quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Um Homem Sério



O cinema de Joel e Ethan Coen é cruel. Muito cruel. E tão virtuoso quanto. São daqueles diretores que passam no teste do “zapping”: mudando os canais da TV com o controle remoto na mão, conseguimos adivinhar um filme dos Coen que nunca tenhamos visto em cinco segundos, sem apelar para a grade de programação on-line – em se tratando de TV digital. É assim também com Hitchcock, Antonioni... Isso não quer dizer que nasçam daí grandes artistas latu-sensu, mas mestres muito seguros da identidade do seu estilo. O domínio da técnica em função da expressão individual – já é toda uma estética, não?

Por isso, ver uma fita dos irmãos Coen – qualquer uma – é tão agradável e familiar quanto ouvir um solo de Jimi Hendrix. Virtuosismos à parte, a mera “impressão digital” estilística já contribui muito para o valor de uma obra na sociedade ainda romântica em que vivemos. É claro que, para alguns, tal estirpe de artista será deplorável por causa dessa mesma característica: é o “mais do mesmo”, ou o “se viu um, já viu todos” que algum crítico menos paciente adorará verbalizar. Bem, pode valer para os discos do Iron Maiden ou para o cinema de... (alguém arrisca um palpite?), mas não creio que seja o caso de Joel e Ethan Coen.

Existe um limite entre a coerência, a autenticidade de uma filmografia (ou discografia) e a redundância de idéias e fórmulas já esgotadas pelo próprio artista. Vamos pegar este Um Homem Sério (“A Serious Man”, 2009) como exemplo. Aqui está o tradicional humor negro dos diretores, aqui está toda a violência de seus filmes (embora numa forma simbólica), aqui estão os personagens bizarros. Mas uma coisa mudou: se nas outras películas toda a desgraça sofrida pelos protagonistas advinha de algumas ações suas muito mal-calculadas (para dizer o mínimo), agora o pobre Larry Gopnik sofrerá o diabo sem qualquer razão, sentido, propósito, causa, consequência, explicação, condição, sei lá.

É uma progressão interessante na temática dos irmãos cineastas. Mas, por outro lado, talvez nada tenha mudado substancialmente. Quero dizer, se antes o sujeito sofria o carma (o qual, mesmo sendo despertado por sua própria atitude, ainda é uma força cósmica), agora o pacato cidadão há de penar a vontade misteriosa do (supra)-universo em si mesma. Cada religião dará alguma alcunha diferente para ela, inclusive – naturalmente – a judaica: a palavra exata eu esqueci, mas é pronunciada muitas vezes no filme. Isso já é quase pagão (estamos falando do paganismo clássico greco-romano, para o qual nós pobres mortais estamos irremediavelmente sujeitos à vontade caprichosa dos deuses).

Talvez essa seja a maior das ironias muito sarcásticas que Um Homem Sério direciona aos judeus e ao judaísmo – a outra é a cena engraçadíssima em que, durante uma cerimônia na sinagoga, um assistente dos rabinos mal consegue segurar no alto o peso dos rolos da Torá e solta consigo mesmo a peculiar interjeição: “Jesus Cristo!” Mas o paganismo dos Coen se reveste de uma toga pós-moderna: o mais gritante – e desesperador – neste e em outros filmes é a incerteza absoluta, a eterna dúvida e toda a sensação de insegurança que muito apropriadamente brotará daí.

Também é irônico o fato de um professor universitário de física sofrer tudo isso. Num de seus sonhos, ele dá aula sobre o famoso princípio da incerteza, um dos bastiões da física contemporânea. Pena que, em sua própria vida, não há matemática que resolva – sequer descreva – o seu problema. E justamente Larry Gopnik, que defende que não há física sem matemática. Assim, a despeito de Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007), este parece ser o mais filosófico dos filmes dos irmãos Coen. E o mais pessimista, o mais niilista, pois busca navegar por águas mais cósmicas, digamos assim. Pode ser o ponto alto e claro de uma tese que eles vinham esboçando desde o início.

No mundo contemporâneo não há Deus, não há verdade, não há certeza; se há, Ele não está nem aí para nós. O universo nada mais é do que palco para o embate bufão entre uma vontade imperscrutável (ou talvez a própria ausência de vontade, o simples acaso) e a nossa própria vontade, tão bem trabalhadinha... A música “Somebody To Love”, da banda Jefferson Airplane expressa bem: quando “a casa cai” para a gente, só queremos alguém para amar. A idéia é mais velha do que andar para a frente, é lógico; mas o humor peculiar dos diretores a transforma em algo bastante palatável.

