Os motoboys em São Paulo são uma força social poderosa. É evidente a grande quantidade de motos de entrega que há; também é evidente a relação delicada que há entre esses motociclistas e os motoristas dos outros tipos de veículos: relação geralmente de indiferença ou ódio de ambas as partes. Mas tais evidências nos incomodam; nós não gostamos de motoboys, preferimos não vê-los ou despachá-los o mais rápido possível da nossa vista (ainda mais se formos os destinatários das entregas). É aí que deve entrar o cinema: para mostrar aquilo que todo mundo vê mas que ninguém quer ver. Para mostrar a óbvia mas desprezada dimensão humana de pessoas de cujo trabalho dependemos, mas ainda sim desprezamos. Para muitos cidadãos de bem dentro dos escritórios, o que importa é a rapidez da entrega, não interessa o que o motoboy faça para entregar a encomenda no lugar e na hora certa; essas pessoas nem sabem ou se preocupam em saber a quantidade de motoboys que se acidentam – às vezes morrem – no trânsito de São Paulo. Digo isso porque trabalhei anos como office-boy em escritórios, ao lado de motoboys. Também é fato que para muitos cidadãos de bem dentro de seus carros no complicado trânsito urbano (quantos deles seriam aqueles mesmos de quem falamos dentro dos escritórios?) os motoboys são uma verdadeira praga urbana, mal-educados, violentos, sempre fazendo “barbeiragens”.
Os motoboys são, desse modo, um tema social da mais alta atualidade e relevância. Um filme poderia escolher tratá-lo, basicamente, de três maneiras:
1. Através de um documentário. Isso já foi feito recentemente: Motoboys – Vida Loca. Brasil, 2003, dir.: Caíto Ortiz.
2. Através de uma ficção no tom de crônica cotidiana. O filme acompanharia, com um roteiro romanceado mas sem ambições narrativas muito altas, o dia-a-dia de um fictício motoboy em suas atividades mais comuns, servindo assim como retrato social “neo-realista”, possivelmente dotado de algum comentário pertinente (denúncia, crítica, homenagem, etc).
3. Através de uma ficção de vôos épicos e (ou) trágicos. Um filme assim carregaria seu motoboy mítico de simbologias que provocassem uma discussão mais profunda e abrangente do homem e da sociedade. É o que acontece com alguns filmes de Martin Scorsese: o taxista em Táxi Driver (1976) e o paramédico em Vivendo no Limite (1999).
É claro que uma obra cinematográfica poderia também unir em si os dois últimos gêneros (ou quem sabe os três) de modo rico, criativo e coerente. Infelizmente, não se enquadra direito em nenhum desses casos o filme Os 12 Trabalhos (Brasil, 2006, dir.: Ricardo Elias). A segunda película do diretor de De Passagem (2003) não se decide entre a mera crônica e o salto épico-mítico, nem junta as duas coisas de modo satisfatório. Na verdade, a fita é uma crônica do cotidiano com alguns toques mitológicos aos quais é dada a somente mínima significação, mas não se conectam a nada, nem levam a lugar algum.
A narrativa acompanha um dia na vida de Héracles (nome grego para Hércules, o famoso herói da mitologia clássica; quem quiser saber mais sobre ele e sobre os seus 12 trabalhos, eu recomendo o link http://www.daisuki.com.br/caio/mito/mtmito18.html), vivido por Sidney Santiago. O “jovem hércules”, recém-saído da Febem, é indicado por seu primo motoboy, Jonas (Flávio Bauraqui), para uma firma de entregas – a “Olimpo Express” (veja-se aí as duas referências à cultura clássica, juntamente com o título; pena que o filme não vai além delas, tampouco as aprofunda). Então, Héracles tem que provar a sua “competência” ao longo de um dia de trabalho em regime de experiência; depois disso, ele será efetivado – ou não. Bem... quem vê o filme já percebe o, digamos, “desacordo” que há entre este e o marketing que se fez sobre ele: no site oficial da produção, assim como em diversas sinopses, resenhas e até críticas está escrito que Heracles tem que realizar 12 (doze) trabalhos em um único dia para ser efetivado no emprego. Lendo essas coisas antes de ver o filme, eu já fui fazendo mentalmente as ligações com o magnífico mito de Hércules e criando uma grande e positiva expectativa em relação à história de Héracles. No entanto, quão grande foi a minha decepção ao ver o próprio filme e perceber que o enredo não é bem assim... Na verdade, ninguém chega para o jovem Héracles e lhe diz que terá de realizar doze trabalhos; esses trabalhos vão surgindo e se sucedendo naturalmente – alguns deles nem são trabalhos propriamente ditos, mas favores ou decisões próprias que o jovem motoboy toma. Enfim, são 12 tarefas, mas da maneira como o filme as coloca, poderiam ser 8 ou 20, não faria diferença. Mais do que frustrado, eu me senti enganado... acho que levei gato por lebre, pois o marketing, o título, o trailer, enfim, tudo sobre o filme fazia questão de chamar a atenção para e colocar em primeiro plano o mito dos 12 trabalhos de Hércules. Ainda estou estupefato de reconhecer que esta produção cinematográfica tem tão pouco do famoso mito clássico. Nem preciso dizer que cada um dos doze trabalhos de Héracles não lembra nem de longe nenhuma das doze tarefas que Hércules teve de cumprir; a não ser que enxerguemos equivalências entre o transporte do gatinho D’Artagnan e o transporte do cão Cérberus... Mas aí já seria demais! Convenhamos.
