Antes de mais nada, quero deixar claro que Turistas (“Turistas”, EUA, 2006, dir.: John Stockwell) é um filme ruim. Contudo, qualquer filme, por pior que seja (e não importa o motivo de ele ser ruim), é dotado de questões que – se discutidas sabiamente – alçarão, não o próprio filme, mas o nosso conhecimento de mundo. E não é essa a função da arte, boa ou ruim que seja? Por isso, vamos viajar um pouco (o possível trocadilho não é intencional, ou, como diriam os “gringos”: no pun intented).
Podemos conectar “Turistas” à mitologia do Coração das Trevas (“The Heart of Darkness”). Dou a palavra a Joseph Conrad, autor dessa magnífica novela:
‘And this also’, Said Marlow suddenly, ‘has been one of the dark places of the earth.’
(...)
I was thinking of very old times, when the Romans first came here, nineteen hundred years ago – the other day... (...) Imagine the feelings of a commander of a fine – what d’ye call’em? – trireme in the Mediterranean, ordered suddenly to the north; (...) Imagine him here – the very end of the world, a sea the colour of lead, a sky the colour of smoke, (...) Here and there a military camp lost in a wilderness, like a needle in a bundle of hay – cold, fog, tempests, disease, exile, and death – death skulking in the air, in the water, in the bush. (...) Or think of a decent young citizen in a toga – perhaps too much dice, you know – coming out here (...) Land in a swamp, march through the woods, and in some inland post feel the savagery, the utter savagery, had closed round him, - all that mysterious life of the wilderness that stirs in the forest, in the jungles, in the hearts of wild men. There´s no initiation either into such mysteries. He has to live in the midst of the incomprehensible, wich is also detestable. And it has a fascination, too, that goes to work upon him. The fascination of the abomination – you know, imagine the growing regrets, the longing to scape, the powerless disgust, the surrender, the hate.’
Ah, se John Stockwell tivesse lido apenas esse trecho de Heart of Darkness antes de fazer o seu filme... Supondo que o tenha lido, nossa colocação será a seguinte: ah, se John Stockwell tivesse conseguido pôr em imagens e sons essas palavras, idéias, emoções, atmosferas, personagens... “Turistas é uma lacuna, um esboço, uma sombra; se essa lacuna tivesse sido preenchida com o “decent young citizen” de Conrad, teríamos então em mãos um grande filme! Possivelmente, uma obra-prima. Mas...
Não obstante, o trecho acima de “O Coração das Trevas” descreve a Inglaterra nas primeiras visitas dos romanos; o grosso da narrativa da novela se passa em outro coração selvagem das trevas: o Congo africano na época da exploração imperialista do marfim. O ponto nevrálgico aqui é a “fascination of the abomination” que temos por lugares selvagens, inóspitos, exóticos em todos os aspectos. Junte isso ao universo do turismo com suas paisagens belíssimas, sublimes e atraentes (para quem vê de longe) e descobriremos o potencial de maneira alguma não-realizado pelo filme de Stockwell.
Ainda que deixemos à parte todo o lado filosófico, se “Turistas” procurasse inspirar-se apenas na atmosfera, no estilo narrativo e na caracterização psicológica dos personagens da novela de Joseph Conrad (tal como fez Apocalipse Now, a livre adaptação de Francis Ford Coppola), já seria um ótimo filme de terror, muito envolvente e catártico. E não é isso o que ele pretende de fato ser, já que se trata de uma produção da subsidiária da Fox dedicada ao público de 17 a 24 anos? Vejamos bem, não estou tentando reclamar do filme algo que ele nunca objetivou ser – o que é um erro muito grave e comum da crítica –, apenas mostrando que, dentro de suas próprias ambições, esta película não decola.
