Quando a frente do Ford Mustang do tenente Bullitt aparece no espelho retrovisor central do carro dos suspeitos, damo-nos conta de que os dois veículos viraram verdadeiros personagens, inimigos mortais, predador e presa que não descansarão enquanto um dos dois não estiver fora de ação. Logo em seguida, há um corte da frente do mesmo Mustang para o rosto de Steve McQueen, que o pilota. Homem e máquina tornam-se uma coisa só. A caracterização das personagens, dos espaços e dos objetos que os compõem se dá através dessas incríveis metonímias. E a articulação dialética de tais metonímias vai produzindo outras incríveis figuras de linguagem: a metagoge (os carros que ganham vida sem estarem exatamente “vivos”) e a hipálage (os carros que ganham os atributos de seus ocupantes). Os dois contendores vão acompanhando e estudando vagarosamente os movimentos um do outro, como duas feras cercando-se mutuamente, rosnando, prestes a se engalfinhar. Quem der o primeiro golpe desencadeará a corrida... Esta seqüência é a melhor perseguição automobilística já filmada. É uma das primeiras e até hoje uma das mais influentes (não pude deixar de me lembrar dos jogos de videogame da série Driver).
As ruas de São Francisco transformam-se numa estranha selva castigada pelo sol a pino, por onde dois engenhosos tigres correm descontroladamente e se batem com uma violência calculada. Os rugidos dessas criaturas selvagens produtos da engenharia industrial são os magníficos roncos dos seus motores – principalmente o do “Highland Green” 1968 Ford Mustang G.T. 390 Fastback, de Bullitt / McQueen (que dispensou os dublês nesta seqüência). O outro “carro”, ocupado por dois bandidos, é um “Tuxedo Black” 1968 Dodge Charger R/T 440 Magnum. Não é à toa que são chamados de “muscle cars”. A cena da perseguição em alta velocidade, em si, é silenciosa – ou seja, sem qualquer música incidental (e também sem qualquer fala). Mas música para quê? Os roncos dos motores e os pneus “cantando” já são música suficiente para os ouvidos... A seqüência inteira é um autêntico exemplo do Cinema: todos os seus elementos confluem para a construção de uma estética coerente e para a transmissão de um significado que dá bastante em que pensar. Lembro-me agora da perseguição – também silenciosa – de Cary Grant por um pequeno avião, em Intriga Internacional de Alfred Hitchcock.
Como filme, Bullitt (EUA, 1968, dir.: Peter Yates) estabeleceu diversos parâmetros para o gênero policial: o policial honesto e rebelde, jovem, “cool” e garanhão, vivido por McQueen servirá de modelo para Harry Callahan (interpretado por Clint Eastwood em Dirty Harry – 1971) e para John Shaft (Shaft – 1971), dentre outros. Esse mesmo tipo de policial, associado a carros esporte, servirá de base para as séries de TV Starsky and Hutch (1975-1979) e Miami Vice (1984-1989). “Bullitt” é um painel delicioso da estética dos anos 60, dos figurinos aos automóveis, da ótima trilha sonora composta por Lalo Schifrin (autor do tema de Missão: Impossível) à montagem ganhadora do Oscar. Não consigo deixar de pensar que um remake, hoje, teria uma edição naquele estilão “24 Horas”; mas prefiro muito mais a “cara” dos filmes dos anos 60 mesmo. De resto, é muito interessante no filme a irreparável disjunção entre o sujeito e o seu objeto. Frank Bullitt não conseguirá chegar à resolução do mistério que investiga, mal chegará a pôr as mãos em (apenas alguns) dos responsáveis. Após algumas perseguições implacáveis e apesar delas, o resultado final – quando se chega a algum – não adianta nada. E assim ficamos com a cara de nada de Steve McQueen, na cena final.
O sujeito sempre aquém do objeto que busca. Bullitt está aquém da elucidação do caso, aquém de capturar os criminosos responsáveis, aquém de corresponder às expectativas de sua amante (Cathy, vivida pela belíssima Jacqueline Bisset). O fracasso rege a ação do tenente Bullitt, que já é muito delicada: ele não pode revidar os tiros, pois, se matar os suspeitos, jamais chegará a verdade alguma. No entanto, a placidez objetiva dele é inabalável; o fracasso não leva à frustração. E ele sabe que entre si mesmo e o seu objeto se interpõe uma “máquina” contra a qual ele não pode lutar porque também está aquém dela. Essa máquina pode se disfarçar em aviões ensurdecedores taxeando na pista do aeroporto, enquanto Bullitt persegue mais um suspeito – numa quase paródia, também sem música incidental, da cena da perseguição automobilística: os aviões e o barulho horrível das suas turbinas não têm a beleza, a graça, a proporção antropomórfica dos “muscle cars”; não são tão controláveis, não são a “extensão” do corpo de um indivíduo. Mas a máquina misteriosa e inatingível também pode estar encarnada e “representada” na figura do senador Walter Chalmers (Robert Vaughn). Qual é o papel dele nesta história, afinal?
