domingo, janeiro 20, 2008

O Enigma de Kaspar Hauser


“Em Herzog, assistimos a um extraordinário esforço para apresentar à vista imagens propriamente tácteis que caracterizem a situação dos seres “sem defesa”, e se combinem com a grande visão dos alucinados.” Gilles Deleuze, A Imagem-Tempo

Na nota de rodapé ao trecho acima, o autor cita um estudo da obra de Herzog que afirma que, em O Enigma de Kaspar Hauser, coexistem “as grandes visões oníricas e os pequenos gestos tácteis”. Essa dupla dimensão está presente em praticamente todos os planos do filme. Há, não apenas nesta, mas em todas as obras de Werner Herzog, um misticismo meditativo que se expressa na forma de um olhar demorado sobre a paisagem da Natureza (mostrada em todo o sublime de sua grandeza, o que é bem romântico) e sobre a “paisagem” do Homem: no caso de Kaspar Hauser, a cidadezinha idílica – e os seus arredores – do interior da Alemanha no começo do século XIX e os seus habitantes. O ser humano é colocado como mais um elemento que compõe o quadro da paisagem. Eis o caráter mais próprio do estilo pictórico e “táctil” de Herzog.

O Enigma de Kaspar Hauser, cuja tradução literal do título em alemão seria “Cada um por si e Deus contra todos”, é a história real de um rapaz que tinha vivido sua vida inteira, até aquele momento, trancado em um calabouço, sem contato algum com o mundo exterior ou com outros seres humanos. De repente, ele aparece numa praça pública de Nuremberg, sem saber falar e mal sabendo caminhar, carregando uma carta que seria de seu “pai” (na verdade, o homem que o criou) e que pedia que ele fosse “adotado” e incluído na sociedade civilizada. Um personagem assim, uma história dessas – real, ainda por cima – e a época em que se passa (começo do século XIX) mostram bem as preferências do diretor e o seu caráter Romântico, presentes em mais de uma de suas obras. Temos aqui o indivíduo (foco central da arte e da cultura românticas) tão isolado de tudo e de todos, e por isso mesmo tão único e diferente em sua individualidade, em sua identidade exótica, que ele acaba por chegar, paradoxalmente, aos limites da caracterização como indivíduo humano e criativo (originalidade é tudo para o espírito romântico).

Kaspar Hauser é mesmo um homem? Um animal? Ou algum tipo de vegetal ambulante? O olhar próximo e táctil de Herzog segue à risca a tradição do Romantismo alemão: um mergulho tão grande no Gênio (o indivíduo) e no Sublime (a natureza) que vai além de qualquer expressão emotiva em particular, tocando as esferas do filosófico, do mítico, do místico e do universal. Herzog vai do gesto táctil à grande visão onírica dos alucinados; e volta; e vai de novo, num constante movimento dialético. Mas o alucinado aqui não é o caso do louco patológico; para Herzog, o que interessa é o louco-iluminado, o louco-gênio do Romantismo; o “clown” no dizer do poeta Manuel Bandeira, que, sem querer querendo, tem muito a ensinar sobre nós mesmos e sobre as coisas.

Esse “clown”, enquanto enigma irresolúvel, inevitavelmente cairá no circo. O circo dos enigmas cujas tentativas de compreensão já foram abandonadas. O circo dos párias. Se já havia algo de O Gabinete do Dr. Caligari (obra fundamental do cinema alemão) na relação entre Kaspar Hauser e o seu “pai”, há mais ainda neste circo de “variedades”. Como é que se chega a este circo? Em princípio, as pessoas tentam compreender o jovem Kaspar Hauser e ensiná-lo a civilizar-se, recrutando para isso todo o desajeitado e patético esforço da Ciência e da Razão. Mas os trabalhos são vãos. Kaspar sempre lhes escorrega por entre os dedos – a cena em que ele responde ao desafio lógico do professor de matemática é magnífica. Os esforços são inúteis não porque Kaspar não fosse civilizável, mas porque o pensamento e os conceitos de todos estão por demais compartimentados em categorias muito estreitas. E Kaspar Hauser é uma afronta inconsciente a essas categorias. Nesse sentido, há um humor muito sutil, algo de ridículo e de circense (o circo também aqui se faz presente) nas “sérias” investigações que as autoridades fazem junto a Kaspar, num primeiro momento. Quer figura mais circense e burlesca do que a do escrivão? Inevitavelmente, todas as investigações falharão.

Então, o que restará a se fazer? Entregar o rapaz-enigma ao circo, que é uma forma bem peculiar de inclusão na exclusão. Ficam assim amortecidos ou mesmo anulados quaisquer impactos incômodos que Kaspar Hauser poderia continuar exercendo no consciente da comunidade. Riremos da coisa que não compreendemos, atribuindo-lhe um caráter e uma função de “clown”, para que assim esta não nos amedronte. O “clown” é extremamente ilógico, mas destituído, esvaziado de qualquer poder ameaçador. E também de qualquer sentido intrínseco. É assim que o enigma estará mais para mistério. Ou cada um por si (e Deus contra todos, o que dificilmente se perceberá). Não obstante, Kaspar Hauser se humanizará em muitos aspectos e aprenderá muitas coisas da civilização. Será adotado por um professor carinhoso e a exclusão não será completa – até mesmo diminuirá com o tempo.

Contudo, no fundo da alma, sempre ficará algo que não será processado, compreendido, adaptado e incluído (lembremos novamente que se trata de um filme Romântico). Assim, o mistério – ou a parte mais essencial dele – persistirá. No final, tal mistério se crerá resolvido, mas de um modo que também não deixa de ser espetacular / circense, na autópsia e na análise do cérebro de Kaspar Hauser. E isso apenas tornará ainda mais evidente a estupidez da matéria, cujo parco conhecimento tenta abarcar soberbamente as questões psicológicas / espirituais. É a ciência que tenta compensar nossa incompetência espiritual, e não o contrário. A imagem, bastante “táctil”, dos doutores apalpando, fatiando e virando o cérebro de Kaspar Hauser em cima da mesa é mostra disso.

Um comentário:

Kamila disse...

Não conhecia o filme. Na realidade, não sou tão familiarizada assim com a obra de Werner Herzog. E fiquei curiosa...