sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Carros

É indiscutível que o automóvel seja um dos maiores (senão o maior) fetiche da nossa sociedade. A indústria, a cultura, o universo automobilístico trazem, não raro, o pior do ser humano, como bem mostrava um desenho antigo da Disney em que Pateta, cidadão ordinariamente pacato, ao assumir o volante do seu carro transformava-se num monstro de ansiedade, agressividade e stress. Isso sem falar na poluição, na ocupação escandalosa que os veículos automotores fazem do espaço urbano em muitas cidades, relegando aos cantos das calçadas, às (poucas) praças e aos interiores a população humana. O que começou como um raro luxo, como um prodígio da civilização industrial, veio se transformando, no último século, em dependência que beira o doentio. As perspectivas de futuro não são nada animadoras quando pensamos no esgotamento dos combustíveis fósseis.

A ficção científica sempre tratou do robô com sua inteligência artificial como o grande duplo, o grande outro do ser humano. Mas o nosso verdadeiro e forte “duplo” encontramos aqui e agora, convivemos com ele cotidianamente, sem muitas vezes darmo-nos conta do fundo da relação que temos com ele: o automóvel. São poucas as vezes em que o cinema retratou o automóvel no papel psíquico que ele exerce em nós, mas essas vezes foram muito bem elaboradas. Posso me esquecer ou não conhecer algum exemplo fundamental (alguém, por favor, me ilumine, se for esse o caso), mas aqui vão os melhores (e únicos) filmes que mostram a – estranha – relação entre os homens e os carros, entrando mesmo na dimensão psicológica:


1. As aventuras de Ms. Hulot no trânsito louco (“Trafic”, França / Itália, 1971. Dir.: Jacques Tati): Toda a genialidade, a graça, a fina mas corrosiva ironia de Jacques Tati apontada para a cultura do automóvel. Tati, que em outros filmes já havia desmascarado outros confortos da vida e do mundo modernos (o turismo, as moradias com todas as suas parafernálias tecnológicas, a indústria, os restaurantes e a vida noturna urbana), agora ataca a nossa paixão doentia pelos carros e por tudo o que diz respeito a eles.


2. Christine, o carro assassino (“Christine”, EUA, 1983. Dir.: John Carpenter). O terror é um gênero particularmente prolífico para retratar o automóvel como duplo do homem. Baseado no romance de Stephen King, este filme é o que mais entra a fundo no lado psicanalítico da relação entre um homem e seu carro, que aqui é amorosa. Que o homem sente um ciúmes doentio por seu automóvel, isso é fato que todos nós já observamos; agora, que o automóvel sinta esse ciúmes e passe a agir para “proteger” o seu homem, eis o que assusta e muito. O design antropomórfico que os carros curiosamente já possuem é neste filme destacado e exagerado (isso contribui muito para o terror), particularmente numa cena em que Christine, o plymouth psicopata, assume um “rosto” de terrível nervosismo e ódio, graças ao trabalho de arte feito com a frente do carro, batida e meio destruída em pontos muito bem escolhidos.

3. Comboio do Terror (“Maximum Overdrive”, EUA, 1986. Dir.: Stephen King). Sim, o filme é dirigido pelo próprio autor de “Christine” e de “O Iluminado”, baseando-se em um conto seu (“Trucks”). Quando a Terra é engolida pela cauda de um cometa, todas as máquinas adquirem comportamento homicida. A narrativa concentra-se num grupo de pessoas encurraladas em um posto de gasolina por uma “gangue” de caminhões muito nervosos. A frente do líder deles é decorada com uma imensa cara de palhaço...

4. Encurralado (“Duel”, EUA, 1971. Dir.: Steven Spielberg). Um pacato – mas não tanto – cidadão passa a ser perseguido em seu carrinho nas desérticas estradas do meio-oeste americano por um grande caminhão, cujo motorista nunca se vê e que age de modo profundamente sádico para com o pobre cidadão. Versão automotiva dos duelos nos “westerns”.


5. Carros (“Cars”, EUA, 2006. Dir.: John Lasseter e Joe Ranft). A mais recente animação computadorizada da Disney / Pixar é algo especial não só no aspecto tecnológico (que é estontenate). Nos outros filmes, o automóvel é tratado de maneira antropomórfica, ou seja, são-lhe dadas características humanas, sendo ele inserido no mundo do homem. Aqui, por outro lado, é o homem que é tratado de maneira COSMOmórfica, ou seja, são-lhe dadas características automobilísticas, uma vez que se tem um mundo em tudo correspondente ao nosso, exceto por ser habitado exclusivamente por veículos automotores. O homem é inserido em um fictício mundo do automóvel. Não devemos ver esse filme como carros que assumem a forma humana (antropomorfismo), mas como homens que assumem a forma de carros (cosmomorfismo). Um universo onde até os insetos são minúsculos fuscas mexe muito com a nossa fantasia e fetiches contemporâneos. É engraçadíssimo e inteligente o uso de metáforas (tais como “living in the fast lane”) que, ditas por aqueles personagens-carros, deixam de ser metáforas e passa a ter um sentido bem próprio. O filme critica os exageros não só da cultura automobilística mas de toda a nossa civilização contemporânea, como a preocupação exclusiva com a “chegada” enquanto que o interessante é viver o “caminho”. Também critica o progresso que destrói ou abandona tudo o que é “velho” e “antiquado” e o excesso de um individualismo egoísta. Enfim, o pragmatismo cego e incondicional é o alvo aqui. São mensagens que servem bem tanto às crianças quanto aos adultos. O pequeno documentário que acompanha o DVD é bastante esclarecedor quanto às fontes e os propósitos de “Carros”. Grande filme!

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