Encantador. No site oficial do filme, a diretora Laís Bodanski confessa: “Queria deter o frescor da descoberta. Encantou-me a coragem que estas pessoas têm de experimentar a vida”. Bom trabalho. Poucas vezes o cinema nos presenteia com uma experiência tão viva e tão rica: sentimos exatamente o “frescor da descoberta” e o “experimentar a vida” durante os 92 minutos de projeção em tela, numa sala escura, da experiência alheia captada por uma máquina. É incrível, filmes assim renovam nossa fé na Sétima Arte. Poucas vezes também é tão curta a distância entre a meta do realizador e a obra em si, pronta.
Chega de Saudade (Brasil, 2008) é uma canção – e não só por haver canções dentro do filme, quase que ininterruptamente; é um poema – e não só por haver um poema dentro do filme, declamado por um personagem num momento-chave. Tem-se aqui a realização de um profundo cinema de poesia, no qual todos os elementos estão interligados e confluindo com incrível fluência para um grande efeito (a chave-de-ouro, mas sem qualquer sinal de pretensão) que envolve e embala o espectador. É difícil explicar a experiência, mas ver filmes assim não é como ver a maioria dos filmes. A maioria dos filmes são como contos ou romances. Mas assistir a Chega de Saudade é como ler ou ouvir um poema.
A musicalidade está na própria imagem, nos elementos diegéticos que a compõem, nos enquadramentos e na montagem. Sentimos o calor e o aconchego do ambiente fechado do baile, lotado de pessoas, instalado num prédio antigo. A iluminação multi-colorida e com os diversos efeitos típicos cria uma atmosfera de sonho, de devaneio poético-sensorial, e sobretudo emotivo. É um acontecimento banal, mas ao mesmo tempo não é. A noite de baile é um momento único e definidor na vida da pessoa que o freqüenta. Toda noite de festa possui esse caráter duplo de ser algo tão cotidianamente da vida e do mundo, mas ao mesmo tempo sendo algo maior do que a vida e o mundo.
A festa parece resumir em si passado, presente e futuro, realizações, esperanças e frustrações, encontros e desencontros, vida e morte, todos os tipos de pessoas e todas as formas de relacionamentos humanos e os seus mais sutis matizes fenomenológicos e emocionais. Todos esses elementos podem ser claramente reconhecidos em Chega de Saudade. Aquele salão de baile é um perfeito micro-cosmo, representado com tanta expressividade como raramente se vê no Cinema. Mas não devemos entender “micro-cosmo” aqui como uma “imitação” em escala menor de um mundo que estaria lá fora, no “macro-cosmo”. O cosmo do baile neste filme é o único cosmo existente. Todo o universo está ali dentro e não há nada fora dele.
O filme tem em sua base um belo paradoxo: o banal que é único. O processo de significação vai se desenvolvendo em camadas cada vez mais profundas e genéricas: a partir de um baile da “terceira idade”, discute-se o baile de todas as idades que é a própria vida. E eis que o mundo é um salão (diferentemente – mas não tanto – do que dizia Shakespeare: que “todo o mundo é um palco”). E o melhor de tudo é que Chega de Saudade expressa tudo isso através do uso muito poético da arte cinematográfica e de todos os seus aspectos.
O roteiro; a direção de arte e os figurinos; a interpretação dos atores (principalmente); a fotografia metonímica: predominantemente em primeiros planos de pés que bailam, de mãos que tocam e de olhares que se cruzam, nas dinâmicas associações e dissociações de pessoas, histórias e corações que “habitam” o baile; a montagem que, às vezes, em um único plano (seqüência) passa o olhar da câmera de um grupo a outro de personagens, de um foco a outro, como uma filmagem caseira (de aniversário, de casamento, etc). São esses ricos movimentos, repito, entre os elementos que compõem as imagens, entre a maneira como as imagens são registradas e o modo como elas são montadas umas às outras, que fazem com que o próprio filme em si seja uma dança de baile, uma valsa, um bolero.
