Como não há edição no nosso bom Português da grande Cahiers du Cinema, aqui venho eu novamente para piratear parte do seu conteúdo, mal traduzido. O artigo abaixo saiu na mais recente edição da revista (número 632, março de 2008) e está disponível gratuitamente on-line (em francês, é claro) no site oficial.
O Cinema Americano no momento de Sangue Negro: Desejos de Grandiosidade
Por Stéphane Delorme
1. No momento de sua entrevista para os Cahiers (n. 628), Coppola constatou que os cineastas americanos tinham todos passado às técnicas do vídeo e do digital, todos exceto um: Paul Thomas Anderson. A imagem de Daniel Plainview (Daniel Day Lewis), cavando solitariamente com uma picareta o seu poço no meio do deserto, em Sangue Negro, seria por um acaso a imagem onírica que P. T. A. teria a respeito de um pioneiro do cinema, estendendo a película entre os dedos? Quem teria acreditado, tendo em vista os arabescos vãos pós Robert Altman de seus filmes anteriores, que este jovem cineasta (nascido em 1970) encarnaria hoje a figura do pioneiro, desbravando e perfurando num único gesto o Cinema e a América, como os “grandes” cineastas do século passado? O que surpreende tanto em Sangue Negro é a ambição de rivalizar com os mestres e de fazer um cinema não-datado, eterno e universal: na falta de um cinema que possa ser taxado de “pós” alguma coisa – para o nosso alívio – fica-se com o sentimento de um cinema que estaria “por detrás” de tudo, mas como um monumento isolado, uma estrela cuja solidão tem muito a ver com a arrogância narcisista dos seus heróis. Mas não se trata, na verdade, de “estar na base de tudo”, mas bem de rivalizar com Coppola, Kubrick ou Welles; P. T. A. deseja provar a sua maturidade. De modo bizarro, o cinema americano contemporâneo não nos tem habituado a uma tamanha ambição. A sensação é de que, se deixassem de lado o gênero e a cinefilia, os cineastas entrariam em pânico. A História e a Metafísica – que são reduzidas em Hollywood à América e ao Mal – são reservadas como as caças que se guardam aos grandes anciãos (Gangues de Nova York e O Aviador, de Scorsese, e O Novo Mundo de Malick). O espaço para outros jogos parece singularmente retraído.
2. Há dois anos atrás (Cahiers 614), uma constatação deprimente sobre o cinema americano revelou o que parece ser o fracasso da atual geração: os mesmos nomes que surgiram na cena cinematográfica durante os anos 1960 e 1970 continuam a dominá-la. Dois livros traduzidos recentemente tentam dar à geração dos anos 1990 a sua dignidade: Sexe, mensonges et Hollywood, de Peter Biskind; e Les Six Samouraïs: Hollywood somnolait, ils l’ont réveillé!, de Sharon Waxman. Os seis samurais não precisam ser lembrados: Steven Soderbergh, David Fincher, Quentin Tarantino, P. T. Anderson, Spike Jonze, David O. Russell. Estes cineastas, ditos “revolucionários”, somente o são por causa do seu impacto econômico e por sua passagem rápida da independência ao sistema. O ponto comum deles, mais ou menos oportunista, é uma certa idéia de juventude: dinamismo, ironia, desenvoltura, cultura “junk”, com uma tendência ao vulgar, ao chocante, ao violento e ao escatológico (Tarantino, Fincher, Anderson); ou ao extravagante, esquisito, disfuncional (Jonze, Russell; melhor seria juntar aí um outro Anderson, o Wes). Um talento real para se apropriar do contemporâneo (O Clube da Luta), um refrescante imediatismo. Mas a sua amnésia está logo atrás da porta: pouco se volta à História ou à história das formas. As astúcias da “mise en scène”, em sua maioria, não passam de blefe: é o caso dos cineastas que os Cahiers, assim como outras revistas, têm denegrido – à exceção do Tarantino a partir de Jackie Brown. Na pior das hipóteses, eles podem ser classificados de pequenos maliciosos; na melhor, de executores brilhantes – coisa que é sempre um tanto quanto medíocre. Um cinema lúdico, típico da criança mimada (Spike Jonze) e do cinéfilo frívolo. É surpreendente que se tente fazer, nos EUA, uma nova “Nova Hollywood”, tanto que são incompatíveis as ambições estéticas.
