sábado, janeiro 12, 2008

A Espiã


Alguns filmes revelam a alma do seu discurso logo no começo. Outros, em alguma cena-chave lá pelo meio. É claro que toda obra cinematográfica é, inteiramente, discurso – que ninguém se iluda. Mas sempre há aquele momento especial em que a idéia central desse discurso, em que o espírito da coisa que faz ela ser o que é, fala mais alto – até mesmo grita. No caso de A Espiã (“Zwartboek”, Holanda / Alemanha / Bélgica, 2006), nova película do holandês Paul Verhoeven (Robocop, Instinto Selvagem, Tropas Estelares) que estréia hoje no Brasil, a alma – melhor dizendo – o espírito do discurso aparece só no último plano do filme, enquanto a tela já vai escurecendo (“fade-out”). Essa última imagem está, pelo sentido, intimamente ligada a uma fala da protagonista (Rachel Stein / Ellis de Vries, interpretada por Carice van Houten) em um dos momentos cheios de reviravoltas que a narrativa tem: “Isto nunca termina!” Essa frase é dita num tom de mais absoluto desespero. Considerando que a história do filme é contada em “flashback”, acaba sendo muito interessante relacionar essa linha de diálogo à primeira e à última cena. É assim que o todo da película surge ao nosso entendimento, ganhando uma identidade e – sobretudo, visto se tratar de uma obra de Verhoeven – uma mensagem. Pois sim, todo discurso carrega uma mensagem, e em alguns deles, tal mensagem fala bem alto – a quem tiver ouvidos para ouvi-la.

Em quase duas horas e meia de projeção, testemunhamos as peripécias de fräulein Rachel, uma holandesa judia de família rica que tem de fugir das garras da SS nazista, mas acaba caindo em outras garras – não menos afiadas – que são as da Resistência Holandesa (da qual o líder é um veterano comunista). Repleta de gente anti-semita, a “resistência” não confia plenamente na jovem ex-cantora. Mesmo assim, ela ganha uma missão pra lá de especial: infiltrar-se no escritório, na cama e na vida do comandante da Inteligência alemã em Haia, o capitão Ludwig Müntze (Sebastian Koch). Esta sinopse é propositalmente pobre, pois, como eu disse, a narrativa é construída com base em peripécias e reviravoltas bastante impressionantes, em segredos e revelações, mentiras e verdades encobertas, enganos e desenganos, como faz muito bem a um “thriller” de espionagem – principalmente um da 2ª Guerra Mundial, “inspirado em fatos reais”. O fato é que o roteiro é totalmente ficcional, escrito a quatro mãos por Verhoeven e por Gerard Soeteman – colaborador do diretor no início de sua carreira com Louca Paixão (“Turkish Delight”, 1972) e Soldado de Laranja (“Soldier of Orange”, 1977). No entanto, Paul Verhoeven declara que muitos dos eventos mostrados são verdadeiros: “Os eventos são verdadeiros, a história não.” Beleza, mas que “eventos” são esses? A guerra? Infelizmente, essas informações eu não consegui achar.

Não obstante, além do suspense que empolga muito, A Espiã nota-se pela complexidade moral dos personagens e do enredo. Como diz o próprio realizador: “Neste filme, tudo tem um tom de cinza. Não há pessoas completamente boas, nem completamente más. É como a vida. Não é muito hollywoodiano” (em entrevista ao jornal The Guardian). Parece que o cineasta dos geniais Robocop (1987) e Tropas Estelares (1997) aprendeu a lição com o ridículo O Homem Invisível (“The Hollow Man”, 2000), seu último filme até agora, feito em Hollywood. De volta à terra natal, Verhoeven não deixou, por outro lado, de fazer uma super-produção – para os padrões europeus. É o filme mais caro já produzido nos Países Baixos, mas também o mais rentável. Contudo, voltando à questão moral, A Espiã não tem aquele mesmo otimismo, ou fé nas boas realizações do espírito humano que O Pianista de Roman Polanski; mas, por outro lado, o filme não é nenhuma tese pessimista, niilista, irônica até a corrosão, ou o diabo que o seja, caso de qualquer fita de David Cronenberg. Paul Verhoeven consegue a façanha (!) de ser humanista sem ser condescendente. Isso é muito raro de se encontrar. É em tal chave que devemos entender a ambigüidade moral de que fala o diretor e a maneira que ele escolheu para mostrá-la. Todos ali são vítimas e carrascos. Não há nenhuma desculpa definitiva para ninguém. Mas também não há condenação definitiva. Pelo menos não deveria haver. Mas acaba havendo, em certa maneira. É por aí que se entende aquela fala de Rachel / Ellis que eu citei no começo: “Isto nunca termina!”

Como artista sábio, Paul Verhoeven põe o foco no humano – e não no étnico, ou no religioso, ou no nacional, ou no político-ideológico. E, se observarmos bem o fator humano (universal), veremos que todos são mais inocentes do que culpados. Mas acabam sendo condenados mesmo assim, porque quem é que vai atentar para o fator humano, afinal? Ainda mais naquele contexto, onde pululam e se batem nacionalidades e patriotismos, religiões, ideologias e etnias. É desta batalha de pessoas por sua dignidade (sejam elas judias, nazistas ou comunistas) que o filme retira a sua força. Pois a guerra nunca termina. Quando se acredita, tolamente, que a luta acabou, na verdade ela está apenas começando – conforme se vê num diálogo sensacional entre Rachel / Ellis e o capitão Müntze, além das magníficas cenas de perseguição durante a parada comemorativa que “marcava” justamente o “fim” da guerra. Aliás, a desgraça que nunca termina vai provocar identificações e associações absurdas para quem não adota a ótica humana: assim é que a judia se tornará amante do oficial da SS; ambos perderam suas famílias na guerra (“É difícil viver quando se perde tudo, não?” é o que Müntze pergunta a Ellis) e ambos acabarão perdendo um ao outro e se perdendo a si mesmos. De fato, isto nunca termina.

As pessoas não enxergam a humanidade essencial umas nas outras. Assim é que os holandeses, ao “punirem” os colaboracionistas, acabam se igualando aos seus inimigos nazistas (numa cena que é quase uma paródia escatológica de Carrie, A Estranha, de Brian de Palma). Assim é que traidores são ovacionados como heróis e heróis são perseguidos como traidores. E ambos estão em todos os “lados” da batalha: dentre os holandeses – da população ou da resistência, dentre as forças aliadas “libertadoras”, dentre o exército de ocupação nazista, etc. Essa miopia faz a fraqueza e a força de todos (pois cada um luta incrivelmente pelo que é “seu”: sua pátria, seu povo, sua família, sua dignidade). Este filme é menos positivo do que O Pianista (como eu disse) porque não há aqui gesto algum de redenção, de compaixão desinteressada ou complacente. Talvez haja dentre o improvável casal central (Rachel / Müntze), mas sem tanta força, tampouco eficiência. O trancamento de um homem vivo dentro de um caixão é o que predomina no tom das atitudes morais do filme. No contexto dos acontecimentos, as questões morais se misturam, se distorcem, se transformam, se transferem; mas, no fundo, com um olhar muito cuidadoso nós conseguimos diferenciá-las, coisa que os personagens não conseguem – talvez isso fosse exigir demais deles, naquelas situações-limite. Mas é por isso mesmo que a coisa nunca termina.

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