As ruas de São Francisco transformam-se numa estranha selva castigada pelo sol a pino, por onde dois engenhosos tigres correm descontroladamente e se batem com uma violência calculada. Os rugidos dessas criaturas selvagens produtos da engenharia industrial são os magníficos roncos dos seus motores – principalmente o do “Highland Green” 1968 Ford Mustang G.T. 390 Fastback, de Bullitt / McQueen (que dispensou os dublês nesta seqüência). O outro “carro”, ocupado por dois bandidos, é um “Tuxedo Black” 1968 Dodge Charger R/T 440 Magnum. Não é à toa que são chamados de “muscle cars”. A cena da perseguição em alta velocidade, em si, é silenciosa – ou seja, sem qualquer música incidental (e também sem qualquer fala). Mas música para quê? Os roncos dos motores e os pneus “cantando” já são música suficiente para os ouvidos... A seqüência inteira é um autêntico exemplo do Cinema: todos os seus elementos confluem para a construção de uma estética coerente e para a transmissão de um significado que dá bastante em que pensar. Lembro-me agora da perseguição – também silenciosa – de Cary Grant por um pequeno avião, em Intriga Internacional de Alfred Hitchcock.
Como filme, Bullitt (EUA, 1968, dir.: Peter Yates) estabeleceu diversos parâmetros para o gênero policial: o policial honesto e rebelde, jovem, “cool” e garanhão, vivido por McQueen servirá de modelo para Harry Callahan (interpretado por Clint Eastwood em Dirty Harry – 1971) e para John Shaft (Shaft – 1971), dentre outros. Esse mesmo tipo de policial, associado a carros esporte, servirá de base para as séries de TV Starsky and Hutch (1975-1979) e Miami Vice (1984-1989). “Bullitt” é um painel delicioso da estética dos anos 60, dos figurinos aos automóveis, da ótima trilha sonora composta por Lalo Schifrin (autor do tema de Missão: Impossível) à montagem ganhadora do Oscar. Não consigo deixar de pensar que um remake, hoje, teria uma edição naquele estilão “24 Horas”; mas prefiro muito mais a “cara” dos filmes dos anos 60 mesmo. De resto, é muito interessante no filme a irreparável disjunção entre o sujeito e o seu objeto. Frank Bullitt não conseguirá chegar à resolução do mistério que investiga, mal chegará a pôr as mãos em (apenas alguns) dos responsáveis. Após algumas perseguições implacáveis e apesar delas, o resultado final – quando se chega a algum – não adianta nada. E assim ficamos com a cara de nada de Steve McQueen, na cena final.
O sujeito sempre aquém do objeto que busca. Bullitt está aquém da elucidação do caso, aquém de capturar os criminosos responsáveis, aquém de corresponder às expectativas de sua amante (Cathy, vivida pela belíssima Jacqueline Bisset). O fracasso rege a ação do tenente Bullitt, que já é muito delicada: ele não pode revidar os tiros, pois, se matar os suspeitos, jamais chegará a verdade alguma. No entanto, a placidez objetiva dele é inabalável; o fracasso não leva à frustração. E ele sabe que entre si mesmo e o seu objeto se interpõe uma “máquina” contra a qual ele não pode lutar porque também está aquém dela. Essa máquina pode se disfarçar em aviões ensurdecedores taxeando na pista do aeroporto, enquanto Bullitt persegue mais um suspeito – numa quase paródia, também sem música incidental, da cena da perseguição automobilística: os aviões e o barulho horrível das suas turbinas não têm a beleza, a graça, a proporção antropomórfica dos “muscle cars”; não são tão controláveis, não são a “extensão” do corpo de um indivíduo. Mas a máquina misteriosa e inatingível também pode estar encarnada e “representada” na figura do senador Walter Chalmers (Robert Vaughn). Qual é o papel dele nesta história, afinal?
3 comentários:
Filmaço! a perseguição de carros é clássica, e acho que só perde (?) para Operação França. Ah... que saudades de um ator tão "cool" como MacQuen,...
falow!
Existe apenas uma falha na sequencia da perseguição: onde o Dodge bate de frente, a ponto de tirar o foco da câmera ? Mas é tão empolgante, tão realista, que assim que tiver minha LCD de "trocentas" polegadas, essa sequencia é a primeira coisa que ela vai passar...
Ótima idéia! Acabei de comprar uma LCD de 42 polegadas. Vou alugar esse filme agora mesmo... E também Operação França, que ainda não vi...
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