Os dois últimos anos nos mostraram uma espécie de drenagem, como se o pastiche tivesse se tornado o reflexo maior da nossa geração. O tão aguardado filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan mostrou-se decepcionante: este cineasta, certamente o mais talentoso da primeira leva de Sundance, contenta-se com uma cópia servil de Don’t Look Back (documentário sobre Dylan filmado em 1967) e de Oito e Meio. Será que é forçoso duplicar a estética dos anos 60 para situar um filme nos anos 60? Questão que poderia ser colocada a Soderbergh em relação aos anos 40 no seu inapto O Segredo de Berlim, e também ao seu pupilo George Clooney com os anos 50 do seu Boa Noite, e Boa Sorte. Soderbergh é um brinquedo de parque temático, um animal treinado “passando com muita afetação uma nova mão de tinta nas barras de sua jaula”, segundo a formulação de Bill Krohn no último número de Trafic. Este cinema de copista, hiper-referencial, produz na pior das hipóteses obras desvitalizadas; na melhor, as masturbações de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. Os comparsas exaurem a cópia, esgotam-na em todos os sentidos, é uma carnificina. Ao menos alguma alimentação ela dará, ainda que não seja uma carne lá muito suculenta para se meter entre os dentes. De todos os lados, a artilharia do pastiche se faz mortífera. Digamos, simplesmente, que não sobra qualquer sinal de vida aí. Os afetos são reduzidos ao mínimo, os propósitos da imagem são unicamente reflexivos, o pensamento é reduzido a uma inteligência de circunstância.
3. Os irmãos Coen, os primeiros a chegar nesta febre de ironia com alguns filmes perfeitos, foram igualmente os primeiros a fazerem sombra de corpo e alma com suas cópias sucessivas dos tempos antigos: E aí, meu irmão, cadê você?, O homem que não estava lá e Os matadores de velhinhas. Para os seus detratores, eles se tornaram reacionários. Mas os irmãos estão de volta com o seu melhor filme: Onde os fracos não têm vez. Anderson e os Coen, ao mesmo tempo, voltam ao Texas os seus melhores filmes. Acaso? Onde os fracos não têm vez e Sangue Negro: a promessa lúgubre dos títulos clama por comparação. Por que, apesar das suas profundas diferenças, compartilham eles de um mesmo projeto? Antes de mais nada, são duas adaptações literárias de peso: Cormac McCarthy, Upton Sinclair. Fonte de pequenos hábitos que abrem um campo (uma alteridade) aos cineastas em termos de cópia. O que está em jogo, e tão convenientemente, é a morte da obsessão cinéfila: expandir o território, sair dos limites da referência, da citação. Arrancar a paisagem dos domínios da história do cinema, para devolvê-la ao mito da América.
Os Coen e Anderson plantam, então, a sua câmera no deserto e recomeçam do zero. A construção do vazio: em Onde os fracos não têm vez, as paisagens se sucedem rapidamente, um homem fala, não somente do hoje, mas do ontem, não somente do seu trabalho de xerife, mas do mistério do mal. Os cinéfilos sempre encontrarão as referências (O Tesouro de Sierra Madre), mas há mais em jogo do que um horizonte cinematográfico. Esta terra não é aquela do cinema. Um filme voltado ao Texas não é forçosamente um “western”. Trata-se, antes de mais nada, de um país, a América, reduzida à tabula rasa: assim como no solo do Gênese, o verme se encontra dentro da fruta. Eis que sai do deserto um louco armado de uma bomba de ar comprimido. Já se viu isto em qualquer outro lugar? Onde é que nós estamos?
