Tim Burton é, definitivamente, o detentor atual do cetro de Georges Méliès. Mais do que qualquer outro diretor contemporâneo que queira se embrenhar pela fantasia, provocadora da fascinação que fez o Cinema nascer como arte e como entretenimento (e, conseqüentemente, como indústria). Às vezes, costuma-se relacionar o caráter autoral da obra de Burton com o caráter “impessoal” da indústria de Hollywood como se fossem óleo e água. Mas os conectivos que se devem usar nesta associação não são os do tipo de “porém” ou “embora”; e sim aqueles que dizem “pois” ou “portanto”. Pois o cinema de Burton é, por natureza, um cinema “comercial”. E a arte do diretor não está (apenas) em injetar conteúdos “profundos” em seus filmes feitos sob encomenda. Está sobretudo em fazer uma arte da melhor qualidade utilizando-se muito criativamente dos padrões que definem o “cinemão”. Sem se distanciar desses padrões, nem satirizá-los cinicamente (pelo menos, não apenas isso). Tim Burton faz, em primeiro lugar e acima de tudo, perfeitas obras de entretenimento, elevando-as ao grau máximo do seu potencial. Em segundo lugar (nas camadas mais profundas que toda obra de arte deve ter), o cineasta coloca e discute suas questões mais profundas, para serem apreciadas pelos espectadores mais “adultos”.
Entretanto, os filmes de Burton são tão bem equilibrados em seus propósitos e na sua estética, que talvez nem convenha falar em sobreposição de “camadas”. É tudo simultâneo, tudo interligado em primeiro plano. É claro que, dependendo de com que olhos se assiste às fitas, alguns aspectos saltarão mais do que outros; mas os olhares bem balanceados perceberão a incrível polivalência dos filmes do diretor de Batman, O Retorno (1992), e como ela é trabalhada por todos os lados sem deixar nada para trás. E não devemos nos esquecer jamais de que a primeira grande e eficaz aproximação entre o cinematógrafo e a arte do espetáculo pertence ao prestidigitador (ilusionista) Méliès. O francês foi o primeiro a entender plenamente o potencial mítico do Cinema, como veículo dos sonhos, das fantasias, das alegrias, esperanças, dores e sofrimentos humanos. Tudo isto e muito mais é mostrado com todo o poder da clareza e da realidade trazidas pelo cinematógrafo – e transformadas com todo o engenho do mágico cineasta. E tudo isto é exatamente o que reencontramos na obra de Tim Burton.
Ele se aproveita de toda a (hoje avançadíssima) máquina da indústria cinematográfica e de todos os elementos mais tradicionais da Sétima Arte (sem deixar nenhum de lado, o que está dentro da qualidade polivalente de que falei no parágrafo anterior) na construção engenhosa do seu espetáculo epifânico. Engenho e epifania: duas palavras que remetem a campos completamente opostos (o humano e o divino), mas que se encontram perfeitamente unificadas no cinema de realizadores que assumem para si mesmos a tarefa de Prometeu. Eis o mito que literalmente anima o cinema, de Méliès a Burton. Em Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (“Sweeney Todd – The Demon Barber of Fleet Street”, EUA / Inglaterra, 2007), todos os aspectos do audiovisual são pensados e trabalhados com incrível esmero: a direção de arte (que ganhou um Oscar), os figurinos, os atores (com destaque para Johnny Depp, Helena Bonhan-Carter, Alan Rickman e Sacha Baron Cohen), a fotografia, a montagem, a trilha sonora e os efeitos especiais computadorizados (na abertura e numa estonteante e impossível panorâmica).
