A arte do cinema de George Romero aparece nos pequenos detalhes: são rápidos momentos em que a câmera vai mostrando coisas aqui e ali, sem fixar muito nelas, apenas o suficiente para percebermos que há um homem atrás da máquina filmadora que quer que nós vejamos algo. E essa visão provoca uma reflexão. Esses planos curtos, muitas vezes em close-up, estão presentes nos quatro filmes da série dos “mortos-vivos”.
Logo no início de Dia dos Mortos (1985), somos bombardeados com vários planos mostrando a “cidade-fantasma”, totalmente deserta (imaginamos que já se tenham passado no mínimo alguns meses desde o início do “apocalipse zumbi”). Vemos um monte de dinheiro espalhado sendo carregado pelo vento (!), enquanto que, na porta de um banco, um crocodilo monta guarda; também jogado na rua, a primeira página de um jornal, cuja manchete é: “THE DEAD WALK!”. Já não há mais qualquer sinal da civilização que, no filme anterior (Despertar dos Mortos – 1978), agonizava. É o pós-apocalipse. Talvez possamos dividir os filmes da série de acordo com o seguinte esquema:
Noite dos Mortos Vivos: os primeiros ventos que anunciam a tempestade.
Despertar dos Mortos: o auge da tormenta, que tudo toma e tudo devasta.
Dia dos Mortos: a calmaria após, as imagens decadentes do que ficou para trás.
Terra dos Mortos: a reconstrução (é o mais otimista de todos os filmes).
Lembremos que, nas duas últimas partes, a epidemia de zumbis ainda continua. Muito já se falou do filme-catástrofe. Romero criou a série-catástrofe, nos mesmos moldes do roman-fleuve francês (“romance-rio”): tratam-se de obras como A Comédia Humana, de Balzac, que são compostas de vários romances com enredos e personagens mais ou menos independentes e exclusivos, mas que se encadeiam dentro de uma mega-situação, um contexto que envolve a todos; o romance-rio é um grande painel desse contexto, como um rio que atravessa várias paragens, unindo-as e arrastando muitas coisas de um lugar para outro... Um grande romance composto por romances menores. Assim é o cinema de Romero: um grande e único filme (com toda a dignidade da epopéia) formado por diversas partes relativamente independentes, mas com conexões muito significativas.
Voltando ao começo: a abertura de Dia dos Mortos é a melhor de todos os filmes, no que diz respeito à fotografia e à montagem – apesar de as aberturas de Despertar... e de Terra dos Mortos também serem bastante estimulantes. Basta citar a cabeça (completamente deformada) de um zumbi que aparece na frente da câmera (colocada em contre-plongée – de baixo para cima), tapando o sol, enquanto se sobrepõe ao lado o letreiro do título do filme... Essa imagem é demais!
Entretanto, nesta terceira parte do épico apocalíptico de Romero, os zumbis são o de menos; é o filme em que eles menos aparecem – de fato, aparecem pouco, levando em consideração o tempo total da projeção. Aqui, o debate psicológico, político, social, enfim, a filosofia de George Romero aparece com muito mais força. Temos um grupo dividido entre militares e cientistas que ocupam um abrigo subterrâneo e estão no limite de um ataque de nervos. A tensão é fortíssima, qualquer faísca e eles se matam uns aos outros, pois estão presos ali sabe-se lá quanto tempo, sem ter qualquer notícia de como anda o mundo exterior (além da cidade deserta próxima). Os cientistas trabalham duro para explicar a “doença” dos zumbis, achando assim uma “cura”; ou, pelo menos, tentar condicioná-los a se “comportarem”, domesticando-os (ah, a ambição do homem iluminista!...). Vários zumbis têm que ser capturados para essas pesquisas perigosas, o que descontenta os militares, os quais buscam uma solução mais drástica, ou seja, militar...