Dentre todos, talvez haja um movimento que seja, por si só, o mais expressivo do filme, representando todos os outros movimentos pendulares que compõem a fita, que baila entre o banal e o único, o passado e o presente, o masculino e o feminino, a esperança e a frustração, a vida e a morte, o temporal e o eterno, o pequeno e o grande, o jovem e o velho, enfim, entre o tempo interior (psicológico) e o tempo exterior (físico, cronológico). Trata-se de um simples movimento de câmera. Numa simples panorâmica, junto com uma competente edição de som e ajuste tecnológico de luz, temos um grande efeito de arte do Cinema:
No segundo devaneio do personagem de Leonardo Villar (Álvaro), vemo-lo dançar sozinho e glorioso, enquanto todos assistem e aplaudem entusiasticamente. A própria película, aqui, ganha um tom mais descolorido, quase em preto-e-branco. Quando termina, aclamado, ele vai saindo da pista de dança e a câmera o acompanha numa panorâmica até ultrapassá-lo e ir encontrar o Álvaro “atual” sentado melancolicamente numa mesa, no mezanino ao lado da pista. Na passagem do “passado” ao “presente”, a imagem da fita ganha suas cores naturais e voltamos a ouvir os sons do salão de baila naquele momento.
E sem esquecer a trilha sonora da obra como um todo, sua expressividade e pertinência narrativa. O poema declamado em certo momento do filme resume muito bem o seu espírito, e principalmente uma expressão dita pelo personagem que o declama: “o encanto do momento”. Chega de Saudade não conta uma história ou histórias propriamente ditas. Apenas capta momentos, momentos banais e únicos, efêmeros e eternos a um só tempo, inserindo-se muito bem em toda uma filosofia de Cinema, realizando o ideal de toda uma escola. O filme de Bodanski não é único. Há outras produções com esse caráter e esse poder, principalmente dentre o cinema italiano.
O roteirista Luiz Bolognesi cita Ettore Scola (“O Jantar”, 1998), enquanto a diretora fica com Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirina e Urubus”, 2005). Enquanto possuírem grandes referenciais, e souberem aproveitá-los, podemos esperar grandes obras. Filmes que realizam grande entretenimento e arte, despretensiosamente (o que é o melhor). Chega de Saudade já nos surpreenderia se viesse do exterior. Sendo brasileiro, é uma surpresa maior e bem mais agradável. É bom juntarmos com carinho uma parcela bem interessante e diferenciada da produção nacional recente: este filme de Laís Bodanski, A Via-Láctea de Lina Chamie, e Mutum de Sandra Kogut (repare que todos os três pertencem a cineastas mulheres), para fazer uma saudável oposição à tendência “mundo cão” tupiniquim: Tropa de Elite, Baixio das Bestas e afins. Só mesmo o olhar feminino para sensibilizar o nosso Cinema.
Chega de Saudade (Brasil, 2008) é uma canção – e não só por haver canções dentro do filme, quase que ininterruptamente; é um poema – e não só por haver um poema dentro do filme, declamado por um personagem num momento-chave. Tem-se aqui a realização de um profundo cinema de poesia, no qual todos os elementos estão interligados e confluindo com incrível fluência para um grande efeito (a chave-de-ouro, mas sem qualquer sinal de pretensão) que envolve e embala o espectador. É difícil explicar a experiência, mas ver filmes assim não é como ver a maioria dos filmes. A maioria dos filmes são como contos ou romances. Mas assistir a Chega de Saudade é como ler ou ouvir um poema.
A musicalidade está na própria imagem, nos elementos diegéticos que a compõem, nos enquadramentos e na montagem. Sentimos o calor e o aconchego do ambiente fechado do baile, lotado de pessoas, instalado num prédio antigo. A iluminação multi-colorida e com os diversos efeitos típicos cria uma atmosfera de sonho, de devaneio poético-sensorial, e sobretudo emotivo. É um acontecimento banal, mas ao mesmo tempo não é. A noite de baile é um momento único e definidor na vida da pessoa que o freqüenta. Toda noite de festa possui esse caráter duplo de ser algo tão cotidianamente da vida e do mundo, mas ao mesmo tempo sendo algo maior do que a vida e o mundo.
A festa parece resumir em si passado, presente e futuro, realizações, esperanças e frustrações, encontros e desencontros, vida e morte, todos os tipos de pessoas e todas as formas de relacionamentos humanos e os seus mais sutis matizes fenomenológicos e emocionais. Todos esses elementos podem ser claramente reconhecidos em Chega de Saudade. Aquele salão de baile é um perfeito micro-cosmo, representado com tanta expressividade como raramente se vê no Cinema. Mas não devemos entender “micro-cosmo” aqui como uma “imitação” em escala menor de um mundo que estaria lá fora, no “macro-cosmo”. O cosmo do baile neste filme é o único cosmo existente. Todo o universo está ali dentro e não há nada fora dele.
