sexta-feira, março 23, 2007

Marcel Martin e a Linguagem Cinematográfica

O Encouraçado Potemkim, Serguei M. Eisenstein, 1925
No mercado editorial brasileiro existem vários livros, livretos e cartilhas de introdução à estética do cinema. No entanto, enquanto uns são por demais simplificados – como Estética de Cinema, de Gerald Breton –, outros são muito complicados – caso de A Estética do Filme, organizado por Jacques Aumont. Algumas obras são mais equilibradas, mas, mesmo assim, eu não as recomendaria para uma exata primeira aproximação ao universo da sétima arte: O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência, de Ismail Xavier, é um bom exemplo de obra acadêmica acessível, mas ainda assim acadêmica.

A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin, é a melhor obra de introdução ao cinema que eu já pude encontrar. É a mais completa no que traz e explica de modo não esquemático, mas crítico e sobretudo apaixonado todos os elementos da gramática do filme. Marcel Martin não possui aquela sanha “cientificizante” dos semióticos fílmicos, como os do grupo de Jacques Aumont; a sua principal obra não é uma dissecação árida e esterilizante da arte cinematográfica, ela é carregada de um interesse vivo que desperta em quem lê uma paixão entusiasmada pelo universo do cinema e uma ansiedade por buscar e conhecer os grandes filmes clássicos que Martin sempre usa como exemplos de toda e qualquer explicação que queira dar.

Aqui vai um índice dos capítulos de “A Linguagem Cinematográfica”, que as edições mais antigas não trazem:

Introdução
I – Os caracteres gerais da imagem
II – O papel criador da câmera
III – A iluminação
IV – Os costumes (figurino) e os décors
V – As Elipses
VI – As transições
VII – Metáforas e símbolos
VIII – Os fenômenos sonoros
IX – A montagem
X – A profundidade de campo
XI – Os diálogos
XII – Processos secundários de narração
XIII – O tempo
XIV – O espaço
Conclusão

Repito: a dissertação de Marcel Martin não é tão esquemática, resumida e ingênua quanto a enumeração acima pode sugerir. O autor discute pormenorizadamente os temas e técnicas que propõe sempre exemplificando com cenas muito bem descritas de grandes filmes; apresenta os mais variados elementos da estilística do cinema sob os seus vários aspectos, lembrando-se sempre dos diversos pontos de vista estéticos e teóricos que há sobre eles: a obra é profusa de citações de e comentários sobre os diferentes teóricos do filme e suas respectivas idéias, estabelecendo relações e analogias, embora perceba-se que Martin apóia com especial carinho as posições de André Bazin e da fenomenologia cinematográfica, em particular o seu conterrâneo francês Henri Agel.

O único ponto a lamentar é que a edição original de “A Linguagem Cinematográfica” seja de 1955, ou seja, o último meio século de conquistas “lingüísticas” do cinema fica de fora. Mas nessa defasagem reside algo de interessante e peculiar: a obra de Marcel Martin é o melhor veículo de apresentação aos clássicos mais clássicos e mais absolutos da sétima arte.

Aqui vai um trecho extraído da Conclusão:

“O cinema não se encontra mais no estágio em que a técnica parecia uma coisa tão maravilhosa e surpreendente que os diretores não podiam deixar de pôr em relevo as novas aquisições: as inovações estrepitosas foram lentamente substituídas pela sobriedade de expressão. Todavia, não obstante, em numerosos filmes “os efeitos” da técnica ou da montagem procuram distrair o espectador para desviar melhor seu juízo crítico e impedi-lo de compreender a vacuidade do argumento; a admiração por estes “efeitos” faz também com que o espectador ache lentos ou aborrecidos os filmes em que a técnica está submetida ao drama e em que a narração manifesta sua maestria por sua clareza e adequação ao desenvolvimento psicológico. Na realidade, o drama principal é a falta total de interesse humano na maioria dos filmes e, além disso, a necessidade vital de encontrar a adequação, já citada anteriormente, do conteúdo e da forma; tudo isto faz com que os realizadores sintam-se tentados a substituir as idéias pela técnica, que então aparece vazia.

