segunda-feira, março 17, 2008

O Banheiro do Papa


A câmera acompanha, numa panorâmica bem próxima, a sombra baixa de uma bicicleta em movimento veloz, durante um tempo considerável. Então, ela é subitamente ultrapassada por uma motocicleta (da qual somente ouvimos o ruído violento do motor, contrastando com o som fluido das correntes da bicicleta), que quase a derruba no chão. Esta cena, que abre O Banheiro do Papa (“El Baño del Papa”, Uruguai / Brasil / França, 2007, dir.: Enrique Fernández e César Charlone), já resume as melhores qualidades desta película, muito bem cinematografada (trabalho de Charlone, parceirão de Fernando Meireles). É claro que o estilo “modernoso” do diretor de fotografia de Cidade de Deus é irritante às vezes, pois parece ser usado indiscriminadamente para mostrar qualquer assunto em qualquer momento – mas essas são coisas dos tempos “mudernos” em audiovisual. Para o assunto deste filme, eu particularmente preferiria a câmera sóbria do cinemão clássico mesmo (principalmente o italiano).

De qualquer modo, as boas realizações de O Banheiro do Papa encontram-se mais nos aspectos visuais do filme, incluindo aí o tom carinhoso com que a câmera acompanha os personagens em seu cotidiano; nestes momentos, também o roteiro cai muito bem, os diálogos são humanos, naturais, simpáticos e cheios de graça. Mas quando se chega no drama, nos acontecimentos mais fortes e trágicos da vida, e nas atitudes dos personagens em relação a eles e em relação uns aos outros, o filme patina. Vão se acumulando no roteiro muitos aspectos de personagens diferentes, de acontecimentos que vão se encadeando e se sucedendo sem a devida atenção, sem a parada necessária para a melhor reflexão e o melhor efeito de emoção (catártica) no espectador. Ou seja, sem o devido aprofundamento. Parece que o cinema contemporâneo não tem mais paciência para contar uma história, paciência que só encontramos nos mais velhinhos, gente do naipe de Clint Eastwood...

N’O Banheiro do Papa, coloca-se muita coisa para dizer e discutir em pouco tempo de filme (coisas não só das personagens, mas de todo o “contexto” social, político e histórico em que vivem). Entre a metade final e o último terço da história, a “sarabanda” da narrativa fica realmente cansativa para o espectador. Assim como a velha série Matrix (1999-2003), a estréia de Charlone na direção promete muito, pretende muito, mas acaba ficando no meio do caminho. Inconsistência que é perfeitamente compreensível numa obra de estréia; por isso, o tom aqui não é o de desmerecer o filme, mas apontar as suas vitórias assim como os seus fracassos, como aprendizado para as próximas tentativas. Enfim, O Banheiro do Papa acaba pro tropeçar nas próprias pernas. O filme se desequilibra: no caldeirão de coisas a serem acrescentadas e misturadas para “enriquecer” a trama (e os personagens), algumas delas – realmente importantes – passam com um tratamento muito sumário, ao passo que uma exagerada ênfase é colocada de modo excessivamente deslocado em outras coisas, em outros momentos.

Os momentos cômicos, não-sérios do filme são bons; são os momentos realmente humanos e artísticos. Mas o mesmo já não se pode afirmar dos momentos dramáticos, os momentos “sérios” onde entrará a “questão” social, política, econômica, etc. Nestes últimos, acaba transparecendo muito o discurso de um diretor e de um roteirista (que pertencem a uma outra condição social, é claro) que querem “documentar”, registrar e denunciar o sofrimento daqueles “pobres diabos”. Há momentos em que o filme simplesmente se transforma em fotografias estáticas (ou quase) daqueles personagens populares frustrados e cansados, lembrando bastante a exploração pseudo-artística da miséria nas fotografias de Sebastião Salgado, cheia de “hype” e de oportunismo “marketeiro”. Coisa fina para as galerias de arte, para os “connoisseurs” e para as madames pretensamente preocupadas. Ou para os cinéfilos das salas de cinema com nomes de bancos. N’O Banheiro..., pesa mais o profissionalismo do que a arte. É um modelo, uma cartilha para as faculdades de comunicação “audiovisual”.

Valeu a tentativa (valeu mesmo). Mas o filme desaba sobre o peso e o desajuste do centro de gravidade da sua própria ambição. Seria recomendável os diretores estudarem mais e melhor os filmes italianos dos anos 40 e 50 (que não são o único referencial possível aqui, é lógico). O passo do andamento da película parece meio indeciso, desajeitado e nem um pouco gracioso. Repito: em relação a muitos dos elementos do roteiro, O Banheiro do Papa vale mais por suas intenções (assim como Sangue Negro). Mas querer não é poder, infelizmente. Ainda mais quando se quer muito. O filme de Charlone e Fernández não vai muito além de um potencial latente, uma bela e significativa premissa, uma possibilidade. Como diz Heidegger, citado por Gilles Deleuze em A Imagem-Tempo: “O homem sabe pensar na medida em que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar”. Acredito que o artista talentoso acabará por aprender a realizar obras de fato “pensantes”.

2 comentários:

Lorde David disse...

Concordo com as ressalvas. Não me encontro entre os que celebram o filme, que parece quase uma unanimidade entre a crítica ao destacar seu aspecto humano e tal, mas o estilo de fotografar de Charlone sempre me incomodou, desde Cidade de Deus. Em O Jardineiro Fiel, os malabarismos formais (filtros, handheld camera, etc.) eram tantos que impediam de se fixar nos caracteres humanos e críticos da estória, ficando tudo muito distanciado. A sua câmera era um ruído a àrte de ver representada pelo cinema. E continua até hoje.

André Renato disse...

Concordo plenamente. Às vezes, a nossa crítica parece aquelas tias ou avós que dizem a todos os ventos que os seus sobrinhos ou netos são os mais bonitos, espertos e bonzinhos do mundo... Dar uma força à produção latino-americana é obviamente importante, mas o excesso de mimos mais prejudica o nosso cinema do que o ajuda, assim como aos nossos filhos, sobrinhos ou netos (eis o que nem todos percebem).