Trecho do texto de José Geraldo Couto, publicado sábado passado na Folha de S. Paulo, sobre o recém-falecido Ozualdo Candeias:
Sua carreira como diretor começou de modo explosivo, com A Margem (1967), tragédia de dois homens e duas mulheres que sobrevivem nas franjas mais miseráveis da sociedade paulistana.
Malgrado o próprio autor, o filme acabou sendo visto como marco inicial do “cinema marginal”. O longa ganhou vários prêmios e a crítica viu no bote que transporta os personagens referências ao barco de Caronte, no “Inferno” de Dante. Anos depois, Candeias rebateu: “Isso é ignorância. Não sabem que antigamente, quando não havia tantas pontes nem as marginais do Tietê, pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem à outra”.
Magnífica a resposta de Candeias! Entretanto, temos que analisar mais a fundo o fenômeno aqui revelado. A obra de arte tem vida por si própria. Mas ela oferece essa vida de maneiras diferentes a cada apreciador, que liga a obra de arte à sua própria experiência individual, seu estado de espírito, seu conhecimento de mundo e idéias. Assim, a riqueza das análises e interpretações só têm a enriquecer o universo artístico.
Não obstante, as interpretações devem ser feitas com cuidado. Mais importante do que o cuidado científico da análise (sua pertinência em relação à própria obra) que tanto nos ensinam da escola à universidade, é o cuidado do próprio analista com as suas intenções em relação ao estudo da obra artística. Tomemos, como ótimo exemplo, a visão que a crítica teve do bote de Candeias em “A Margem”: se o crítico reconheceu espontaneamente a figura da barca de Caronte no filme de Candeias, motivado inconscientemente pelo conhecimento de mundo e bagagem cultural específicos do indivíduo enquanto crítico de cinema, e fez tal colocação de maneira natural e despretensiosa, enriquecendo a fortuna do filme, então está tudo bem. É saudável.
Agora, por outro lado, se o crítico pretendeu “desvendar” as fundações e os segredos do filme de Candeias, tentando fazer-lhe uma verdadeira exegese, dando à comparação Candeias-Dante um caráter de verdade, de tese, de elucidação; entendendo a dimensão dantesca do filme como um procedimento proposital e consciente do diretor, ou ainda entendendo que a única ou melhor maneira de se compreender o filme é através dessa comparação, então só temos a lamentar. São críticos assim (e existem muitos, principalmente nas universidades) que merecem a resposta do cineasta: “Isso é ignorância”.
É o crítico (cuja tarefa seria fazer uma análise objetiva) que aplica, de maneira incondicional, exclusiva e excludente, a sua própria visão de experiência de mundo à obra de arte. Essa estreiteza de pensamento é realmente lamentável e imperdoável em pessoas que são tomadas por “esclarecidas”.
Por outro lado, que interessante simplesmente descobrirmos uma relação entre Dante e Candeias! (Quanto a detalhes do “como” e “porquê” dessa relação, não vem absolutamente ao caso). Não interessa se o diretor pretendeu realmente fazer uma citação à Divina Comédia ou à mitologia clássica; a coincidência é mais importante, pois nos revela que as duas obras estão no mesmo patamar, são por natureza comparáveis e semelhantes. Essas semelhanças inconscientes entre obras artísticas (sem que haja influência ou citação) é o que, para mim, dá a maior graça e sabor à Arte.
Sua carreira como diretor começou de modo explosivo, com A Margem (1967), tragédia de dois homens e duas mulheres que sobrevivem nas franjas mais miseráveis da sociedade paulistana.
Malgrado o próprio autor, o filme acabou sendo visto como marco inicial do “cinema marginal”. O longa ganhou vários prêmios e a crítica viu no bote que transporta os personagens referências ao barco de Caronte, no “Inferno” de Dante. Anos depois, Candeias rebateu: “Isso é ignorância. Não sabem que antigamente, quando não havia tantas pontes nem as marginais do Tietê, pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem à outra”.
Magnífica a resposta de Candeias! Entretanto, temos que analisar mais a fundo o fenômeno aqui revelado. A obra de arte tem vida por si própria. Mas ela oferece essa vida de maneiras diferentes a cada apreciador, que liga a obra de arte à sua própria experiência individual, seu estado de espírito, seu conhecimento de mundo e idéias. Assim, a riqueza das análises e interpretações só têm a enriquecer o universo artístico.
Não obstante, as interpretações devem ser feitas com cuidado. Mais importante do que o cuidado científico da análise (sua pertinência em relação à própria obra) que tanto nos ensinam da escola à universidade, é o cuidado do próprio analista com as suas intenções em relação ao estudo da obra artística. Tomemos, como ótimo exemplo, a visão que a crítica teve do bote de Candeias em “A Margem”: se o crítico reconheceu espontaneamente a figura da barca de Caronte no filme de Candeias, motivado inconscientemente pelo conhecimento de mundo e bagagem cultural específicos do indivíduo enquanto crítico de cinema, e fez tal colocação de maneira natural e despretensiosa, enriquecendo a fortuna do filme, então está tudo bem. É saudável.
Agora, por outro lado, se o crítico pretendeu “desvendar” as fundações e os segredos do filme de Candeias, tentando fazer-lhe uma verdadeira exegese, dando à comparação Candeias-Dante um caráter de verdade, de tese, de elucidação; entendendo a dimensão dantesca do filme como um procedimento proposital e consciente do diretor, ou ainda entendendo que a única ou melhor maneira de se compreender o filme é através dessa comparação, então só temos a lamentar. São críticos assim (e existem muitos, principalmente nas universidades) que merecem a resposta do cineasta: “Isso é ignorância”.
É o crítico (cuja tarefa seria fazer uma análise objetiva) que aplica, de maneira incondicional, exclusiva e excludente, a sua própria visão de experiência de mundo à obra de arte. Essa estreiteza de pensamento é realmente lamentável e imperdoável em pessoas que são tomadas por “esclarecidas”.
Por outro lado, que interessante simplesmente descobrirmos uma relação entre Dante e Candeias! (Quanto a detalhes do “como” e “porquê” dessa relação, não vem absolutamente ao caso). Não interessa se o diretor pretendeu realmente fazer uma citação à Divina Comédia ou à mitologia clássica; a coincidência é mais importante, pois nos revela que as duas obras estão no mesmo patamar, são por natureza comparáveis e semelhantes. Essas semelhanças inconscientes entre obras artísticas (sem que haja influência ou citação) é o que, para mim, dá a maior graça e sabor à Arte.
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