (disputa que ficará mais evidente, com toques de ironia e sátira, em Despertar dos Mortos).

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