quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Aguirre, A Cólera dos Deuses


Existem filmes que causam efeitos de psicotrópicos em nós. Ninguém sai impune de assistir a eles. Mexem conosco de uma maneira quase física, ficamos hipnotizados, catatônicos até o último momento. Minto. Até depois que o filme termina e nós nos encontramos – voltamos a nós – paralisados na poltrona, sem saber o que pensar. A razão implodida, restam-nos apenas as sensações de significação vaga mas com grande e irreversível impacto, quase à flor da pele.

Certos filmes são drogas pesadas. Filmes como os de Werner Herzog. Filmes como Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972). Lembro mais uma vez o filósofo Gilles Deleuze, ao afirmar que o cinema de Herzog é o das imagens tácteis. Não há outra maneira mais precisa e poética, ao mesmo tempo, que descreva a fenomenologia de se assistir a alguma película deste fantástico (em sentido quase literal) realizador. Herzog é um daqueles conhecimentos, uma daquelas verdades tão primevas, profundas e transcendentais,

que o único modo com o qual conseguimos pensá-lo e processá-lo em nossas limitadas inteligências de mamíferos é o modo dos poetas: o modo da metáfora, da alegoria, do símbolo. Permitam-me agora um rasgo maior do exagero, fruto exclusivo da impressão, do deslumbramento (ou alumbramento, como disse o poeta): Herzog não deveria ser exibido em cinemas, mas em templos, monastérios ou catacumbas de sociedades secretas místico-filosóficas. Isso mesmo.

O cinema de Herzog é para ser tocado e ingerido como uma relíquia ou corpo-santo. Herzog filma como um sacerdote-xamã ministrando seu ritual: a solenidade e a paixão com que sua câmera toca milagrosamente a pele do mundo são próprias daquelas de um louco-iluminado no momento da epifania, no momento da transfiguração. Dizer que se trata de um cinema poético, contemplativo ou meditativo é até pouco. Um filme como Aguirre é místico. Mas de um misticismo materialista.

Não porque desconfie de quaisquer supra-realidades, mas porque mergulha fundo no desvendamento das sendas mais secretas desta própria realidade – até mais desconhecida, para nós, do que certas outras. O diretor emprega a força de alma do crédulo na adoração curiosa (portanto, filosófica) do mundo que o cerca – e do que há nele, principalmente nas trevas mais profundas de seu coração. É uma fé sem crença, uma filosofia sem razão. Contraditório, barroco? Em uma palavra: Romântico.

Werner Herzog pertence àquela “família sobrenatural” (no dizer de um grande artista da palavra) dos poetas-profetas. Aguirre é uma narrativa digna da memória (a deusa Mnemosine) dos antigos aedos gregos, dos tempos (pré-) homéricos. Do relato incompleto de um padre missionário, relativo a um evento particular no início da colonização espanhola da América, Herzog extrai, reconstitui e presentifica o mais essencial (de acordo com a vidência que a deusa lhe concede) do fenômeno humano.

Ele também fez isso em O Sobrevivente (2006), outra reconstituição fictício-documental de situações-limite vividas por um – ou mais indivíduos. Fico especialmente curioso agora para ver O Homem-Urso (2005), documentário mesmo. Incluindo junto destes – e também junto de Aguirre – filmes como Kaspar Hauser (1974) e Woyzeck (1979), teremos em mãos a figura típica do (anti-) herói herzoguiano: um sujeito maldito, “sem defesa”, dotado da “grande visão dos alucinados” (Deleuze).

Vejo (e ainda espero) o cineasta filmando algum romance de Herman Hesse, seu compatriota e furacão expressionista, particularmente Demian (1919). Nunca vi o Deserto dos Tártaros (1976) de Valério Zurlini, baseado na obra de Dino Buzzati; mas também tenho visões deste romance transfigurado em cinema por Werner Herzog. Não obstante, depois de testemunhar Aguirre, meu maior sonho passa a ser assistir à uma possível versão de O Coração das Trevas.

Definitivamente não consigo pensar em nenhum nome de cineasta que seria mais perfeito para reger a filmagem de qualquer obra literária do que o de Herzog em relação à criação de Joseph Conrad. Orson Welles iria se entregar à tarefa, mas... enfim, é mais um daqueles filmes lendários que nunca existiram – e talvez nunca existirão. Tal qual ao mítico Dom Quixote de Terry Gilliam (este sim, filmado – em pedaços – pelo diretor de Cidadão Kane). Mas vamos voltar.

Um possível “Coração das Trevas” de Herzog seria complemento e contraponto perfeito ao Apocalipse Now (1979) de Coppola – adaptação livre da novela em questão) –, outra das grandes fitas malditas do cinema, daquele desencanto místico que deveria ser censurado a espectadores noviços em questões espirituais / filosóficas. Brincadeirinha. Ainda não vi Vício Frenético, a fita mais recente do diretor alemão. Gostaria de assistir antes ao filme original de Abel Ferrara, do qual este é uma refilmagem que recebeu algumas fortes críticas.

Mas... voltando mais uma vez a Aguirre, é engraçado comparar a primeiríssima imagem deste filme com muitas das do Avatar (2009) de James Cameron: vemos lá uma expedição de colonos e índios descendo por uma trilha-escadaria estreitíssima, nas encostas da cordilheira dos Andes, filmados à grande distância; um fio colorido escorrendo lentamente pelo dorso da montanha, entre nuvens e névoas. Sem computação gráfica, sem I-MAX e sem 3D, Herzog consegue produzir efeitos no espectador tão vertiginosos e sublimes quanto aqueles da fábula de Cameron. Tão ou mais.

Essa cena pode fazer os mais jovens também se lembrarem de O Senhor dos Anéis (2001). Porém, algo precisa ser dito: Herzog não é para crianças – talvez, e apenas talvez, para alguns (pós-) adolescentes. Um filme como Aguirre, a despeito de toda a discussão muito adulta suscitada pelo colonialismo, é no final das contas uma grande afirmação do espírito humano. Mas uma afirmação romântica, ou ultrarromântica, diga-se de passagem. Professores de história adorariam exibi-lo aos seus alunos, aposto.

Mas é melhor não, acreditem. Se não pelo que já dissemos, é preciso reconhecer ainda que o fato histórico não passa de pretexto, em Herzog, para transcender ao fato mítico. Kino-Mythos. Ou seja, o buraco é (bem) mais embaixo. Eis, mais uma vez, a dimensão do símbolo. Um louco ensandecido que vem além do oceano e desce do céu da montanha para procurar a lendária Eldorado no meio do coração das trevas amazônico, eis uma proposta de sinopse para Aguirre, A Cólera dos Deuses. Não é preciso dizer mais. Testemunhe.

2 comentários:

Tarso disse...

"Herzog não deveria ser exibido em cinemas, mas em templos, monastérios ou catacumbas de sociedades secretas místico-filosóficas". Parabéns!!! Só assim mesmo para tentar descrever o impacto que Aguirre causa em quem o assiste.
A sensação que tive ao ver no cinema esta obra-prima absoluta pela primeira vez perdura até hoje, nunca tinha conseguido encontrar as palavras certas para expressá-la, mas encontrei a maioria delas no seu comentário.

André Renato disse...

Muito obrigado, amigo!

Sinto minha vida mais realizada ao ver filmes como esse e compartilhar a experiência...