quarta-feira, janeiro 09, 2008

Quanto Mais Quente Melhor


Eis o “Wilder Touch”, que o próprio Billy Wilder definiu: “Tomar um clichê difundido e mostrar a outra face da moeda.” (in Dicionário de Cinema: Os Diretores, de Jean Tulard). Quantos realizadores são capazes de mostrar essa “outra face da moeda” sem cair no mero pastiche mal disfarçado de “homenagem”? Billy Wilder, em Quanto Mais Quente Melhor (1959), serve de modelo a qualquer cineasta que pretenda “reinventar” um gênero. Esse filme surpreendente mistura e leva a outras paragens as fitas de gângster e as comédias burlescas (citando aqui também o verbete de Jean Tulard). Muitos e famosos filmes podem ter suas fontes rastreadas até essa obra-prima. Para citar apenas alguns – dos que vêm à cabeça neste momento: “Tootsie” (1982, dir.: Sidney Pollack); “Vitor ou Vitória?” (1982, Blake Edwards; este filme, baseado numa produção alemã de 1933, se aproxima mais da linha de “Quanto Mais Quente Melhor”, pois junta a questão do gângster na Grande Depressão); “Não Somos Anjos” (a primeira versão é de 1955 – portanto, anterior ao filme de Wilder – dirigida por Michael Curtiz; mas há um remake feito em 1989 por Neil Jordan); ); “Uma Babá Quase Perfeita” (1993, Chris Columbus); “Penetras Bom de Bico” (2005, David Dobkin).

Pollack, Edwards, Curtiz, Jordan, Columbus. Como a gente pode ver, diretores de peso enveredaram por sendas parecidas com as de Billy Wilder. Em Some Like It Hot, temos dois músicos: o saxofonista Joe (Tony Curtis) e o contra-baixista Jerry (Jack Lemon), que precisam fugir da máfia de Chicago após testemunharem uma chacina. Assim, eles entram – devidamente disfarçados – para uma banda só de mulheres, onde conhecerão a cantora Sugar Kane (Marilyn Monroe), uma guria que não passa sem provocar fortes reações nos homens. Então começa aquela deliciosa comédia do tipo “uma situação bizarra e insustentável que uma hora acabará sendo revelada”. Mas essa revelação – ao contrário do que costuma acontecer nos filmes que eu relacionei a este – não se vestirá de qualquer toque dramático, ou trágico, ou condescendente, ou com qualquer apelo emocional. O humor cínico e corrosivo se manterá até o fim. Esse toque (incluindo o final, do qual não darei “spoiler” algum), é um dos elementos que fazem de “Quanto Mais Quente Melhor” um filme notável.

Outros toques que dão uma aula de cinema:
1. O incrível talento do “casal” Lemon / Curtis, uma das melhores duplas de machos em comédias do Cinema. Junte-se a isso a velha e carnavalesca questão do “crossdressing” no humor farsesco, e veremos que Billy Wilder trabalha o tema com toda a gostosura de sua vulgaridade, mas ainda assim mantendo uma classe que é incrível.
2. Falando em classe e vulgaridade, nada, mas nada melhor do que ver e pensar na única Marilyn Monroe. Aqui, ela faz nada mais nada menos do que o arquétipo da Loira: em princípio meio burra mas com muita esperteza, afinal; muito atraente (é lógico); ingênua em algumas coisas, mas experiente e provocante em outras; vítima e bandida a um só tempo.
3. As falas afiadíssimas, antológicas, presentes no roteiro, como:
Little Bonaparte: “Havia algo no bolo que os fez mal...” (explicando a um policial os corpos de seus rivais gângsters que acabaram de ser baleados por um capanga saído de um bolo gigante – do qual normalmente saem belas dançarinas).
Detetive Mulligan: “Meus cumprimentos ao cozinheiro! Não saio daqui sem uma receita!”
E a melhor de todas: “Ninguém é perfeito!” (Não direi em que cena ou contexto ela se encontra. Assista ao filme.)

4. A bela fotografia, com muita riqueza em detalhes significativos, principalmente nas polainas do chefão do crime Spats Colombo (George Raft, que também atuou no “Scarface” de Howard Hawks). Essas polainas são um verdadeiro leitmotiv (motivo recorrente), caracterizando o personagem e acompanhando a sua história. Temos aqui uma das mais interessantes metonímias que eu já vi no Cinema.
5. Ao falar do humor cínico, esqueci de comentar o aspecto até mesmo non-sense que a comédia vai ganhando. Esse non-sense é o “coup de grace” da última cena, fazendo com que o espectador – ao terminar de ver o filme – (re)configure-o como um todo em sua mente e lhe dê uma identidade definitiva que não é nada mais do que a impressão final. Genial.
6. A introdução do filme, que pede uma paráfrase especial:

Vemos um carro funerário seguir calmamente, carregando um caixão (presumivelmente ocupado); os ocupantes do veículo estão com um olhar desconsolado. Entra a persegui-lo uma viatura da polícia, em alta velocidade, armas em punho. O carro funerário dispara à frente, seus ocupantes puxam de compartimentos secretos no interior do veículo metralhadoras (as famosas “tommy guns” da era do rádio), revólveres e escopetas. Começa uma intensa troca de tiros entre os dois veículos. Após uma intensa corrida, o carro “funerário” finalmente consegue despistar o da polícia. Então, um dos ocupantes da parte de trás do veículo percebe que alguns tiros atingiram o caixão, e dos buracos está a escorrer um líquido viscoso. Os homens abrem a tampa do esquife e vemos que ele está cheio de garrafas de bebidas alcoólicas. Então, sobrepõe-se à imagem um letreiro escrito: “Chicago 1929”. Absolutamente genial. Já se vê aí que se tem um grande filme pela frente. Posteriormente, o veículo chega numa “casa de velórios”, onde os convidados só entram se tiverem “informações” exatas sobre o morto. Passada a primeira sala, descobre-se uma agitada e lotada casa noturna, com apresentações musicais e de dança, onde o bar só serve “café” – dos mais variados “tipos”. Ah, nada como o cinemão clássico...

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