domingo, março 23, 2008

O Gesto e o Cinema

Helena Weigel numa montagem clássica de Mãe Coragem...
No pesado livro A Imagem-Tempo, o filósofo do cinema Gilles Deleuze estabelece as diferenças entre o “corpo cotidiano” e o “corpo cerimonial”. As atitudes físicas que tomamos vacilam entre esses dois pólos: o instintivo – o espontâneo – e o “litúrgico” – o calculado. O autor também relaciona o enlace e a coordenação das atitudes em si mesmas (independentes de qualquer contexto narrativo) com a noção do gestus, que “efetua uma teatralização (grifo meu) direta dos corpos, freqüentemente bem discreta, já que se faz independentemente de qualquer papel”. O conceito do “gestus” foi criado pelo famoso dramaturgo e pensador do teatro Bertold Brecht, para quem o “gestus” está na essência do teatro, não dizendo respeito à história ou assunto da peça (no texto “Musique et Gestus”, da obra Estudos sobre Teatro).

Deleuze cita um estudo de Roland Barthes sobre o texto de Brecht (“Diderot, Brecht, Eisenstein”, em O Óbvio e o Obtuso), no qual o importante semiologista afirma que o verdadeiro tema crítico da peça Mãe Coragem e seus Filhos é a “demonstração crítica do gesto” da “comerciante que acredita viver da guerra”, a sua “cegueira”. Nessa personagem, percebe-se o desenvolvimento de todo um processo de tornar cerimoniais os gestos mais cotidianos. Deleuze completa: “é o gesto exagerado pelo qual a vendedora verifica o troco”. Lembra-se também do cinema de Eisenstein: “o grafismo excessivo com que o burocrata de A Linha Geral assina a papelada” (nas palavras de Barthes). As artes plásticas estão repletas de gestos que “teatralizam” a vida. Um exemplo pode ser o quadro “O Banqueiro e sua Esposa” (1514), do pintor renascentista flamengo Quentin Massys.

O Banqueiro e sua Mulher

Na própria vida do dia-a-dia, quantas vezes não nos deparamos com aquelas pessoas em posições absolutamente (des)importantes que se agitam com toda a pompa e circunstância (mas com um automatismo quase maquinal) em seus medíocres postos de trabalho? Basta pensar em um certo estereótipo de funcionário público (ou privado). Por isso mesmo, para Brecht, o “gestus” de caráter social é o mais importante dentre todas as outras espécies de gesticulação cerimonial em situações vulgares. No cinema, há muitos outros exemplos. Os cômicos / burlescos são os que me vêem mais imediatamente à cabeça. Nos filmes de Jacques Tati (Meu Tio, Playtime, Trafic, etc), são hilários e revoltantes os gestos ridículos do burguês nas cerimônias cotidianas de abrir eletronicamente a porta da garagem, ligar a parafernália elétrica da cozinha, dirigir seu automóvel, etc.

Em paralelo, são hilários e reconfortantes os gestos desastrados e frustrados do Ms. Hulot (Tati), para quem as máquinas nunca funcionam direito. Em Charles Chaplin também encontramos a mesma razão entre o “gestus” dos leões e o do cordeiro. Em A Busca do Ouro e Vida de Cachorro (só para citar dois casos), temos os gestos soberbos e brutais dos “homens fortes” (que viram foco central em O Grande Ditador) e os gestos puros do inocente: às vezes totalmente banais (como a cena em que o Vagabundo “ajeita” melhor o cãozinho que lhe servirá de travesseiro), outras vezes dotados de um cerimonial profundamente significativo, verdadeiramente humano e singelo (como a famosa “dança” dos pãezinhos).

Gilles Deleuze, discutindo as atitudes do corpo, o cinema, o teatro e a teatralidade do “gestus”, cita o filme O Amor Partido (1984), de Jacques Rivette (diretor francês ligado à nouvelle vague). Melhor do que parafrasear, prefiro reproduzir o trecho inteiro: “As personagens ensaiam uma peça; mas, justamente, o ensaio implica que não atingiram atitudes teatrais que correspondem a seus papéis e à intriga da peça, que as ultrapassa; em compensação, são remetidas a atitudes parateatrais que tomam com relação à peça, a seu papel, umas em relação às outras, e essas atitudes secundárias são mais puras e independentes justamente por não comportarem intriga alguma preexistente, essa só existindo na peça. Vão pois secretar um gestus que não é real nem imaginário, cotidiano nem cerimonial, mas situa-se na fronteira dos dois e, por sua vez, remeterá ao exercício de um sentido verdadeiramente visionário ou alucinatório (...)”.
Galaxy Quest

O trecho acima me fez lembrar imediatamente de um filme, aparentemente bobo, mas na verdade um dos mais criativos do cinema de Hollywood nos anos 90. Trata-se de Heróis Fora de Órbita (“Galaxy Quest”, EUA, 1999, dir.: Dean Parisot). É uma daquelas películas valiosas que passam despercebidas. Com um elenco incrível, do qual se destacam Tim Allen, Sigourney Weaver, Alan Rickman, Tony Shalhoub e Sam Rockwell, a narrativa faz uma genial paródia da mítica série de TV Jornada nas Estrelas (“Star Trek”) e de todos os efeitos psicológicos e sociais que ela (continua) causando. Os protagonistas do filme compõem o elenco meio envelhecido de um famosíssimo seriado do passado (o “Galaxy Quest”), que hoje sobrevivem de participação em convenções de fãs e eventos publicitários, já que ficaram tão estigmatizados pelo papel que nunca mais conseguiram trabalhos bons de verdade e diferenciados.

