A culpa é do Fidel? A ironia já está no título, ironia que não poupa nem direita nem esquerda, apontando a pequenez de pensamento que afeta ambos os lados. Tanto “companheiros” quanto “reacionários” são, muitas vezes, cegados por preconceitos, intolerâncias, radicalismos sectários e outras atitudes pouco dignas de orgulho. Os pais que tiram à força a filha das aulas de catecismo na escola não estariam incorrendo na mesma forma de dogmatismo que aqueles outros pais que fazem os filhos passar, queiram estes ou não, pelas sendas dos sacramentos católicos? Mas o filme A culpa é do Fidel (França / Itália, 2006), estréia na direção de Julie Gravas – filha do grande mestre do cinema político, o grego Costa Gravas – não está preocupado em discutir o “macro” contexto político em si, ao contrário dos filmes do pai, como Z (1969).
A sensibilidade da senhorita Gravas está em filtrar toda a loucura político-ideológica da Guerra Fria pelos olhos de uma menina de uns 11 anos de idade. Trata-se de Anna de la Mesa, vivida pela ótima atriz-mirim Nina Kervel-Bey – que carrega com muita competência o filme inteiro nas costas. Os seus pais, em princípio pequenos-burgueses, acabam se engajando na luta e se tornando “comunistas barbudos”. A mãe, francesa, passará a escrever um livro sobre mulheres que fizeram aborto, além de matérias “engajadas” para a revista “Marie Claire”, da qual é articulista. O pai, um espanhol de família nobre, passará a ajudar na ascensão do governo Allende no Chile, e ajudará também a irmã, que perdera o marido (comunista) na ditadura Franco. O arrependimento de não ter feito nada em relação a isso contribuirá muito para que o pai mude de vida e reveja seus conceitos.
As crianças, Anna e o seu irmãozinho François, serão pegos de muita surpresa no meio de todos esse redemoinho. Eis é o tema verdadeiro do filme: a particularidade do olhar e da experiência infantil frente aos “anos de chumbo”. Muitas fitas já trataram dessa oposição entre o universo da criança e o universo adulto em situações-limite (principalmente a guerra). Mas a diferença aqui é que tal embate não é mostrado numa chave trágica – que é o que normalmente acontece. A película tem o seu drama, é claro, mas o que predomina é a ironia. Mas não uma ironia corrosiva, trágica; e sim um humor repleto de condescendência, tanto pela criança quanto pela situação. Uma condescendência que entende que assim é que caminha a humanidade (entre avanços e tropeços por todos os lados) e que tudo faz parte, o que precisamos é entender bem as coisas e aprender a viver com elas de uma maneira saudável.
Nesse sentido, o tom do filme – tanto da narrativa quanto de sua mensagem – é algo carinhoso e reconfortante como um abraço e um bom conselho de avó. Nada fora do comum para uma história centrada na figura da criança. O melhor deste filme, que é o seu bom humor e a beleza com que mostra as situações, está ligado intrinsecamente à pureza do olhar infantil e ao choque (não violento, mas burlesco) entre este e o olhar por demais “impuro” do adulto. No entanto, nada aqui é trágico, como já disse; tudo está a serviço de um aprendizado. Uma das mais altas e difíceis lições ideológicas que um indivíduo tem que aprender em sua caminhada política está na cena em que a menina confunde solidariedade com seguir a opinião e a atitude da maioria. E isso aos 11 anos. Como esta, há muitas outras cenas, cômicas e “edificantes” ao mesmo tempo.
Em seu primeiro filme, Julie Gravas já dá mostras de muita competência cinematográfica. Em enquadramentos simples e demorados, identificando a câmera ao olhar da criança, ela capta e nos transmite o assombro que só uma criança consegue ter em relação a coisas que para nós adultos já são mais do que banais. A cena que mostra – em câmera subjetiva – Nina cercada por um grupo de “vermelhos barbudos” é muito sensibilizante e significativa nesse sentido; ou a cena em que a menina vê, pela primeira vez, o seu pai de barba – aqui temos um violento e “assustado” zoom em cima da barba. Isso nos faz pensar em como o mistério, para a criança, é muito mais misterioso do que qualquer coisa que para nós seja um “mistério”. Mas tais mistérios serão no final desvelados, pois a visão infantil é pura, ingênua, mas é uma visão em formação. E essa dimensão da formação é o que mais acaba por pesar no filme.
