Para Louis Lumière, o cinematógrafo era uma invenção sem futuro. Então, apareceu o mago Georges Méliès e o resto é história. Mesmo assim, o cinema documental continuou e desenvolveu-se de modo exemplar, ao lado do cinema narrativo de ficção / ilusão.
O que acontece quando essas duas poderosas vertentes da sétima arte se encontram? Não estou falando de filmes como Roma Cidade Aberta (Itália, 1945, dir.: Roberto Rosselini), que podem inspirar-se numa estética documental, mas ninguém dirá que são ou parecem ser documentários. Refiro-me a obras raras tais quais Zelig (EUA, 1983, dir.: Woody Allen) e este Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (“Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”, EUA, 2006, dir.: Larry Charles).
Por que esses filmes ficcionais se disfarçam completamente de documentários? A resposta poderia ser esta: porque tais filmes pretendem ser como piadas (“jokes”) – no caso particular da película protagonizada por Sacha Baron Cohen, uma piada prática, ou pegadinha (“practical joke”). Toda piada que se conta é melhor crível e risível se assumir ares de fato verídico; o bom contador de piadas também é um bom contador de “causos”. E como muitas e muitas piadas trazem à tona diferenças culturais, preconceitos, condições físicas e (ou) psicológicas dos indivíduos, nada mais natural que o filme “Borat” traga em si todos esses aspectos e temas tratados em nossas piadas cotidianas.
Mas ainda há outro lado que compõe essa moeda: a piada, às vezes, exerce a função de farsa, ou seja, gosta de desmascarar questões psicológicas e sociais que preferimos varrer para debaixo do tapete. O humor farsesco, contundentemente vulgar, escatológico até, está nas raízes das nossas manifestações culturais: na Idade Média, a farsa, assim como os autos (peças de devoção) eram as maiores expressões do teatro popular. O grande dramaturgo Gil Vicente, no início do século XVI português, dotou suas farsas de comentários e críticas sociais que fizeram-no universalizar-se e ser, até hoje, talvez o maior nome do teatro lusitano.
Nos dias de hoje, a farsa se faz presente sobremaneira em programas humorísticos de TV – particularmente em desenhos animados como Os Simpsons. No cinema, agora temos este “Borat”. Seu pseudo-documentário serve também para o melhor desmascaramento promovido pela farsa. Ao mesmo tempo, o fato de ser, no fundo, uma obra de ficção, humorística ainda por cima, torna-o inofensivo a quem ele poderia afetar. É apenas um filme, uma comédia, uma piada, ninguém levará a sério – é o que se poderia dizer. Mesmo assim, ainda há gente que reclama... Não quero aqui discutir o mérito ou os limites envolvidos nas “pegadinhas”; apenas tentar desvendar a sua lógica.
Nas farsas, pelo menos nas de Gil Vicente, o caráter crítico e moralizante é evidente. Mas evidente para quem? Como essas “críticas” serão recebidas? Serão elas sequer percebidas? Eu fico pensando naquele senhor do rodeio que disse, em “entrevista” a Borat (diz-se que as pessoas mostradas no filme não sabiam que se tratava de uma ficção), que na América lutava-se (o governo) para que se pudessem enforcar os homossexuais... Será que tal senhor, ao ver posteriormente o filme, vai reconhecer e refletir em sua própria atitude e pensamento, entendendo que o filme faz uma crítica a eles? Ou será que ele vai simplesmente recostar-se para trás, dar risada e dizer: “você me pegou de jeito, hein?”, esvaziando o sentido da coisa toda, já que é apenas uma piada... Talvez, o mais provável é que pessoas assim fiquem extremamente ofendidas com o filme e queiram processá-lo. Mas não seriam justamente a essas pessoas que se dirigiria a “moral” do filme? Assim, o filme acaba correndo o – inevitável – risco de ser apenas “pregação para convertidos”...
Em outras palavras, só enxerga o desmascaramento aqueles que querem desmascarar. Os desmascarados nunca enxergariam a própria máscara; se enxergam, jamais a admitiriam aos desmascaradores.
Enfim, “Borat” é passível da mesma ambigüidade, da mesma contradição que tantas outras farsas: o filme é sério e não-sério; mas acaba sendo levado a sério por razões em que não deveria ser levado a sério, e, por outro lado, não é levado a sério nos aspectos em que deveria ser levado a sério.