A mesma coisa vale para a notável primeira hora de Sangue Negro, antes das mudanças de cenário da segunda parte. Um homem sozinho, nascido da terra como um deus, bate-se contra os elementos. É um homem sem pais, sem irmãos e sem filhos. Não há sangue algum nele, é como se estivesse completamente seco por dentro. Raramente já se viu uma tal figura de esterilidade, ligada tão intimamente ao próprio filme. P. T. A. reconstrói o mito do “self made man”, uma odisséia do homem americano o qual encontrará seu fim dentro de um barco à deriva, uma grande pista de boliche (idéia extravagante, possivelmente vinda do decorador de cenário Jack Fisk). Por detrás da História se traça o Mito; é bem conhecida a orientação do pensamento americano.
Uma e outro pedem grandes imagens. Mas são os filmes, antes de mais nada, que tomam um grande tempo. Uma bobina para mostrar um homem num buraco, duas bobinas antes que se veja o xerife em Onde Os Fracos Não Têm Vez. Ambos compartilham de uma mesma medida de grandiosidade: grandes espaços, grandes vistas, CinemaScope, corpos alongados na largura, profundidade de campo. Tudo vindo de um classicismo, portanto. A “mise en scène” estilizada aproveita-se da grande angular, dos “plongées” verticais e dos fumos “noir” do romantismo. Os cenários também são estilizados (em Sangue Negro, a igreja improvisada com a cruz de madeira por cima do altar). A ênfase no simples e no estilizado evita que objetos diferentes colocados num mesmo plano de medida disputem exageradamente a nossa atenção.
4. Será portanto a questão do selvagem e do civilizado, dos homens e dos animais, dos homens e dos deuses. Nos Coen, em um plano incrível, um cão ferido é visto pelo binóculo a atravessar o deserto e retornar. O que é que é este olhar animal? Apesar de fórmulas tais como “épico fresco” ou “saga familiar” florescerem por aí, não nos confundamos: Sangue Negro atravessa muitos decênios, mas com uma tal avareza, que se poderá crer que o mundo se evaporou às costas do herói. O afresco se fecha de forma suicida em cima de um só personagem; a coisa é, na realidade, um retrato. Um retrato de vista-paisagem a ser examinado sob todas as suas costuras, um mármore a ser esculpido na mesma forma da cabeça de Daniel Day Lewis. Hollywood não se preocupa mais tanto com esse tipo de figura possante, como o Michael Corleone de Al Pacino: personagens que encarnam a História, os quais, em um dado momento – e para o pior – foram a encarnação de uma nação. Mesmo sendo Denzel Washington um bom ator, seria preciso mais do que um casaco de peles às suas costas para fazer de “O Gângster” de Ridley Scott o arquétipo prometido. Pode-se defender a estratégia de marketing que diz que “um grande ator pede um grande papel”, mas admitamos da mesma forma que a silhueta é por demais remendada: o chapéu um tanto ridículo e deformado, a calça larga demais, as costas encurvadas, o andar manco, o olho pregado. Eis o visual.
O deserto engendra dois loucos, dois iluminados. Plainview é o romântico, o exaltado, o homem-deus. Do lado dos Coen, nada-se na neurastenia. Torpor, inércia fria, quando Chigurh aplica em suas vítimas uma bomba de ar comprimido. Pensamento disperso, ar de autômato, seus olhos continuamente embaçados parecem chorar as lágrimas que ele não terá jamais. Plano extraordinário quando ele se vê em uma tela de TV apagada: ele olha a si mesmo, apenas uma sombra, um envelope vazio. O terror próprio dos filmes dos Coen vem da desvitalização. Deitado no chão, Chigurh se imobiliza em um sorriso forçado enquanto estrangula sua vítima. Os dois loucos possuem expressões faciais forçadas: no filme de Anderson, a grandiosidade apela para o grotesco como uma exaltação do poder; no caso dos Coen, a máscara estúpida do coringa é o que vem à memória. E – seria apenas um acaso? – os dois loucos mancam a maior parte do tempo.