O filme tem em sua base um belo paradoxo: o banal que é único. O processo de significação vai se desenvolvendo em camadas cada vez mais profundas e genéricas: a partir de um baile da “terceira idade”, discute-se o baile de todas as idades que é a própria vida. E eis que o mundo é um salão (diferentemente – mas não tanto – do que dizia Shakespeare: que “todo o mundo é um palco”). E o melhor de tudo é que Chega de Saudade expressa tudo isso através do uso muito poético da arte cinematográfica e de todos os seus aspectos.
O roteiro; a direção de arte e os figurinos; a interpretação dos atores (principalmente); a fotografia metonímica: predominantemente em primeiros planos de pés que bailam, de mãos que tocam e de olhares que se cruzam, nas dinâmicas associações e dissociações de pessoas, histórias e corações que “habitam” o baile; a montagem que, às vezes, em um único plano (seqüência) passa o olhar da câmera de um grupo a outro de personagens, de um foco a outro, como uma filmagem caseira (de aniversário, de casamento, etc). São esses ricos movimentos, repito, entre os elementos que compõem as imagens, entre a maneira como as imagens são registradas e o modo como elas são montadas umas às outras, que fazem com que o próprio filme em si seja uma dança de baile, uma valsa, um bolero.
Dentre todos, talvez haja um movimento que seja, por si só, o mais expressivo do filme, representando todos os outros movimentos pendulares que compõem a fita, que baila entre o banal e o único, o passado e o presente, o masculino e o feminino, a esperança e a frustração, a vida e a morte, o temporal e o eterno, o pequeno e o grande, o jovem e o velho, enfim, entre o tempo interior (psicológico) e o tempo exterior (físico, cronológico). Trata-se de um simples movimento de câmera. Numa simples panorâmica, junto com uma competente edição de som e ajuste tecnológico de luz, temos um grande efeito de arte do Cinema:
No segundo devaneio do personagem de Leonardo Villar (Álvaro), vemo-lo dançar sozinho e glorioso, enquanto todos assistem e aplaudem entusiasticamente. A própria película, aqui, ganha um tom mais descolorido, quase em preto-e-branco. Quando termina, aclamado, ele vai saindo da pista de dança e a câmera o acompanha numa panorâmica até ultrapassá-lo e ir encontrar o Álvaro “atual” sentado melancolicamente numa mesa, no mezanino ao lado da pista. Na passagem do “passado” ao “presente”, a imagem da fita ganha suas cores naturais e voltamos a ouvir os sons do salão de baila naquele momento.
E sem esquecer a trilha sonora da obra como um todo, sua expressividade e pertinência narrativa. O poema declamado em certo momento do filme resume muito bem o seu espírito, e principalmente uma expressão dita pelo personagem que o declama: “o encanto do momento”. Chega de Saudade não conta uma história ou histórias propriamente ditas. Apenas capta momentos, momentos banais e únicos, efêmeros e eternos a um só tempo, inserindo-se muito bem em toda uma filosofia de Cinema, realizando o ideal de toda uma escola. O filme de Bodanski não é único. Há outras produções com esse caráter e esse poder, principalmente dentre o cinema italiano.
O roteirista Luiz Bolognesi cita Ettore Scola (“O Jantar”, 1998), enquanto a diretora fica com Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirina e Urubus”, 2005). Enquanto possuírem grandes referenciais, e souberem aproveitá-los, podemos esperar grandes obras. Filmes que realizam grande entretenimento e arte, despretensiosamente (o que é o melhor). Chega de Saudade já nos surpreenderia se viesse do exterior. Sendo brasileiro, é uma surpresa maior e bem mais agradável. É bom juntarmos com carinho uma parcela bem interessante e diferenciada da produção nacional recente: este filme de Laís Bodanski, A Via-Láctea de Lina Chamie, e Mutum de Sandra Kogut (repare que todos os três pertencem a cineastas mulheres), para fazer uma saudável oposição à tendência “mundo cão” tupiniquim: Tropa de Elite, Baixio das Bestas e afins. Só mesmo o olhar feminino para sensibilizar o nosso Cinema.
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