O pensamento mítico trabalha com um raciocínio analógico. Ele busca as eternas correspondências entre todas as coisas. Uma visão de mundo com essa base pode ser encontrada nas sociedades “primitivas”, na cultura milenar do extremo Oriente, nas crianças de todas as épocas e lugares, assim como em certas psicopatologias e também nos processos mentais do artista ao compor sua obra (especialmente o poeta). Naturalmente, esse pensamento está muito longe do Racionalismo Causal que organiza nossas vidas na sociedade industrializada.
A natureza do mito, estudada em Antropologia por Joseph Campbell e em Psicologia por C. G. Jung, corresponde à natureza da magia e do pensamento mágico, estudados por Edgar Morin a propósito de descobrir a natureza mais essencial do Cinema (no livro O cinema ou o homem imaginário).
O pensamento mágico é lançado por um movimento de projeções e de identificações. Projetamo-nos (os mais diversos elementos de nossa subjetividade) nas coisas, ao mesmo tempo que nos identificamos com elas (ou seja, enxergamos nelas elementos que correspondem aos de nossa própria subjetividade). A projeção é um movimento de dentro para fora (do interior ao exterior), enquanto a identificação é um movimento de fora para dentro (do exterior ao interior).
A esses movimentos se ligam, numa ampla orquestração dialética, o que Edgar Morin chama de Antropomorfismo (a humanização das coisas, dar ao universo características da subjetividade humana) e o que o autor define como Cosmomorfismo (a coisificação do homem, isto é, enxergar o homem e suas questões subjetivas como aspectos particulares de uma natureza que é, na verdade, universal).
A figura de linguagem conhecida como metáfora (um procedimento estilístico que traduz todo um processo de pensamento e uma visão de mundo) e o seu ato de criação são carregados desse movimento duplo de subjetivar a objetividade (Antropomorfismo) e objetivar a subjetividade (Cosmomorfismo). Por exemplo, o fogo de que fala Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver”) transforma-se em sentimento amoroso (Antropomorfismo) tanto quanto o sentimento amoroso se transforma em fogo (Cosmomorfismo).
Transcrevo dois trechos elucidativos de O Cinema Ou O Homem Imaginário:
Homens cosmomórficos e objetos antropomórficos são função uns dos outros, tornando-se uns símbolos dos outros, segundo a reciprocidade do microcosmo e do macrocosmo. Sobre um pedaço de gelo à deriva é levada Lílian Gish, a abandonada, no degelo do rio (“Way Down East”, D. W. Griffith, 1920), “misturando-se intimamente o drama humano com o drama dos elementos, cuja força cega adquiria aspecto de personagem de tragédia cinematográfica”. Assim se torna a heroína uma coisa à deriva. Assim o degelo se torna ator.
(...) Esta incessante conversão da alma das coisas nas coisas da alma vem corresponder, por outro lado, à natureza profunda do filme de ficção, em que os processos subjetivos imaginários se concretizam em coisas – acontecimentos, objetos – que os espectadores, por sua vez, reconvertem em subjetividade. (cap. III)
Sartre soube notar que a emoção se pode converter, por si própria, em magia. Não há exaltação, lirismo ou impulso que não tome, ao manifestar-se, uma cor antropo-cosmomórfica. O lirismo, como nos mostra a poesia, serve-se naturalmente das mesmas vias e linguagem que a magia. A subjetividade extrema realiza-se, bruscamente, em magia extrema. Da mesma forma, o cúmulo da visão subjetiva é a alucinação – que a objetiva. (cap. IV)
O processo de que fala o autor, comum à poesia literária e também ao cinema, ocorreria mais ou menos da seguinte maneira: o artista deseja expressar um certo conteúdo subjetivo abstrato: por exemplo, o caráter intrépido, irreversível, transformador e novo do movimento revolucionário – assim como o entusiasmo que ele carrega e desperta; como fazer isso? Através de um mero discurso? Mas aí já não seria arte. A arte envolve sempre um procedimento estético, ou seja, a objetivação de um conteúdo subjetivo abstrato numa forma concreta que melhor lhe expresse e comunique ao espectador (ou leitor) o seu significado. Essa forma concreta é própria do mito, que encarna e representa os valores a serem transmitidos. O processo de transformação do subjetivo-abstrato no objetivo-concreto é o que também ocorre na magia. Tomando o exemplo acima citado, a solução encontrada por Pudovkin foi metaforizar os movimentos revolucionários através dos movimentos das geleiras que vão derretendo na primavera e correndo, em blocos, rio abaixo (“A Mãe”, 1926).