Nas duas fábulas, o louco se duplica num outro louco. Os Coen e Anderson se inspiram nas ficções literárias que retorcem a ordem das ações eficazes, à qual estas são habituadas, conduzindo a narrativa mais a um debate de idéias. Qualquer que seja a encarnação das idéias, elas não se afrontam, elas se dão as costas. Em Sangue Negro, é a religião contra o capitalismo. Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, Chigurh é a encarnação do Abjeto absoluto, e dele corre sem parar Llewelyn, um personagem difícil de classificar, que não conhece o medo, um perfeito animal. Atrás destas duas feras, que não valem mais do que os pit-bulls que correm pelo deserto, aguarda o passivo xerife, homem velho e obsoleto. Esta estrutura de três elementos tem a ação concentrada do desafeto entre dois deles, como raramente já se viu no cinema, e o terceiro, nosso delegado, é o único a ficar “impressionado” pelos crimes que eles cometem, o único que ainda os ressente.
5. São, enfim, dois filmes de terror. É aí que o elemento contemporâneo trabalha e estica o classicismo. O horror é a resposta não ouvida à questão: como fabricar o mito hoje em dia? Em Sangue Negro, a trilha sonora de Johnny Greenwood – guitarrista do Radiohead – provoca uma ênfase terrificante que não repousa em cima de coisa alguma. O que se vê na tela? Um homem minado, com uma música a tocar que parece ilustrar o mais abominável dos crimes. Pode ser que este homem seja um vampiro, primo americano dos velhos monstros do velho mundo: o título “Sangue Negro” está escrito em letras góticas no cartaz do filme. O casamento do seu filho adotivo pontua a maldição quando o padre declara que os casados, bem saciados, jamais ficarão desidratados. Até lá, será necessário seguir a correnteza. O whisky na mamadeira para fazer dormir o bebê (imagem terrível), o petróleo transvazado até quase ao mar, o sangue. Em Onde Os Fracos, os crimes vão se encadeando num ritmo pavoroso. Parece impossível fazer parte desse mundo, um mundo que não é nem para os tenros, nem para os fatigados. Reencontram-se aqui as constatações “noirs” de um Clint Eastwood em Um Mundo Perfeito, ou em Sobre Meninos e Lobos, salvo que o horror nos aparece aqui com uma violência surda. O “país” não é para o homem velho, fora do espírito da época (à exceção do velho reacionário que o xerife encontra lá pelo fim do filme e que maldiz os punks). A abstenção emocional dos Coen passa longe da parafernália romântica de Anderson: o “self made man” é um crápula corroído, mas continua sendo um ambicioso, um trabalhador; ele não possui emoção, mas um desejo de comercializar (“De que me serviria um milhão de dólares? O que faria eu dos meus dias?”). Não se verá jamais suas riquezas, salvo em uma visão final derrisória. Por um outro lado, o que é que faz voar os abutres dos Coen? A avidez. As notas de dinheiro vivo, continuamente trocadas, sempre manchadas de sangue, que uma criança aceita finalmente em troca de sua camisa, desenham uma história de vampiro anti-romântica. O sangue é o dinheiro. Os dois filmes concluem sobre uma constatação de futilidade: um herói exaurido em Anderson, ávido em Coen; a agitação de um lado e o torpor de outro não deixam à tela nada além de uma grande sensação de vazio.
Não é preciso subestimar o fato de que tanto um quanto outro filme conservam um lado de jogo de construção, como se o blefe (P. T. A.) devesse forçosamente ser visível, ou a ironia obrigatoriamente de conivência (caso dos diálogos dos Coen, apesar da altura que atingem as extraordinárias cenas silenciosas). É tudo a mesma coisa. Dois filmes americanos de certa envergadura, sem que soem pomposos: eis uma novidade. O que está para vir das cabeças dos pequenos maliciosos é ainda mais surpreendente. O Zodíaco de Fincher já conseguiu enxergar bem mais longe e de modo mais largo do que Seven. Aguardamos as duas páginas sobre Che Guevara (Argentina e Guerrilha) de Soderbergh, herdeiro não-previsto de Malick, para ver se a envergadura pode ultrapassar as fronteiras.