Quanto à polêmica “visão do Brasil” que haveria neste filme, digo apenas que, se eu fosse um nova-iorquino que tivesse pouquíssimo conhecimento de mundo e visse “Turistas” logo após ter visto “O Massacre da Serra Elétrica” (The Texas Chainsaw Massacre, EUA, 1974, dir.: Tobe Hooper), eu ficaria com muito mais medo de ir ao Texas do que ao Brasil. No Texas, absolutamente ninguém da população daqueles campos inóspitos quis ajudar os jovens perseguidos; pelo contrário, até. Já no Brasil, como o filme de Stockwell bem mostra, nem todos são vilões, e até mesmo alguns dos vilões se arrependem e voltam atrás (desculpem pelo spoiler). O interessante em “Turistas” é o fato de o verdadeiro vilão-mor ser um homem branco (sendo que a maioria dos outros brasileiros no filme são negros, pardos ou índios), médico, culto (ou pseudo-culto), dotado de todo um discurso sócio-político-filosófico, mas que alicia, explora e maltrata seus subordinados, todos eles da comunidade pobre ao redor. Pensemos nisso...
Assumamos de vez a nossa hipocrisia e acabemos com ela. Não adianta tomarmos as dores pelo Brasil mostrado “ofensivamente” neste filme, pois esse “Brasil” não é o nosso Brasil, de nós da classe média urbana e razoavelmente esclarecida que nos dedicamos a ver filmes de cinema e a refletir sobre eles. É muito mais pertinente nos identificarmos com os turistas “gringos”, do que com os brasileiros do filme (à exceção do já citado médico, que, pelo discurso, lembra-me muito certas pessoas “cultas”). Ou contribuímos verdadeiramente para a melhora do Brasil, ou largamos o ridículo da hipocrisia e calamos de vez a boca. Mas aí já não seríamos malandros...
Um crítico de cinema (cujo nome eu não lembro), em um veículo de imprensa que não vem ao caso eu citar, disse uma vez a respeito de um filme nacional (do qual eu também não me lembro) que nele se fazia muito presente a periferia urbana, com sua profusão confusa de telhados e antenas “que a gente costuma ver da estrada quando vai para a praia”. Disse isso na maior naturalidade... “A gente” quem, pergunto eu? Pois eu nasci e sempre morei justamente nessa profusão de telhados e antenas. Serão essas a visão, o conhecimento de mundo e a experiência de vida das nossas classes esclarecidas, de nossa elite intelectual, de nossos jornalistas e críticos de arte e de cultura? Meu Deus!...
Então, quem for reclamar patrioticamente de “Turistas”, pense bem: talvez o seu ponto de vista esteja bem mais próximo do dos norte-americanos do que você imagina, ou gostaria de assumir.
Podemos conectar “Turistas” à mitologia do Coração das Trevas (“The Heart of Darkness”). Dou a palavra a Joseph Conrad, autor dessa magnífica novela:
‘And this also’, Said Marlow suddenly, ‘has been one of the dark places of the earth.’
(...)
I was thinking of very old times, when the Romans first came here, nineteen hundred years ago – the other day... (...) Imagine the feelings of a commander of a fine – what d’ye call’em? – trireme in the Mediterranean, ordered suddenly to the north; (...) Imagine him here – the very end of the world, a sea the colour of lead, a sky the colour of smoke, (...) Here and there a military camp lost in a wilderness, like a needle in a bundle of hay – cold, fog, tempests, disease, exile, and death – death skulking in the air, in the water, in the bush. (...) Or think of a decent young citizen in a toga – perhaps too much dice, you know – coming out here (...) Land in a swamp, march through the woods, and in some inland post feel the savagery, the utter savagery, had closed round him, - all that mysterious life of the wilderness that stirs in the forest, in the jungles, in the hearts of wild men. There´s no initiation either into such mysteries. He has to live in the midst of the incomprehensible, wich is also detestable. And it has a fascination, too, that goes to work upon him. The fascination of the abomination – you know, imagine the growing regrets, the longing to scape, the powerless disgust, the surrender, the hate.’
Ah, se John Stockwell tivesse lido apenas esse trecho de Heart of Darkness antes de fazer o seu filme... Supondo que o tenha lido, nossa colocação será a seguinte: ah, se John Stockwell tivesse conseguido pôr em imagens e sons essas palavras, idéias, emoções, atmosferas, personagens... “Turistas é uma lacuna, um esboço, uma sombra; se essa lacuna tivesse sido preenchida com o “decent young citizen” de Conrad, teríamos então em mãos um grande filme! Possivelmente, uma obra-prima. Mas...