A natureza do mito, estudada em Antropologia por Joseph Campbell e em Psicologia por C. G. Jung, corresponde à natureza da magia e do pensamento mágico, estudados por Edgar Morin a propósito de descobrir a natureza mais essencial do Cinema (no livro O cinema ou o homem imaginário).
O pensamento mágico é lançado por um movimento de projeções e de identificações. Projetamo-nos (os mais diversos elementos de nossa subjetividade) nas coisas, ao mesmo tempo que nos identificamos com elas (ou seja, enxergamos nelas elementos que correspondem aos de nossa própria subjetividade). A projeção é um movimento de dentro para fora (do interior ao exterior), enquanto a identificação é um movimento de fora para dentro (do exterior ao interior).
A esses movimentos se ligam, numa ampla orquestração dialética, o que Edgar Morin chama de Antropomorfismo (a humanização das coisas, dar ao universo características da subjetividade humana) e o que o autor define como Cosmomorfismo (a coisificação do homem, isto é, enxergar o homem e suas questões subjetivas como aspectos particulares de uma natureza que é, na verdade, universal).
A figura de linguagem conhecida como metáfora (um procedimento estilístico que traduz todo um processo de pensamento e uma visão de mundo) e o seu ato de criação são carregados desse movimento duplo de subjetivar a objetividade (Antropomorfismo) e objetivar a subjetividade (Cosmomorfismo). Por exemplo, o fogo de que fala Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver”) transforma-se em sentimento amoroso (Antropomorfismo) tanto quanto o sentimento amoroso se transforma em fogo (Cosmomorfismo).
Transcrevo dois trechos elucidativos de O Cinema Ou O Homem Imaginário:
Homens cosmomórficos e objetos antropomórficos são função uns dos outros, tornando-se uns símbolos dos outros, segundo a reciprocidade do microcosmo e do macrocosmo. Sobre um pedaço de gelo à deriva é levada Lílian Gish, a abandonada, no degelo do rio (“Way Down East”, D. W. Griffith, 1920), “misturando-se intimamente o drama humano com o drama dos elementos, cuja força cega adquiria aspecto de personagem de tragédia cinematográfica”. Assim se torna a heroína uma coisa à deriva. Assim o degelo se torna ator.
(...) Esta incessante conversão da alma das coisas nas coisas da alma vem corresponder, por outro lado, à natureza profunda do filme de ficção, em que os processos subjetivos imaginários se concretizam em coisas – acontecimentos, objetos – que os espectadores, por sua vez, reconvertem em subjetividade. (cap. III)
Sartre soube notar que a emoção se pode converter, por si própria, em magia. Não há exaltação, lirismo ou impulso que não tome, ao manifestar-se, uma cor antropo-cosmomórfica. O lirismo, como nos mostra a poesia, serve-se naturalmente das mesmas vias e linguagem que a magia. A subjetividade extrema realiza-se, bruscamente, em magia extrema. Da mesma forma, o cúmulo da visão subjetiva é a alucinação – que a objetiva. (cap. IV)
O processo de que fala o autor, comum à poesia literária e também ao cinema, ocorreria mais ou menos da seguinte maneira: o artista deseja expressar um certo conteúdo subjetivo abstrato: por exemplo, o caráter intrépido, irreversível, transformador e novo do movimento revolucionário – assim como o entusiasmo que ele carrega e desperta; como fazer isso? Através de um mero discurso? Mas aí já não seria arte. A arte envolve sempre um procedimento estético, ou seja, a objetivação de um conteúdo subjetivo abstrato numa forma concreta que melhor lhe expresse e comunique ao espectador (ou leitor) o seu significado. Essa forma concreta é própria do mito, que encarna e representa os valores a serem transmitidos. O processo de transformação do subjetivo-abstrato no objetivo-concreto é o que também ocorre na magia. Tomando o exemplo acima citado, a solução encontrada por Pudovkin foi metaforizar os movimentos revolucionários através dos movimentos das geleiras que vão derretendo na primavera e correndo, em blocos, rio abaixo (“A Mãe”, 1926).
O pensamento mágico/mítico/simbólico está na raiz de todas as culturas humanas. Em nossa sociedade materialista e racional, ele sobrevive na arte (ainda bem!).
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