O Cinema Americano no momento de Sangue Negro: Desejos de Grandiosidade
Por Stéphane Delorme
1. No momento de sua entrevista para os Cahiers (n. 628), Coppola constatou que os cineastas americanos tinham todos passado às técnicas do vídeo e do digital, todos exceto um: Paul Thomas Anderson. A imagem de Daniel Plainview (Daniel Day Lewis), cavando solitariamente com uma picareta o seu poço no meio do deserto, em Sangue Negro, seria por um acaso a imagem onírica que P. T. A. teria a respeito de um pioneiro do cinema, estendendo a película entre os dedos? Quem teria acreditado, tendo em vista os arabescos vãos pós Robert Altman de seus filmes anteriores, que este jovem cineasta (nascido em 1970) encarnaria hoje a figura do pioneiro, desbravando e perfurando num único gesto o Cinema e a América, como os “grandes” cineastas do século passado? O que surpreende tanto em Sangue Negro é a ambição de rivalizar com os mestres e de fazer um cinema não-datado, eterno e universal: na falta de um cinema que possa ser taxado de “pós” alguma coisa – para o nosso alívio – fica-se com o sentimento de um cinema que estaria “por detrás” de tudo, mas como um monumento isolado, uma estrela cuja solidão tem muito a ver com a arrogância narcisista dos seus heróis. Mas não se trata, na verdade, de “estar na base de tudo”, mas bem de rivalizar com Coppola, Kubrick ou Welles; P. T. A. deseja provar a sua maturidade. De modo bizarro, o cinema americano contemporâneo não nos tem habituado a uma tamanha ambição. A sensação é de que, se deixassem de lado o gênero e a cinefilia, os cineastas entrariam em pânico. A História e a Metafísica – que são reduzidas em Hollywood à América e ao Mal – são reservadas como as caças que se guardam aos grandes anciãos (Gangues de Nova York e O Aviador, de Scorsese, e O Novo Mundo de Malick). O espaço para outros jogos parece singularmente retraído.
2. Há dois anos atrás (Cahiers 614), uma constatação deprimente sobre o cinema americano revelou o que parece ser o fracasso da atual geração: os mesmos nomes que surgiram na cena cinematográfica durante os anos 1960 e 1970 continuam a dominá-la. Dois livros traduzidos recentemente tentam dar à geração dos anos 1990 a sua dignidade: Sexe, mensonges et Hollywood, de Peter Biskind; e Les Six Samouraïs: Hollywood somnolait, ils l’ont réveillé!, de Sharon Waxman. Os seis samurais não precisam ser lembrados: Steven Soderbergh, David Fincher, Quentin Tarantino, P. T. Anderson, Spike Jonze, David O. Russell. Estes cineastas, ditos “revolucionários”, somente o são por causa do seu impacto econômico e por sua passagem rápida da independência ao sistema. O ponto comum deles, mais ou menos oportunista, é uma certa idéia de juventude: dinamismo, ironia, desenvoltura, cultura “junk”, com uma tendência ao vulgar, ao chocante, ao violento e ao escatológico (Tarantino, Fincher, Anderson); ou ao extravagante, esquisito, disfuncional (Jonze, Russell; melhor seria juntar aí um outro Anderson, o Wes). Um talento real para se apropriar do contemporâneo (O Clube da Luta), um refrescante imediatismo. Mas a sua amnésia está logo atrás da porta: pouco se volta à História ou à história das formas. As astúcias da “mise en scène”, em sua maioria, não passam de blefe: é o caso dos cineastas que os Cahiers, assim como outras revistas, têm denegrido – à exceção do Tarantino a partir de Jackie Brown. Na pior das hipóteses, eles podem ser classificados de pequenos maliciosos; na melhor, de executores brilhantes – coisa que é sempre um tanto quanto medíocre. Um cinema lúdico, típico da criança mimada (Spike Jonze) e do cinéfilo frívolo. É surpreendente que se tente fazer, nos EUA, uma nova “Nova Hollywood”, tanto que são incompatíveis as ambições estéticas.