Não só a imagem, mas também o som (cujo volume, em algumas cenas, é elevado muito acima do normal) procura transmitir o peso, a força incompreensível, em parte fascinante em parte assustadora, com que a experiência se coloca para a criança. Isto fica patente na cena em que Nina é levada (contra a sua vontade, é lógico) a uma manifestação de rua que termina em confronto com a polícia. Esta cena, vista na tela grande do cinema, possui uma força incrível. Em DVD não será mais nada. A profundidade de campo também é trabalhada com muita consciência e criatividade. Veja a cena do “pescoço de galinha”: o plano em que Anna e sua amiguinha Cecília estão sentadas do lado de fora do gabinete da madre reitora da escola, enquanto suas mães (no plano de fundo, através de uma janela interna de vidro) discutem lá dentro a “travessura” que as meninas fizeram. Muito do espírito e das idéias do filme estão resumidos nesta cena. É isso o que acontece nos bons filmes: cada parte reproduz e consolida, à sua própria maneira, o todo.
A cena no final, em que Anna tenta reconfortar o pai, sabendo do golpe final no Chile, é muito bela e cheia de sentido: a menina finalmente entendeu o que tinha que entender, sem precisar desacreditar o que já acreditava. Entregue aos dogmatismos de direita dos avós e da antiga babá, e aos dogmatismos de esquerda dos pais, Anna acabará aprendendo por conta própria que a maior lição é pensar com a própria cabeça e tomar por si só as próprias decisões, usufruindo para isso de uma liberdade que é o mais importante de tudo. É por isso que ela acaba, no final, desiludindo-se com a escola das freiras, da qual tanto gostava, e abandonando-a. Anna, em sua paciente observação dos adultos ao redor (o “voyerismo” curioso dessa menina é uma das constantes do filme, da primeira à última cena), também aprenderá uma outra grande lição: compreender e ter empatia para com as suas aspirações e crenças, e compadecer-se com as suas frustrações, independentemente do fato de a menina concordar ou não, identificar-se ou não com tais aspirações ou crenças. É isso que dá uma profunda e sutil beleza à cena final, citada logo acima, entre Anna e o pai. São lições que todos nós deveríamos aprender.
A sensibilidade da senhorita Gravas está em filtrar toda a loucura político-ideológica da Guerra Fria pelos olhos de uma menina de uns 11 anos de idade. Trata-se de Anna de la Mesa, vivida pela ótima atriz-mirim Nina Kervel-Bey – que carrega com muita competência o filme inteiro nas costas. Os seus pais, em princípio pequenos-burgueses, acabam se engajando na luta e se tornando “comunistas barbudos”. A mãe, francesa, passará a escrever um livro sobre mulheres que fizeram aborto, além de matérias “engajadas” para a revista “Marie Claire”, da qual é articulista. O pai, um espanhol de família nobre, passará a ajudar na ascensão do governo Allende no Chile, e ajudará também a irmã, que perdera o marido (comunista) na ditadura Franco. O arrependimento de não ter feito nada em relação a isso contribuirá muito para que o pai mude de vida e reveja seus conceitos.
As crianças, Anna e o seu irmãozinho François, serão pegos de muita surpresa no meio de todos esse redemoinho. Eis é o tema verdadeiro do filme: a particularidade do olhar e da experiência infantil frente aos “anos de chumbo”. Muitas fitas já trataram dessa oposição entre o universo da criança e o universo adulto em situações-limite (principalmente a guerra). Mas a diferença aqui é que tal embate não é mostrado numa chave trágica – que é o que normalmente acontece. A película tem o seu drama, é claro, mas o que predomina é a ironia. Mas não uma ironia corrosiva, trágica; e sim um humor repleto de condescendência, tanto pela criança quanto pela situação. Uma condescendência que entende que assim é que caminha a humanidade (entre avanços e tropeços por todos os lados) e que tudo faz parte, o que precisamos é entender bem as coisas e aprender a viver com elas de uma maneira saudável.