Não obstante, o trecho acima de “O Coração das Trevas” descreve a Inglaterra nas primeiras visitas dos romanos; o grosso da narrativa da novela se passa em outro coração selvagem das trevas: o Congo africano na época da exploração imperialista do marfim. O ponto nevrálgico aqui é a “fascination of the abomination” que temos por lugares selvagens, inóspitos, exóticos em todos os aspectos. Junte isso ao universo do turismo com suas paisagens belíssimas, sublimes e atraentes (para quem vê de longe) e descobriremos o potencial de maneira alguma não-realizado pelo filme de Stockwell.
Ainda que deixemos à parte todo o lado filosófico, se “Turistas” procurasse inspirar-se apenas na atmosfera, no estilo narrativo e na caracterização psicológica dos personagens da novela de Joseph Conrad (tal como fez Apocalipse Now, a livre adaptação de Francis Ford Coppola), já seria um ótimo filme de terror, muito envolvente e catártico. E não é isso o que ele pretende de fato ser, já que se trata de uma produção da subsidiária da Fox dedicada ao público de 17 a 24 anos? Vejamos bem, não estou tentando reclamar do filme algo que ele nunca objetivou ser – o que é um erro muito grave e comum da crítica –, apenas mostrando que, dentro de suas próprias ambições, esta película não decola.
Quanto à polêmica “visão do Brasil” que haveria neste filme, digo apenas que, se eu fosse um nova-iorquino que tivesse pouquíssimo conhecimento de mundo e visse “Turistas” logo após ter visto “O Massacre da Serra Elétrica” (The Texas Chainsaw Massacre, EUA, 1974, dir.: Tobe Hooper), eu ficaria com muito mais medo de ir ao Texas do que ao Brasil. No Texas, absolutamente ninguém da população daqueles campos inóspitos quis ajudar os jovens perseguidos; pelo contrário, até. Já no Brasil, como o filme de Stockwell bem mostra, nem todos são vilões, e até mesmo alguns dos vilões se arrependem e voltam atrás (desculpem pelo spoiler). O interessante em “Turistas” é o fato de o verdadeiro vilão-mor ser um homem branco (sendo que a maioria dos outros brasileiros no filme são negros, pardos ou índios), médico, culto (ou pseudo-culto), dotado de todo um discurso sócio-político-filosófico, mas que alicia, explora e maltrata seus subordinados, todos eles da comunidade pobre ao redor. Pensemos nisso...
Assumamos de vez a nossa hipocrisia e acabemos com ela. Não adianta tomarmos as dores pelo Brasil mostrado “ofensivamente” neste filme, pois esse “Brasil” não é o nosso Brasil, de nós da classe média urbana e razoavelmente esclarecida que nos dedicamos a ver filmes de cinema e a refletir sobre eles. É muito mais pertinente nos identificarmos com os turistas “gringos”, do que com os brasileiros do filme (à exceção do já citado médico, que, pelo discurso, lembra-me muito certas pessoas “cultas”). Ou contribuímos verdadeiramente para a melhora do Brasil, ou largamos o ridículo da hipocrisia e calamos de vez a boca. Mas aí já não seríamos malandros...
Um crítico de cinema (cujo nome eu não lembro), em um veículo de imprensa que não vem ao caso eu citar, disse uma vez a respeito de um filme nacional (do qual eu também não me lembro) que nele se fazia muito presente a periferia urbana, com sua profusão confusa de telhados e antenas “que a gente costuma ver da estrada quando vai para a praia”. Disse isso na maior naturalidade... “A gente” quem, pergunto eu? Pois eu nasci e sempre morei justamente nessa profusão de telhados e antenas. Serão essas a visão, o conhecimento de mundo e a experiência de vida das nossas classes esclarecidas, de nossa elite intelectual, de nossos jornalistas e críticos de arte e de cultura? Meu Deus!...
Então, quem for reclamar patrioticamente de “Turistas”, pense bem: talvez o seu ponto de vista esteja bem mais próximo do dos norte-americanos do que você imagina, ou gostaria de assumir.
Anyway, os filmes “sérios” de Cláudio Assis (“Amarelo Manga”) mancham muito mais a imagem do Brasil e do povo brasileiro do que este filmeco “B” do baixo-clero hollywoodiano.
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