Os dois últimos anos nos mostraram uma espécie de drenagem, como se o pastiche tivesse se tornado o reflexo maior da nossa geração. O tão aguardado filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan mostrou-se decepcionante: este cineasta, certamente o mais talentoso da primeira leva de Sundance, contenta-se com uma cópia servil de Don’t Look Back (documentário sobre Dylan filmado em 1967) e de Oito e Meio. Será que é forçoso duplicar a estética dos anos 60 para situar um filme nos anos 60? Questão que poderia ser colocada a Soderbergh em relação aos anos 40 no seu inapto O Segredo de Berlim, e também ao seu pupilo George Clooney com os anos 50 do seu Boa Noite, e Boa Sorte. Soderbergh é um brinquedo de parque temático, um animal treinado “passando com muita afetação uma nova mão de tinta nas barras de sua jaula”, segundo a formulação de Bill Krohn no último número de Trafic. Este cinema de copista, hiper-referencial, produz na pior das hipóteses obras desvitalizadas; na melhor, as masturbações de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. Os comparsas exaurem a cópia, esgotam-na em todos os sentidos, é uma carnificina. Ao menos alguma alimentação ela dará, ainda que não seja uma carne lá muito suculenta para se meter entre os dentes. De todos os lados, a artilharia do pastiche se faz mortífera. Digamos, simplesmente, que não sobra qualquer sinal de vida aí. Os afetos são reduzidos ao mínimo, os propósitos da imagem são unicamente reflexivos, o pensamento é reduzido a uma inteligência de circunstância.
3. Os irmãos Coen, os primeiros a chegar nesta febre de ironia com alguns filmes perfeitos, foram igualmente os primeiros a fazerem sombra de corpo e alma com suas cópias sucessivas dos tempos antigos: E aí, meu irmão, cadê você?, O homem que não estava lá e Os matadores de velhinhas. Para os seus detratores, eles se tornaram reacionários. Mas os irmãos estão de volta com o seu melhor filme: Onde os fracos não têm vez. Anderson e os Coen, ao mesmo tempo, voltam ao Texas os seus melhores filmes. Acaso? Onde os fracos não têm vez e Sangue Negro: a promessa lúgubre dos títulos clama por comparação. Por que, apesar das suas profundas diferenças, compartilham eles de um mesmo projeto? Antes de mais nada, são duas adaptações literárias de peso: Cormac McCarthy, Upton Sinclair. Fonte de pequenos hábitos que abrem um campo (uma alteridade) aos cineastas em termos de cópia. O que está em jogo, e tão convenientemente, é a morte da obsessão cinéfila: expandir o território, sair dos limites da referência, da citação. Arrancar a paisagem dos domínios da história do cinema, para devolvê-la ao mito da América.
Os Coen e Anderson plantam, então, a sua câmera no deserto e recomeçam do zero. A construção do vazio: em Onde os fracos não têm vez, as paisagens se sucedem rapidamente, um homem fala, não somente do hoje, mas do ontem, não somente do seu trabalho de xerife, mas do mistério do mal. Os cinéfilos sempre encontrarão as referências (O Tesouro de Sierra Madre), mas há mais em jogo do que um horizonte cinematográfico. Esta terra não é aquela do cinema. Um filme voltado ao Texas não é forçosamente um “western”. Trata-se, antes de mais nada, de um país, a América, reduzida à tabula rasa: assim como no solo do Gênese, o verme se encontra dentro da fruta. Eis que sai do deserto um louco armado de uma bomba de ar comprimido. Já se viu isto em qualquer outro lugar? Onde é que nós estamos?