O espetáculo é o de um delicioso conto de fadas gótico (lembremos que Tim Burton é, atualmente, o maior herdeiro da Arte Romântica no Cinema): a história de Benjamin Barker (Johnny Depp), um pacato barbeiro londrino que é preso, julgado e sentenciado injustamente ao exílio por um juiz sem escrúpulos (Alan Rickman) que está interessado em sua mulher. Quinze anos depois, ele retorna para se vingar, disfarçado sob a alcunha de Sweeney Todd, também barbeiro. Até conseguir pegar o juiz, Todd “treinará” a sua vingança em (quase – este detalhe é importante, veja o filme com atenção, pois não vou fazer “spoiler” aqui) todas as pessoas que sentarem em sua cadeira de barbearia, com a cumplicidade da miserável Mrs. Lovett (Helena Bonham Carter), que usará a carne dos mortos para rechear as tortas que ela vende em seu “bistrô”. E toma-se gargantas cortadas à navalha (motivo que ecoa bastante também em Os Senhores do Crime, de David Cronenberg), em banhos e esguichos de sangue literalmente espetaculares. Pois todo este sangue está mais para um motivo literário-plástico do que para a coisa de fato. É impossível não lembrar aqui a famosíssima frase de Godard: “Não é sangue, é vermelho!”
De fato, é vermelho. E muito vermelho. A cor, a textura e a densidade do sangue em Sweeney Todd são propositalmente inverossímeis. Assim, o filme não é violento. É uma fábula, um “causo” que se conta. Violentos são os filmes de Quentin Tarantino, mal-disfarçados de fantasia. Este filme de Tim Burton é teatro, e teatro do mais puro: o roteiro é a adaptação de um musical da Broadway, com partitura assinada por Stephen Sondheim; a história original do barbeiro demoníaco é uma lenda urbana (com várias versões) da Inglaterra do século XIX, que pode ou não ter alguma base real (Sweeney Todd é um dos primeiros “serial killers” a aparecerem na cultura moderna). O vermelho vivo do sangue que domina este filme é o único elemento “real” que contrasta com o cinza, com o escuro sombrio e nevoento da Londres “Gotham City” de Burton. No reino do imaginário, temos as cores claras e os ambientes ensolarados do passado feliz de Benjamin Barker e dos sonhos esperançosos de Mrs. Lovett. Mas o bem final aqui jamais se concretizará; a maldição é irreversível e irremediável, ao contrário do que se vê em A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (“Sleepy Hollow”, 1999).
Agora, o que há de ser mais maravilhoso (literalmente) neste filme é o fato de ser um musical (!). Não por ser um musical que se oponha aos musicais tradicionais do cinema (já há diversos filmes que fazem isso, que destroem ou desconstroem o gênero, basta lembrar Dançando no Escuro, do famigerado Lars Von Trier); mas por ser um musical diferente, sem deixar de ser musical, de ter a alma musical e de concordar com tudo o que há a respeito de musical até o fundo... Um musical negativo (mas não negador), mas mesmo assim um musical; um musical gótico, ou “punk rock”, como o definiu Johnny Depp. De qualquer forma, está nos antípodas da felicidade, da luz e da deliciosa simplicidade do cinema musical clássico norte-americano (Gene Kelly, Fred Astaire). É muito interessante opor as cores vivas e chapadas do technicolor daqueles filmes aos tons praticamente expressionistas de Sweeney Todd (aliás, a direção de arte neste filme é quase tão delirante quanto O Gabinete do Dr. Caligari); ou ligar aquelas cores ao vermelho-tinta que é a única cor de verdade aqui. Mas o toque final da sutileza de Burton é o fato de ser um filme quase que inteiramente cantado (neste caso, ele estaria mais para uma espécie de Os Guarda-Chuvas do Amor gótico, em referência à clássica película de Jacques Demy), no qual – não obstante, o que mais se vê em segundo lugar são gargantas sendo cortadas e suas vítimas sufocando com aqueles ruídos agonizantes (principalmente para o espectador).
Epiphany
I had him!
Entretanto, os filmes de Burton são tão bem equilibrados em seus propósitos e na sua estética, que talvez nem convenha falar em sobreposição de “camadas”. É tudo simultâneo, tudo interligado em primeiro plano. É claro que, dependendo de com que olhos se assiste às fitas, alguns aspectos saltarão mais do que outros; mas os olhares bem balanceados perceberão a incrível polivalência dos filmes do diretor de Batman, O Retorno (1992), e como ela é trabalhada por todos os lados sem deixar nada para trás. E não devemos nos esquecer jamais de que a primeira grande e eficaz aproximação entre o cinematógrafo e a arte do espetáculo pertence ao prestidigitador (ilusionista) Méliès. O francês foi o primeiro a entender plenamente o potencial mítico do Cinema, como veículo dos sonhos, das fantasias, das alegrias, esperanças, dores e sofrimentos humanos. Tudo isto e muito mais é mostrado com todo o poder da clareza e da realidade trazidas pelo cinematógrafo – e transformadas com todo o engenho do mágico cineasta. E tudo isto é exatamente o que reencontramos na obra de Tim Burton.