O que acontece quando essas duas poderosas vertentes da sétima arte se encontram? Não estou falando de filmes como Roma Cidade Aberta (Itália, 1945, dir.: Roberto Rosselini), que podem inspirar-se numa estética documental, mas ninguém dirá que são ou parecem ser documentários. Refiro-me a obras raras tais quais Zelig (EUA, 1983, dir.: Woody Allen) e este Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (“Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan”, EUA, 2006, dir.: Larry Charles).
Por que esses filmes ficcionais se disfarçam completamente de documentários? A resposta poderia ser esta: porque tais filmes pretendem ser como piadas (“jokes”) – no caso particular da película protagonizada por Sacha Baron Cohen, uma piada prática, ou pegadinha (“practical joke”). Toda piada que se conta é melhor crível e risível se assumir ares de fato verídico; o bom contador de piadas também é um bom contador de “causos”. E como muitas e muitas piadas trazem à tona diferenças culturais, preconceitos, condições físicas e (ou) psicológicas dos indivíduos, nada mais natural que o filme “Borat” traga em si todos esses aspectos e temas tratados em nossas piadas cotidianas.
Mas ainda há outro lado que compõe essa moeda: a piada, às vezes, exerce a função de farsa, ou seja, gosta de desmascarar questões psicológicas e sociais que preferimos varrer para debaixo do tapete. O humor farsesco, contundentemente vulgar, escatológico até, está nas raízes das nossas manifestações culturais: na Idade Média, a farsa, assim como os autos (peças de devoção) eram as maiores expressões do teatro popular. O grande dramaturgo Gil Vicente, no início do século XVI português, dotou suas farsas de comentários e críticas sociais que fizeram-no universalizar-se e ser, até hoje, talvez o maior nome do teatro lusitano.
Nos dias de hoje, a farsa se faz presente sobremaneira em programas humorísticos de TV – particularmente em desenhos animados como Os Simpsons. No cinema, agora temos este “Borat”. Seu pseudo-documentário serve também para o melhor desmascaramento promovido pela farsa. Ao mesmo tempo, o fato de ser, no fundo, uma obra de ficção, humorística ainda por cima, torna-o inofensivo a quem ele poderia afetar. É apenas um filme, uma comédia, uma piada, ninguém levará a sério – é o que se poderia dizer. Mesmo assim, ainda há gente que reclama... Não quero aqui discutir o mérito ou os limites envolvidos nas “pegadinhas”; apenas tentar desvendar a sua lógica.
Nas farsas, pelo menos nas de Gil Vicente, o caráter crítico e moralizante é evidente. Mas evidente para quem? Como essas “críticas” serão recebidas? Serão elas sequer percebidas? Eu fico pensando naquele senhor do rodeio que disse, em “entrevista” a Borat (diz-se que as pessoas mostradas no filme não sabiam que se tratava de uma ficção), que na América lutava-se (o governo) para que se pudessem enforcar os homossexuais... Será que tal senhor, ao ver posteriormente o filme, vai reconhecer e refletir em sua própria atitude e pensamento, entendendo que o filme faz uma crítica a eles? Ou será que ele vai simplesmente recostar-se para trás, dar risada e dizer: “você me pegou de jeito, hein?”, esvaziando o sentido da coisa toda, já que é apenas uma piada... Talvez, o mais provável é que pessoas assim fiquem extremamente ofendidas com o filme e queiram processá-lo. Mas não seriam justamente a essas pessoas que se dirigiria a “moral” do filme? Assim, o filme acaba correndo o – inevitável – risco de ser apenas “pregação para convertidos”...
Em outras palavras, só enxerga o desmascaramento aqueles que querem desmascarar. Os desmascarados nunca enxergariam a própria máscara; se enxergam, jamais a admitiriam aos desmascaradores.
Enfim, “Borat” é passível da mesma ambigüidade, da mesma contradição que tantas outras farsas: o filme é sério e não-sério; mas acaba sendo levado a sério por razões em que não deveria ser levado a sério, e, por outro lado, não é levado a sério nos aspectos em que deveria ser levado a sério.
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