A mesma coisa vale para a notável primeira hora de Sangue Negro, antes das mudanças de cenário da segunda parte. Um homem sozinho, nascido da terra como um deus, bate-se contra os elementos. É um homem sem pais, sem irmãos e sem filhos. Não há sangue algum nele, é como se estivesse completamente seco por dentro. Raramente já se viu uma tal figura de esterilidade, ligada tão intimamente ao próprio filme. P. T. A. reconstrói o mito do “self made man”, uma odisséia do homem americano o qual encontrará seu fim dentro de um barco à deriva, uma grande pista de boliche (idéia extravagante, possivelmente vinda do decorador de cenário Jack Fisk). Por detrás da História se traça o Mito; é bem conhecida a orientação do pensamento americano.
Uma e outro pedem grandes imagens. Mas são os filmes, antes de mais nada, que tomam um grande tempo. Uma bobina para mostrar um homem num buraco, duas bobinas antes que se veja o xerife em Onde Os Fracos Não Têm Vez. Ambos compartilham de uma mesma medida de grandiosidade: grandes espaços, grandes vistas, CinemaScope, corpos alongados na largura, profundidade de campo. Tudo vindo de um classicismo, portanto. A “mise en scène” estilizada aproveita-se da grande angular, dos “plongées” verticais e dos fumos “noir” do romantismo. Os cenários também são estilizados (em Sangue Negro, a igreja improvisada com a cruz de madeira por cima do altar). A ênfase no simples e no estilizado evita que objetos diferentes colocados num mesmo plano de medida disputem exageradamente a nossa atenção.
4. Será portanto a questão do selvagem e do civilizado, dos homens e dos animais, dos homens e dos deuses. Nos Coen, em um plano incrível, um cão ferido é visto pelo binóculo a atravessar o deserto e retornar. O que é que é este olhar animal? Apesar de fórmulas tais como “épico fresco” ou “saga familiar” florescerem por aí, não nos confundamos: Sangue Negro atravessa muitos decênios, mas com uma tal avareza, que se poderá crer que o mundo se evaporou às costas do herói. O afresco se fecha de forma suicida em cima de um só personagem; a coisa é, na realidade, um retrato. Um retrato de vista-paisagem a ser examinado sob todas as suas costuras, um mármore a ser esculpido na mesma forma da cabeça de Daniel Day Lewis. Hollywood não se preocupa mais tanto com esse tipo de figura possante, como o Michael Corleone de Al Pacino: personagens que encarnam a História, os quais, em um dado momento – e para o pior – foram a encarnação de uma nação. Mesmo sendo Denzel Washington um bom ator, seria preciso mais do que um casaco de peles às suas costas para fazer de “O Gângster” de Ridley Scott o arquétipo prometido. Pode-se defender a estratégia de marketing que diz que “um grande ator pede um grande papel”, mas admitamos da mesma forma que a silhueta é por demais remendada: o chapéu um tanto ridículo e deformado, a calça larga demais, as costas encurvadas, o andar manco, o olho pregado. Eis o visual.
O deserto engendra dois loucos, dois iluminados. Plainview é o romântico, o exaltado, o homem-deus. Do lado dos Coen, nada-se na neurastenia. Torpor, inércia fria, quando Chigurh aplica em suas vítimas uma bomba de ar comprimido. Pensamento disperso, ar de autômato, seus olhos continuamente embaçados parecem chorar as lágrimas que ele não terá jamais. Plano extraordinário quando ele se vê em uma tela de TV apagada: ele olha a si mesmo, apenas uma sombra, um envelope vazio. O terror próprio dos filmes dos Coen vem da desvitalização. Deitado no chão, Chigurh se imobiliza em um sorriso forçado enquanto estrangula sua vítima. Os dois loucos possuem expressões faciais forçadas: no filme de Anderson, a grandiosidade apela para o grotesco como uma exaltação do poder; no caso dos Coen, a máscara estúpida do coringa é o que vem à memória. E – seria apenas um acaso? – os dois loucos mancam a maior parte do tempo.