Ele se aproveita de toda a (hoje avançadíssima) máquina da indústria cinematográfica e de todos os elementos mais tradicionais da Sétima Arte (sem deixar nenhum de lado, o que está dentro da qualidade polivalente de que falei no parágrafo anterior) na construção engenhosa do seu espetáculo epifânico. Engenho e epifania: duas palavras que remetem a campos completamente opostos (o humano e o divino), mas que se encontram perfeitamente unificadas no cinema de realizadores que assumem para si mesmos a tarefa de Prometeu. Eis o mito que literalmente anima o cinema, de Méliès a Burton. Em Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (“Sweeney Todd – The Demon Barber of Fleet Street”, EUA / Inglaterra, 2007), todos os aspectos do audiovisual são pensados e trabalhados com incrível esmero: a direção de arte (que ganhou um Oscar), os figurinos, os atores (com destaque para Johnny Depp, Helena Bonhan-Carter, Alan Rickman e Sacha Baron Cohen), a fotografia, a montagem, a trilha sonora e os efeitos especiais computadorizados (na abertura e numa estonteante e impossível panorâmica).
O espetáculo é o de um delicioso conto de fadas gótico (lembremos que Tim Burton é, atualmente, o maior herdeiro da Arte Romântica no Cinema): a história de Benjamin Barker (Johnny Depp), um pacato barbeiro londrino que é preso, julgado e sentenciado injustamente ao exílio por um juiz sem escrúpulos (Alan Rickman) que está interessado em sua mulher. Quinze anos depois, ele retorna para se vingar, disfarçado sob a alcunha de Sweeney Todd, também barbeiro. Até conseguir pegar o juiz, Todd “treinará” a sua vingança em (quase – este detalhe é importante, veja o filme com atenção, pois não vou fazer “spoiler” aqui) todas as pessoas que sentarem em sua cadeira de barbearia, com a cumplicidade da miserável Mrs. Lovett (Helena Bonham Carter), que usará a carne dos mortos para rechear as tortas que ela vende em seu “bistrô”. E toma-se gargantas cortadas à navalha (motivo que ecoa bastante também em Os Senhores do Crime, de David Cronenberg), em banhos e esguichos de sangue literalmente espetaculares. Pois todo este sangue está mais para um motivo literário-plástico do que para a coisa de fato. É impossível não lembrar aqui a famosíssima frase de Godard: “Não é sangue, é vermelho!”
De fato, é vermelho. E muito vermelho. A cor, a textura e a densidade do sangue em Sweeney Todd são propositalmente inverossímeis. Assim, o filme não é violento. É uma fábula, um “causo” que se conta. Violentos são os filmes de Quentin Tarantino, mal-disfarçados de fantasia. Este filme de Tim Burton é teatro, e teatro do mais puro: o roteiro é a adaptação de um musical da Broadway, com partitura assinada por Stephen Sondheim; a história original do barbeiro demoníaco é uma lenda urbana (com várias versões) da Inglaterra do século XIX, que pode ou não ter alguma base real (Sweeney Todd é um dos primeiros “serial killers” a aparecerem na cultura moderna). O vermelho vivo do sangue que domina este filme é o único elemento “real” que contrasta com o cinza, com o escuro sombrio e nevoento da Londres “Gotham City” de Burton. No reino do imaginário, temos as cores claras e os ambientes ensolarados do passado feliz de Benjamin Barker e dos sonhos esperançosos de Mrs. Lovett. Mas o bem final aqui jamais se concretizará; a maldição é irreversível e irremediável, ao contrário do que se vê em A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (“Sleepy Hollow”, 1999).
