quinta-feira, março 18, 2010

A Ilha do Medo


O barco surge de dentro de um manto branco de névoa, como se viesse do nada, como se viesse do começo do mundo, como se o próprio mundo começasse ali. E esse mundo é o da Ilha, o único mundo que existe. Na primeiríssima imagem do filme, Martin Scorsese já mostra que não está para brincadeira. Teremos pela frente um filme de medo. Um filme que vasculha zonas profundas e isoladas do único lugar realmente digno de pavor: a alma. E um filme de incertezas.

O diretor domina perfeitamente os recursos artísticos com que trabalha e conhece muito bem a famosa ontologia da imagem captada e reproduzida por uma máquina (conceito de André Bazin), sabe o seu poder de evocar a realidade – e principalmente a realidade subjetiva, que deverá forçosamente assumir forma objetiva para se tornar cinema (conceito de Andrei Tarkovski). É por isso que A Ilha do Medo (“Shutter Island”, 2010) assusta.

Em termos de composição fotográfica de imagem, não há diferença alguma entre a realidade da fantasia do personagem – a realidade de um louco – e a suposta realidade dos fatos. Scorsese não é expressionista: não faz as escolhas de um Robert Wiene em O Gabinete do Dr. Caligari (1919), no qual os cenários de contornos assimétricos justamente expressavam a falta de juízo do protagonista mergulhado em devaneio.

Scorsese não usa recursos banais da gramática da montagem para fazer a passagem entre o imaginário e o real (fusão, “fade out”, tela esfumaçada, etc). O diretor quer que o espectador fique tão irremediavelmente preso na dúvida enlouquecedora quanto o personagem principal. O filme não oferece saídas. Estamos todos lá, presos na “Ilha do Medo”. Realidade é uma questão de perspectiva.

E a única coisa que temos são perspectivas opostas, e também os discursos que tentam fazê-las valer. É importante ressaltar isto: o filme é ambíguo da primeira à última imagem. Não é porque certas coisas aparecem após outras na ordem narrativa, que poderemos afirmar que o que vem depois possui mais verdade do que a coisa que existia antes, só por tê-la substituído na ordem temporal. O tempo narrativo não soluciona coisa alguma.

Scorsese é artista-mestre da imagem, ao contrário de um Shyamalan, mero artesão (pensamos em algo como O Sexto Sentido – 2000). A já propagandeada “reviravolta” no final de “Shutter Island” não resolve nem esclarece coisa alguma. É um filme de espírito profundamente pós-moderno. O “real” já desapareceu – se é que alguma vez existiu – soterrado por camadas e camadas de escombros de discursos.

Ideologia e ciência compõem a “segunda natureza” que escolhemos, como grupo, habitar. Mas alguns de nossos indivíduos não se contentam com os sutis construtos que preparamos para que eles se acomodem e se calem. Tais indivíduos insistem na busca por verdades que abandonamos faz tempo. Por isso, nós os chamamos de loucos. Por isso, nós os trancamos em manicômios. Pois obviamente não podem vestir as mesmas fantasias que nós – tampouco nós as deles.

Quem é o louco de fato? Aquele que é apontado como louco ou o sujeito que o aponta? Não podemos ter em mãos tais certezas; pelo menos, não em nosso tempo. É por isso que a imagem em Scorsese é sempre dotada de tanta realidade: porque tanto num caso quanto no outro – nas duas formas da loucura: a loucura lúcida e a lucidez louca – a imagem será creditada por alguém.

E isso, para um artista de sensibilidade como Martin Scorsese, já é suficiente para erguer uma obra-monumento que se sustente por suas próprias forças expressivas. Só existe mesmo o mundo como Ilha. Microcosmo? Que seja. Os pontos de vista dos habitantes (habitantes?) da Ilha serão os únicos que enfronharão a realidade-travesseiro na qual deitaremos nossas cabeças em devaneio – quer este se chame psicose, quer se chame psiquiatria, quer se chame... cinema.

A Ilha-Mundo. É por isso que a câmera está posicionada de frente para o barco que chega da névoa impenetrável. É para recepcioná-lo. Pois o olhar da própria máquina – que é o olhar do cineasta e também o do espectador (sim, eu e você) – também se encontra instalado na Ilha. TODOS NÓS SOMOS HABITANTES DA ILHA. Entende? Não há escape. Martin Scorsese amarrou muito bem o nó.

“Shutter Island”: o título em português é imbecil, para variar. “Shutter” pode significar veneziana ou obturador (de máquina fotográfica); de qualquer maneira, trata-se de substantivo derivado do verbo (to) “shut”, que significa fechar, calar. “Shutter” = aquele que fecha (ou faz fechar), aquele que cala (ou faz calar). O sentido no filme vai além do evidente subtexto político-histórico.

Martin Scorsese criou o filme mais hermético dos últimos tempos – e esses “últimos” são tempos que recuam até não me lembro mais onde. Talvez até Samuel Fuller. O cinéfilo Scorsese não perdeu a viagem para tentar se enlaçar a Paixões Que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963). E a maturidade do diretor faz com que sua empreitada dispa-se dos coletes “vintage” da influência ou homenagem – peças emboloradas de brechó; “Shutter Island” e “Shock Corridor” são filmes irmãos.

Eis um cinema a ser usado em aulas de cinema.

Um comentário:

Henrique Magnani disse...

Vi esse filme no avião de volta para cá. Vim correndo para ver se você já tinha escrito algo a respeito.
É um filme assustador e genial. Como você mesmo diz - pós-moderno, em que a noção de verdade única é suplementada pelo conflito de discursos. Ao contrário de narrativas de espionagem, clássicas do período da moderna guerra fria (dentre as quais destaco "O espião que saiu do frio", uma obra genial) a reviravolta final não é redentora, definitiva. Não permite nem chorar nem se aliviar. A única coisa que permite é sair da ilha. E calado, com medo de se posicionar e cometer injustiças.
Belo filme e mais do que precisa análise, meu amigo!