Trocando em miúdos: de um lado se tem a arrogância estúpida da ciência; de outro, a arrogância estúpida da mentalidade bélica. Me digam se isso não continua definindo o atual estado de coisas, em nosso mundo “real”? Enfim, a subversão de Romero continua; outro momento provocante: o militar regando e cuidando carinhosamente de uns pezinhos de cannabis...
O abrigo subterrâneo faz parte de um imenso complexo onde estão armazenados, como numa “biblioteca de Babel”, os mais variados tipos de registros e de documentos das mais variadas áreas da sociedade norte-americana, incluindo negativos de obras cinematográficas importantes. É uma espécie de arca de Noé material. É interessantíssimo o longo e carregado discurso do piloto John (Terry Alexander), em que ele recomenda à Sarah (Lori Cardille) que jamais traga os seus filhos para redescobrirem os “tesouros” enterrados. Para ele, o apocalipse zumbi é um castigo divino pelos rumos que o homem deu à própria civilização. Essa fala longa, de muita especulação filosófica, fez-me lembrar dos filmes de Andrei Tarkovski – como Andrei Rublev e Solaris: só mesmo o horror absoluto ou o absolutamente inexplicável (essas duas coisas podem ainda estar ligadas) para tirar o homem da sua alienação cômoda do dia-a-dia e fazê-lo refletir sobre coisas mais sérias e mudar de atitude.
Quanto aos mortos-vivos, que, repito, são o que menos importa neste filme (menos ainda do que nos outros), aqui eles adquirem um caráter mais humano – e não só por causa da qualidade maior da maquiagem: chama a atenção as suas expressões de sofrimento. Há até um personagem zumbi (personagem central, eu digo): Bub. A importância de Bub para a mitologia dos zumbis de Romero é bem grande; a humanização dos mortos-vivos continuará e progredirá em Terra dos Mortos (2005). Tais coisas só encontramos nos filmes de “zumbis” de George Romero. Compreende-se o porquê de o cineasta ter Dia dos Mortos como seu filme preferido: das quatro partes, esta é a mais tensa e densa, em todos os aspectos que compõem o “DNA” do gênero criado por Romero – do qual ainda é o mestre supremo. Dia dos Mortos é pior do que apocalíptico: é claustrofóbico. Naturalmente, não há tanto da ironia presente no filme anterior; mesmo assim, ela está presente em um ou dois momentos.
Logo no início de Dia dos Mortos (1985), somos bombardeados com vários planos mostrando a “cidade-fantasma”, totalmente deserta (imaginamos que já se tenham passado no mínimo alguns meses desde o início do “apocalipse zumbi”). Vemos um monte de dinheiro espalhado sendo carregado pelo vento (!), enquanto que, na porta de um banco, um crocodilo monta guarda; também jogado na rua, a primeira página de um jornal, cuja manchete é: “THE DEAD WALK!”. Já não há mais qualquer sinal da civilização que, no filme anterior (Despertar dos Mortos – 1978), agonizava. É o pós-apocalipse. Talvez possamos dividir os filmes da série de acordo com o seguinte esquema:
Noite dos Mortos Vivos: os primeiros ventos que anunciam a tempestade.
Despertar dos Mortos: o auge da tormenta, que tudo toma e tudo devasta.
Dia dos Mortos: a calmaria após, as imagens decadentes do que ficou para trás.
Terra dos Mortos: a reconstrução (é o mais otimista de todos os filmes).
Lembremos que, nas duas últimas partes, a epidemia de zumbis ainda continua. Muito já se falou do filme-catástrofe. Romero criou a série-catástrofe, nos mesmos moldes do roman-fleuve francês (“romance-rio”): tratam-se de obras como A Comédia Humana, de Balzac, que são compostas de vários romances com enredos e personagens mais ou menos independentes e exclusivos, mas que se encadeiam dentro de uma mega-situação, um contexto que envolve a todos; o romance-rio é um grande painel desse contexto, como um rio que atravessa várias paragens, unindo-as e arrastando muitas coisas de um lugar para outro... Um grande romance composto por romances menores. Assim é o cinema de Romero: um grande e único filme (com toda a dignidade da epopéia) formado por diversas partes relativamente independentes, mas com conexões muito significativas.