Agora, o que há de ser mais maravilhoso (literalmente) neste filme é o fato de ser um musical (!). Não por ser um musical que se oponha aos musicais tradicionais do cinema (já há diversos filmes que fazem isso, que destroem ou desconstroem o gênero, basta lembrar Dançando no Escuro, do famigerado Lars Von Trier); mas por ser um musical diferente, sem deixar de ser musical, de ter a alma musical e de concordar com tudo o que há a respeito de musical até o fundo... Um musical negativo (mas não negador), mas mesmo assim um musical; um musical gótico, ou “punk rock”, como o definiu Johnny Depp. De qualquer forma, está nos antípodas da felicidade, da luz e da deliciosa simplicidade do cinema musical clássico norte-americano (Gene Kelly, Fred Astaire). É muito interessante opor as cores vivas e chapadas do technicolor daqueles filmes aos tons praticamente expressionistas de Sweeney Todd (aliás, a direção de arte neste filme é quase tão delirante quanto O Gabinete do Dr. Caligari); ou ligar aquelas cores ao vermelho-tinta que é a única cor de verdade aqui. Mas o toque final da sutileza de Burton é o fato de ser um filme quase que inteiramente cantado (neste caso, ele estaria mais para uma espécie de Os Guarda-Chuvas do Amor gótico, em referência à clássica película de Jacques Demy), no qual – não obstante, o que mais se vê em segundo lugar são gargantas sendo cortadas e suas vítimas sufocando com aqueles ruídos agonizantes (principalmente para o espectador).
Epiphany
I had him!
His throat was there beneath my hand.
No, I had him!
His throat was there and now he'll never come again.
Mrs. Lovett: Easy now, hush love hush
I keep telling you, Whats your rush?
Todd: When? Why did I wait?
You told me to wait -
Now he'll never come again.
There's a hole in the world like a great black pit
And it's filled with people who are filled with shit
And the vermin of the world inhabit it.
But not for long...
They all deserve to die.
They all deserve to die.
Tell you why, Mrs. Lovett, tell you why.
Because in all of the whole human race
Mrs. Lovett, there are two kinds of men and only two
There's the one staying put in his proper place
And the one with his foot in the other one's face
Look at me, Mrs Lovett, look at you.
No, we all deserve to die
No, we all deserve to die
Tell you why, Mrs. Lovett, tell you why.
Because the lives of the wicked should be made brief
For the rest of us death will be a relief
We all deserve to die.
And I'll never see Johanna
And I'll never see Johanna
No I'll never hug my girl to me - finished!
Alright! You sir, you sir, how about a shave?
Come and visit your good friend Sweeney.
You sir, too sir? Welcome to the grave.
I will have vengenance.
I will have vengenance.
I will have salvation.
Who sir, you sir?
No ones in the chair, Come on! Come on!
Sweeney's. waiting. I want you bleeders.
You sir! Anybody!
Gentlemen now don't be shy!
Not one man, no, nor ten men.
Not one man, no, nor ten men.
Nor a hundred can assuage me.
I will have you!
And I will get him back even as he gloats
In the meantime I'll practice on less honorable throats.
And my Lucy lies in ashes
And I'll never see my girl again.
But the work waits!
But the work waits!
I'm alive at last!
And I'm full of joy!
3 comentários:
Excelente texto sobre o filme e principalmente Burtom - acho que a anos ele vem se consolidando como o maior diretor americano no sentido de ser sincero com sua filmografia, de praticar um autêntico "cinema de autor" como tanto pregam os frances e criticam a falta desse tipo de cineasta nod EUA. Tim não precisa de reconhecimento algumd a academia, ele está muitos anos além disso. Para que um Oscar na sala de casa? Mudaroia seu tipo de cinema, lhe daria outro status? Com certeza não.
É verdade! Tim Burton é cinema de autor sem sair dos padrões hollywoodianos, e sem contrariá-los. É arte e entretenimento ao mesmo tempo, sem que essas coisas pareçam ser duas coisas opostas quando a gente vê um filme dele. É incrível ele conseguir isso...
O cenário é uma das coisas que eu gostava no filme, além do elenco foi ótimo especialmente Jonny Deep bem devo admitir que apesar de ser um musical o roteiro era bastante atraente, cujo mérito deve entregá-lo a J. Logan. Altamente recomendado.
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