E o site oficial do filme ainda tem a pachorra de dizer que se trata de “uma releitura contemporânea do mito de Hércules” (!) Se é para fazer “releitura” assim, é melhor deixar os mitos antigos na paz de seu descanso eterno.
Continua no post abaixo.
Os motoboys são, desse modo, um tema social da mais alta atualidade e relevância. Um filme poderia escolher tratá-lo, basicamente, de três maneiras:
1. Através de um documentário. Isso já foi feito recentemente: Motoboys – Vida Loca. Brasil, 2003, dir.: Caíto Ortiz.
2. Através de uma ficção no tom de crônica cotidiana. O filme acompanharia, com um roteiro romanceado mas sem ambições narrativas muito altas, o dia-a-dia de um fictício motoboy em suas atividades mais comuns, servindo assim como retrato social “neo-realista”, possivelmente dotado de algum comentário pertinente (denúncia, crítica, homenagem, etc).
3. Através de uma ficção de vôos épicos e (ou) trágicos. Um filme assim carregaria seu motoboy mítico de simbologias que provocassem uma discussão mais profunda e abrangente do homem e da sociedade. É o que acontece com alguns filmes de Martin Scorsese: o taxista em Táxi Driver (1976) e o paramédico em Vivendo no Limite (1999).
É claro que uma obra cinematográfica poderia também unir em si os dois últimos gêneros (ou quem sabe os três) de modo rico, criativo e coerente. Infelizmente, não se enquadra direito em nenhum desses casos o filme Os 12 Trabalhos (Brasil, 2006, dir.: Ricardo Elias). A segunda película do diretor de De Passagem (2003) não se decide entre a mera crônica e o salto épico-mítico, nem junta as duas coisas de modo satisfatório. Na verdade, a fita é uma crônica do cotidiano com alguns toques mitológicos aos quais é dada a somente mínima significação, mas não se conectam a nada, nem levam a lugar algum.
A narrativa acompanha um dia na vida de Héracles (nome grego para Hércules, o famoso herói da mitologia clássica; quem quiser saber mais sobre ele e sobre os seus 12 trabalhos, eu recomendo o link http://www.daisuki.com.br/caio/mito/mtmito18.html), vivido por Sidney Santiago. O “jovem hércules”, recém-saído da Febem, é indicado por seu primo motoboy, Jonas (Flávio Bauraqui), para uma firma de entregas – a “Olimpo Express” (veja-se aí as duas referências à cultura clássica, juntamente com o título; pena que o filme não vai além delas, tampouco as aprofunda). Então, Héracles tem que provar a sua “competência” ao longo de um dia de trabalho em regime de experiência; depois disso, ele será efetivado – ou não. Bem... quem vê o filme já percebe o, digamos, “desacordo” que há entre este e o marketing que se fez sobre ele: no site oficial da produção, assim como em diversas sinopses, resenhas e até críticas está escrito que Heracles tem que realizar 12 (doze) trabalhos em um único dia para ser efetivado no emprego. Lendo essas coisas antes de ver o filme, eu já fui fazendo mentalmente as ligações com o magnífico mito de Hércules e criando uma grande e positiva expectativa em relação à história de Héracles. No entanto, quão grande foi a minha decepção ao ver o próprio filme e perceber que o enredo não é bem assim... Na verdade, ninguém chega para o jovem Héracles e lhe diz que terá de realizar doze trabalhos; esses trabalhos vão surgindo e se sucedendo naturalmente – alguns deles nem são trabalhos propriamente ditos, mas favores ou decisões próprias que o jovem motoboy toma. Enfim, são 12 tarefas, mas da maneira como o filme as coloca, poderiam ser 8 ou 20, não faria diferença. Mais do que frustrado, eu me senti enganado... acho que levei gato por lebre, pois o marketing, o título, o trailer, enfim, tudo sobre o filme fazia questão de chamar a atenção para e colocar em primeiro plano o mito dos 12 trabalhos de Hércules. Ainda estou estupefato de reconhecer que esta produção cinematográfica tem tão pouco do famoso mito clássico. Nem preciso dizer que cada um dos doze trabalhos de Héracles não lembra nem de longe nenhuma das doze tarefas que Hércules teve de cumprir; a não ser que enxerguemos equivalências entre o transporte do gatinho D’Artagnan e o transporte do cão Cérberus... Mas aí já seria demais! Convenhamos.
E o site oficial do filme ainda tem a pachorra de dizer que se trata de “uma releitura contemporânea do mito de Hércules” (!) Se é para fazer “releitura” assim, é melhor deixar os mitos antigos na paz de seu descanso eterno.
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