No fundo, não seria isso uma boa realização artística? Não buscar o impossível de inventar novos temas ou idéias, mas colorir de modo diferente velhas palavras como “amor”, “fé”, “medo”... Mas, peraí! Isso também é irônico: trata-se apenas do enxergar diferentemente o velho estacionamento (nas palavras do jovem rabino com que Larry Gopnik procura se aconselhar). Não há limites para a desconstrução, que é palavra de ordem no pensamento pós-moderno. Um Homem Sério constitui-se de camadas e camadas de supostas ou possíveis verdades que vão desmoronando sob o peso da ironia, único quinhão que resta do outrora tão promissor sujeito moderno.

Larry Gopnik é, no princípio, o mestre-sala e porta-bandeira do “homem de ação”, orgulho da civilização ocidental, industrial, liberal, e já tão duramente satirizado por Dostoiévski ainda no século XIX. Mas, apesar de todas as taras por controle, o mistério ainda sobrevive e faz as suas traquinagens. Não se pense (pelo menos, não com certeza) que Um Homem Sério é um filme metafísico. Talvez o único problema de Larry seja buscar uma causa ou explicação sobrenatural para a sua desgraça. Sim, pois não pode existir um novo Jó no capitalismo pós-moderno, não é verdade?

O Sr. Gopnik não sofre exatamente nas mãos de “Deus”. Quem faz mal a ele são a esposa adúltera, o filho maconheiro, o irmão fracassado, o aluno chantagista, os advogados caros, etc. Seriam todos instrumentos da vontade divina? Ou a do diabo? Ou ainda não seria melhor pensarmos que todo esse cenário nos mostra o quanto somos dependentes de relações e sistemas sociais – e meramente sociais – cada vez mais complexos, cada vez mais abstratos, próximos de nós mas inalcançáveis a qualquer controle, e que acabarão mais cedo ou mais tarde por nos escravizar por completo e nos destruir enquanto sujeitos “emancipados” (o orgulho do velho Iluminismo)?

E não há religião, ideologia, arte ou maconha que poderá nos salvar, aliviar, consolar, nem dar qualquer satisfação. Bem-vindo à pós-modernidade, Larry! Enfim, mas o que importa mesmo é a realização cinematográfica de tudo isso. E os irmãos Coen são mestres porque usam a expressividade da imagem antes e acima de qualquer coisa, em todos os mínimos detalhes: desde o tom da iluminação e da cor até o contraponto irônico da trilha sonora. Contar uma história e manifestar o seu sentido por meio de imagens. É isso. Pegue-se por exemplo a direção de atores, outra marca registrada no estilo dos diretores: as “caras de cu” que todos fazem o tempo todo são divertidíssimas e muito significativas. O estupefato, o hirto, o abobalhado, o meio estúpido são traços típicos do comportamento das personagens das tragicomédias dos Coen.

O rigor da fotografia na composição exata dos planos e a montagem também merecem atenção: veja-se a cena na qual se mostram paralelamente Larry Gopnik e o rival Sy Aberman cada um dirigindo o seu carro. Quanto ao áudio de “audiovisual”, divirta-se com a parábola contada pelo rabino ao som (não-diegético) de Jimi Hendrix, enquanto a própria voz em “off” do narrador parece dublar os personagens da história. Enfim, por tudo o que discutimos, principalmente pela constante ironia que paira sobre tudo e sobre o próprio discurso, concluímos que o cinema dos Coen é adorável sem se dar à adoração – eis o segredo. Por isso, assim como o Michael Haneke de que tratamos ontem, eles jamais serão tão populares quanto outros cineastas-cabeça mais “carismáticos”. E é isso que faz deles mais adoráveis.

2 comentários:

Anônimo disse...

Acho dos irmãos o Cohen o mesmo que acho de Lars Von Trier: minha "relação" com eles começou com uma obra prima, um filme absolutamente extraordinário, na forma e no conteúdo (Europa, de Trier) ou com um filme sedutor e inovador na forma (Ajuste Final, dos Cohen), e depois foi uma coleção de decepções, aquela energia e criatividade dos primeiros filmes foi se diluindo, se transformando em um amontoado de maneirismos pseudovanguardistas, e o vazio, a falta de graça, sutileza e elegância principalmente dos Cohen foi se tornando cada vez mais pesada e insuportável. O último que vi, "Queime Depois de Ler", foi patético, perda de tempo total.

André Renato disse...

Bem, pessoalmente eu discordo. Mas os seus argumentos são pertinentes e já ouvi opiniões parecidas a respeito da progressão da obra dos Coen e de Trier. Pode ser interessante continuar acompanhando a carreira deles para ver o que acontece. Obrigado pelo comentário.