Nesse sentido, o tom do filme – tanto da narrativa quanto de sua mensagem – é algo carinhoso e reconfortante como um abraço e um bom conselho de avó. Nada fora do comum para uma história centrada na figura da criança. O melhor deste filme, que é o seu bom humor e a beleza com que mostra as situações, está ligado intrinsecamente à pureza do olhar infantil e ao choque (não violento, mas burlesco) entre este e o olhar por demais “impuro” do adulto. No entanto, nada aqui é trágico, como já disse; tudo está a serviço de um aprendizado. Uma das mais altas e difíceis lições ideológicas que um indivíduo tem que aprender em sua caminhada política está na cena em que a menina confunde solidariedade com seguir a opinião e a atitude da maioria. E isso aos 11 anos. Como esta, há muitas outras cenas, cômicas e “edificantes” ao mesmo tempo.
Em seu primeiro filme, Julie Gravas já dá mostras de muita competência cinematográfica. Em enquadramentos simples e demorados, identificando a câmera ao olhar da criança, ela capta e nos transmite o assombro que só uma criança consegue ter em relação a coisas que para nós adultos já são mais do que banais. A cena que mostra – em câmera subjetiva – Nina cercada por um grupo de “vermelhos barbudos” é muito sensibilizante e significativa nesse sentido; ou a cena em que a menina vê, pela primeira vez, o seu pai de barba – aqui temos um violento e “assustado” zoom em cima da barba. Isso nos faz pensar em como o mistério, para a criança, é muito mais misterioso do que qualquer coisa que para nós seja um “mistério”. Mas tais mistérios serão no final desvelados, pois a visão infantil é pura, ingênua, mas é uma visão em formação. E essa dimensão da formação é o que mais acaba por pesar no filme.
Não só a imagem, mas também o som (cujo volume, em algumas cenas, é elevado muito acima do normal) procura transmitir o peso, a força incompreensível, em parte fascinante em parte assustadora, com que a experiência se coloca para a criança. Isto fica patente na cena em que Nina é levada (contra a sua vontade, é lógico) a uma manifestação de rua que termina em confronto com a polícia. Esta cena, vista na tela grande do cinema, possui uma força incrível. Em DVD não será mais nada. A profundidade de campo também é trabalhada com muita consciência e criatividade. Veja a cena do “pescoço de galinha”: o plano em que Anna e sua amiguinha Cecília estão sentadas do lado de fora do gabinete da madre reitora da escola, enquanto suas mães (no plano de fundo, através de uma janela interna de vidro) discutem lá dentro a “travessura” que as meninas fizeram. Muito do espírito e das idéias do filme estão resumidos nesta cena. É isso o que acontece nos bons filmes: cada parte reproduz e consolida, à sua própria maneira, o todo.
A cena no final, em que Anna tenta reconfortar o pai, sabendo do golpe final no Chile, é muito bela e cheia de sentido: a menina finalmente entendeu o que tinha que entender, sem precisar desacreditar o que já acreditava. Entregue aos dogmatismos de direita dos avós e da antiga babá, e aos dogmatismos de esquerda dos pais, Anna acabará aprendendo por conta própria que a maior lição é pensar com a própria cabeça e tomar por si só as próprias decisões, usufruindo para isso de uma liberdade que é o mais importante de tudo. É por isso que ela acaba, no final, desiludindo-se com a escola das freiras, da qual tanto gostava, e abandonando-a. Anna, em sua paciente observação dos adultos ao redor (o “voyerismo” curioso dessa menina é uma das constantes do filme, da primeira à última cena), também aprenderá uma outra grande lição: compreender e ter empatia para com as suas aspirações e crenças, e compadecer-se com as suas frustrações, independentemente do fato de a menina concordar ou não, identificar-se ou não com tais aspirações ou crenças. É isso que dá uma profunda e sutil beleza à cena final, citada logo acima, entre Anna e o pai. São lições que todos nós deveríamos aprender.
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