A atuação que eles tinham no extinto programa de TV é um delicioso exemplo do “gestus” canastrão que faz rirem as platéias de não-fãs. A pompa, a afetação e a falsidade são ridiculamente evidentes. Hoje em dia, a situação é ainda pior: os pobres “atores” são obrigados a repetirem ad infinitum os famosos cacoetes, gestos, posturas corporais e “catch phrases” da série para fãs que quase vão ao orgasmo em testemunhar tais coisas ao vivo nas “convenções”. Os artistas não suportam mais tal situação, mas, fazer o quê? É preciso pagar as contas. Então, eles são abduzidos por extraterrestres que captavam as transmissões de TV, acreditando que são “documentos históricos”, sendo os atores os maiores heróis da galáxia (!). Essa espécie alienígena encontra-se num grande perigo, ameaçada pelo imperialismo sangrento de uma outra espécie, absolutamente cruel.

Assim, os “ingênuos” constroem uma nave espacial de verdade, obedecendo as “especificações” que viram no seriado, e pretendem que os “heróis” tomem seus postos e os ajudem a se libertar do grande mal. Primeiramente, os atores acreditam que se trata apenas de mais um “trabalho” publicitário e continuam a repetir os mesmos gestos de intérpretes, muito sarcasticamente. Mas quando vêem a verdadeira natureza da coisa, querem logicamente pular fora, dizem que não são heróis, apenas atores, e que não querem arriscar a vida por causa desse tremendo mal-entendido. Aí os seus gestos ganham uma outra postura, somente aí eles assumem e admitem de fato sua função profissional, assim como as lógicas diferenças entre a “ficção” e a “realidade”. Pela primeira vez, suas atitudes são espontâneas, revelando todo o leque de características humanas das mais banais.

Contudo, quando a coisa se revela drasticamente séria, com sério perigo de morte para eles próprios e para os seus pobres anfitriões, os atores assumem de fato seu papel “heróico” e mergulham de cabeça na aventura. Na experiência real, seu “gestus” parece muito mais convincente a nós, espectadores, pois nasce da naturalidade da própria vida. Sua dramaticidade deixa de ser um “jogo” teatral para se tornar a expressão inconsciente de pessoas vivendo uma situação-limite. A ficção torna-se muito mais autêntica, pois deixa de ser ficção; e os atores se tornam melhores atores justamente por não estarem mais “atuando”. Como diz Deleuze, suas atitudes serão mais “puras” e “independentes”. Eis o “gestus”, a atitude natural do momento, pois não há mais um roteiro a ser decorado, não há história a ser contada.

O sentido “verdadeiramente visionário” ou “alucinatório” de que fala o autor percorre a maior parte da aventura do filme, tornando-se particularmente evidente no final, quando o “gestus” dos atores-heróis dançará nas fronteiras entre o “cotidiano” e o “cerimonial”, entre o “real” e o “imaginário”, na cena em que eles enfrentam o grande vilão na frente de uma platéia exaltada de fãs da série, que aplaudem, assobiam, gritam e comemoram, durante uma convenção, acreditando que se trata de uma “encenação”. Nesses momentos, as atitudes corporais dos atores tornam-se verdadeira e profundamente cerimoniais, pois são dotadas de um significado muito real e íntimo para eles. Se o cerimonial é, muitas vezes, a exageração do cotidiano até torná-lo automático e falso, em Galaxy Quest acaba ocorrendo o inverso: o cotidiano é que é automático e falso, sendo o cerimonial a expressão da vida singular, significativa, no limite (que é onde ela melhor se revela).

Um padre pode conduzir uma missa transformando a liturgia numa série de cacoetes afetados mas vazios, ou pode rezá-la como se fosse a primeira e única celebração da morte e ressurreição de Cristo. A coisa fica ainda mais complexa se nos lembrarmos (obviamente) de que o filme em si também é uma ficção. Então, a fabulação se desenvolverá em três camadas (universos) simultâneos: os atores (Allen, Weaver, Rickman, etc) que interpretam uma ficção na qual eles são atores (Jason Nesmith, Gwen DeMarco, Alexander Dane, etc) que interpretam uma outra ficção (Comandante Peter Taggert, Tenente Tawny Madison, Dr. Lazarus, etc). Enfim, alguns podem achar meio besta eu ficar discutindo esses altos temas, citando Deleuze, Barthes e Brecht a respeito de uma ficção científica B sub-hollywoodiana. É claro que há filmes muito mais “cabeça” que também tratam dessas coisas (basta ver as produções de David Lynch). Mas cinema é cinema.

Um comentário:

Ronald Perrone disse...

Tô lendo esse livro do Deleuze e tô achando genial... belo post!
Abraço!