Nas duas fábulas, o louco se duplica num outro louco. Os Coen e Anderson se inspiram nas ficções literárias que retorcem a ordem das ações eficazes, à qual estas são habituadas, conduzindo a narrativa mais a um debate de idéias. Qualquer que seja a encarnação das idéias, elas não se afrontam, elas se dão as costas. Em Sangue Negro, é a religião contra o capitalismo. Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, Chigurh é a encarnação do Abjeto absoluto, e dele corre sem parar Llewelyn, um personagem difícil de classificar, que não conhece o medo, um perfeito animal. Atrás destas duas feras, que não valem mais do que os pit-bulls que correm pelo deserto, aguarda o passivo xerife, homem velho e obsoleto. Esta estrutura de três elementos tem a ação concentrada do desafeto entre dois deles, como raramente já se viu no cinema, e o terceiro, nosso delegado, é o único a ficar “impressionado” pelos crimes que eles cometem, o único que ainda os ressente.
5. São, enfim, dois filmes de terror. É aí que o elemento contemporâneo trabalha e estica o classicismo. O horror é a resposta não ouvida à questão: como fabricar o mito hoje em dia? Em Sangue Negro, a trilha sonora de Johnny Greenwood – guitarrista do Radiohead – provoca uma ênfase terrificante que não repousa em cima de coisa alguma. O que se vê na tela? Um homem minado, com uma música a tocar que parece ilustrar o mais abominável dos crimes. Pode ser que este homem seja um vampiro, primo americano dos velhos monstros do velho mundo: o título “Sangue Negro” está escrito em letras góticas no cartaz do filme. O casamento do seu filho adotivo pontua a maldição quando o padre declara que os casados, bem saciados, jamais ficarão desidratados. Até lá, será necessário seguir a correnteza. O whisky na mamadeira para fazer dormir o bebê (imagem terrível), o petróleo transvazado até quase ao mar, o sangue. Em Onde Os Fracos, os crimes vão se encadeando num ritmo pavoroso. Parece impossível fazer parte desse mundo, um mundo que não é nem para os tenros, nem para os fatigados. Reencontram-se aqui as constatações “noirs” de um Clint Eastwood em Um Mundo Perfeito, ou em Sobre Meninos e Lobos, salvo que o horror nos aparece aqui com uma violência surda. O “país” não é para o homem velho, fora do espírito da época (à exceção do velho reacionário que o xerife encontra lá pelo fim do filme e que maldiz os punks). A abstenção emocional dos Coen passa longe da parafernália romântica de Anderson: o “self made man” é um crápula corroído, mas continua sendo um ambicioso, um trabalhador; ele não possui emoção, mas um desejo de comercializar (“De que me serviria um milhão de dólares? O que faria eu dos meus dias?”). Não se verá jamais suas riquezas, salvo em uma visão final derrisória. Por um outro lado, o que é que faz voar os abutres dos Coen? A avidez. As notas de dinheiro vivo, continuamente trocadas, sempre manchadas de sangue, que uma criança aceita finalmente em troca de sua camisa, desenham uma história de vampiro anti-romântica. O sangue é o dinheiro. Os dois filmes concluem sobre uma constatação de futilidade: um herói exaurido em Anderson, ávido em Coen; a agitação de um lado e o torpor de outro não deixam à tela nada além de uma grande sensação de vazio.
Não é preciso subestimar o fato de que tanto um quanto outro filme conservam um lado de jogo de construção, como se o blefe (P. T. A.) devesse forçosamente ser visível, ou a ironia obrigatoriamente de conivência (caso dos diálogos dos Coen, apesar da altura que atingem as extraordinárias cenas silenciosas). É tudo a mesma coisa. Dois filmes americanos de certa envergadura, sem que soem pomposos: eis uma novidade. O que está para vir das cabeças dos pequenos maliciosos é ainda mais surpreendente. O Zodíaco de Fincher já conseguiu enxergar bem mais longe e de modo mais largo do que Seven. Aguardamos as duas páginas sobre Che Guevara (Argentina e Guerrilha) de Soderbergh, herdeiro não-previsto de Malick, para ver se a envergadura pode ultrapassar as fronteiras.
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