Voltando ao começo: a abertura de Dia dos Mortos é a melhor de todos os filmes, no que diz respeito à fotografia e à montagem – apesar de as aberturas de Despertar... e de Terra dos Mortos também serem bastante estimulantes. Basta citar a cabeça (completamente deformada) de um zumbi que aparece na frente da câmera (colocada em contre-plongée – de baixo para cima), tapando o sol, enquanto se sobrepõe ao lado o letreiro do título do filme... Essa imagem é demais!
Entretanto, nesta terceira parte do épico apocalíptico de Romero, os zumbis são o de menos; é o filme em que eles menos aparecem – de fato, aparecem pouco, levando em consideração o tempo total da projeção. Aqui, o debate psicológico, político, social, enfim, a filosofia de George Romero aparece com muito mais força. Temos um grupo dividido entre militares e cientistas que ocupam um abrigo subterrâneo e estão no limite de um ataque de nervos. A tensão é fortíssima, qualquer faísca e eles se matam uns aos outros, pois estão presos ali sabe-se lá quanto tempo, sem ter qualquer notícia de como anda o mundo exterior (além da cidade deserta próxima). Os cientistas trabalham duro para explicar a “doença” dos zumbis, achando assim uma “cura”; ou, pelo menos, tentar condicioná-los a se “comportarem”, domesticando-os (ah, a ambição do homem iluminista!...). Vários zumbis têm que ser capturados para essas pesquisas perigosas, o que descontenta os militares, os quais buscam uma solução mais drástica, ou seja, militar...
Trocando em miúdos: de um lado se tem a arrogância estúpida da ciência; de outro, a arrogância estúpida da mentalidade bélica. Me digam se isso não continua definindo o atual estado de coisas, em nosso mundo “real”? Enfim, a subversão de Romero continua; outro momento provocante: o militar regando e cuidando carinhosamente de uns pezinhos de cannabis...
O abrigo subterrâneo faz parte de um imenso complexo onde estão armazenados, como numa “biblioteca de Babel”, os mais variados tipos de registros e de documentos das mais variadas áreas da sociedade norte-americana, incluindo negativos de obras cinematográficas importantes. É uma espécie de arca de Noé material. É interessantíssimo o longo e carregado discurso do piloto John (Terry Alexander), em que ele recomenda à Sarah (Lori Cardille) que jamais traga os seus filhos para redescobrirem os “tesouros” enterrados. Para ele, o apocalipse zumbi é um castigo divino pelos rumos que o homem deu à própria civilização. Essa fala longa, de muita especulação filosófica, fez-me lembrar dos filmes de Andrei Tarkovski – como Andrei Rublev e Solaris: só mesmo o horror absoluto ou o absolutamente inexplicável (essas duas coisas podem ainda estar ligadas) para tirar o homem da sua alienação cômoda do dia-a-dia e fazê-lo refletir sobre coisas mais sérias e mudar de atitude.
Quanto aos mortos-vivos, que, repito, são o que menos importa neste filme (menos ainda do que nos outros), aqui eles adquirem um caráter mais humano – e não só por causa da qualidade maior da maquiagem: chama a atenção as suas expressões de sofrimento. Há até um personagem zumbi (personagem central, eu digo): Bub. A importância de Bub para a mitologia dos zumbis de Romero é bem grande; a humanização dos mortos-vivos continuará e progredirá em Terra dos Mortos (2005). Tais coisas só encontramos nos filmes de “zumbis” de George Romero. Compreende-se o porquê de o cineasta ter Dia dos Mortos como seu filme preferido: das quatro partes, esta é a mais tensa e densa, em todos os aspectos que compõem o “DNA” do gênero criado por Romero – do qual ainda é o mestre supremo. Dia dos Mortos é pior do que apocalíptico: é claustrofóbico. Naturalmente, não há tanto da ironia presente no filme anterior; mesmo assim, ela está presente em um ou dois momentos.
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