Consideremos o Encouraçado Potemkim para ilustrar este problema. Por que este filme é considerado como um dos melhores do mundo, enquanto a maioria dos seus contemporâneos, quaisquer que sejam suas qualidades, envelheceram mais ou menos? É devido, em primeiro lugar, a que seu conteúdo humano é perfeitamente válido hoje em dia, porém especialmente ao estilo de narração empregado por Eisenstein. Este estilo caracteriza-se por uma técnica magistral, porém notavelmente assimilada e dominada. Sua clareza, sua flexibilidade, sua simplicidade, perfeitamente adequadas à mensagem otimista do drama, valeram ao filme seu triunfo excepcional e o prestígio inigualável que conserva trinta anos depois (lembremos que o texto de Marcel Martin é de 1955).”

É fato notório que a maioria das grandes obras, de qualquer forma de arte e de qualquer tempo, sabem aliar o “conteúdo humano perfeitamente válido” à “técnica magistral”. É natural que os padrões técnicos e temáticos – e o gosto por eles – podem variar bastante, mas a grande obra sempre encontra um ponto razoável de equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Também é fato notável que muitas obras de arte que pendem demais para a técnica ou demais para o conteúdo fazem sucesso tremendo em suas próprias épocas, de acordo com as modas estéticas ou ideológicas. Mas o fato que mais se deve notar – e que dificilmente se nota – é que tais obras não costumam sobreviver ao seu próprio espetáculo: elas passam juntamente com os modismos aos quais tanto se apegam.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, conforme dizia Camões. A arte que sobrevive a tais mudanças é aquela arte que transcende, a arte que empreende um mergulho profundo e equilibrado rumo ao Universal. “O Encouraçado Potemkim” é uma obra-prima porque seu conteúdo vai muito além da propaganda ideológica de um regime político empreendida por um Estado que já não existe mais; o filme também vai além dos cacoetes estilísticos de uma determinada escola cinematográfica (por mais que gostemos pessoalmente de tais “cacoetes”). Para melhor apreciarmos “Potemkim”, devemos abordá-lo com a inteligência e a sensibilidade desarmadas: só assim será possível que o filme nos preencha com a sua grandeza humana; e assim também melhor entenderemos a sua estética.

Infelizmente, tamanho “desarme” não é muito bem visto pelas inteligências contemporâneas. Palavras como “Universal”, “Transcendência” e “Arte” (com A maiúsculo) provocam comichões que irritam muitas pessoas esclarecidas de nosso tempo. É uma pena. Mas não dá pra dizer nada. Só o futuro poderá falar melhor sobre a nossa era e sobre a quantidade e qualidade de “obras-primas” artísticas que ela produzirá. Por enquanto, leiamos Marcel Martin.

4 comentários:

Anônimo disse...

Estou concluindo este livro agora e concordo com suas observações. Pops.

Egas Branco disse...

Amigo,
Do outro lado do Atlãntico estava a procurar dados sobre o Marcel Martin e deparou-se o seu blog. Parabéns!
Vou passar a lê-lo. Entretanto, se tiver tempo, pode dar uma olhada às minhas primeiras tentativas na blogoesfera em http://na-cidadebranca.blogspot.com. Mas, embora seja um cinéfilo veterano, sou apenas um modesto aprendiz. Abração
Egas Branco

André Renato disse...

Olá, colega!

Obrigado! Gosto muito do Marcel Martin! Vou ler o seu blog sim!

Abraços!

Paulo disse...

Estava procurando um livro sobre o tema. Só sabia que era muito completo, que era de um francês e que era dos anos 50. Seu blog me ajudou. Grato!
Abraços,
blog Paulo Avelino
http://blog.paulo.avelino.nom.br