sábado, fevereiro 27, 2010

500 Dias Com Ela


Não adianta. A vocação do cinema é a realidade. O que não significa que deverá resultar disso uma estética “realista”. A maneira como se filma não interessa, assim como não interessa o caráter “real” do que é filmado: pode ser uma história do planeta Terra ou do planeta X. Pois o cinema, assim como a literatura, tem para si o poder da alegoria – que é o que sempre definiu e continua definindo a natureza mais essencial do fazer artístico. O quinhão de realidade que interessa aos filmes é o que podemos convencionar de chamar as “realidades humanas”. Num sentido bem fenomenológico, constituem-se elas das vivências subjetivas que um indivíduo tem com si e com outros de sua espécie.

A única verossimilhança que importa é a do espírito. As boas produções do fantástico – terror, ficção científica, fábulas infanto-juvenis, dentre outras menos rotuláveis – sabem obedecer muito naturalmente a essa lei. Então, já dá para imaginar a epifania muito particular que o espectador experimentará ao acompanhar uma narração que transcende a si mesma, tocando-o de maneira sempre diferente mas muito íntima. É aí que está a graça – no sentido mais original da palavra: o dom divino concedido aos mortais. Qualquer filme que não dê a devida conta à dimensão humana de qualquer fato NÃO será um bom filme, quaisquer que se façam os seus propósitos.

Agora, não estamos defendendo aqui nenhum cinema piegas, condescendente ou auto-indulgente. Tanto porque o humano é a maior das contradições, o maior dos mistérios e ainda por cima dotado de peculiar inteligência e vontade. Qualquer discurso que tente diminuir e simplificar esse não obstante “bicho da terra tão pequeno” – no dizer de Camões – estará condenado ao naufrágio. Graças aos deuses, 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, 2009) não é um desses discursos. O filme se apresenta como mais um daqueles de “educação sentimental”, mas numa forma antes de fábula do que de romance de tese – felizmente.

A estrutura de “história adulta da carochinha” – no dizer de Guimarães Rosa – traz para a película de Marc Webb todo um encanto que servirá de interessantíssimo contraponto ao desencanto de sua mensagem: a famosa moral da história. Mas não se pense que é um filme negativo, muito pelo contrário. Sua proposta é a de nos ensinar a amar, através de exemplos singelos mas contundentes (quer outra pedagogia?), muito como o francês Canções de Amor (2007) de Christophe Honoré. 500 Dias Com Ela procura mostrar o quanto cada pessoa sente (amor, paixão, etc) de maneira bastante diferente e, a partir daí, elaborará para si mesma uma narrativa que pouco ou nada terá a ver

com a história construída por seu parceiro(a), tampouco com a – suposta – realidade dos fatos vividos pelo casal. Estou colocando a coisa de modo bem intelectual, eu sei; mas assista ao filme e verá o quanto do que é mostrado corresponde a muito do que vemos e vivemos, e de maneira simples, clara, direta: não obstante o tema, a realização da fita procura ser o mais despretensiosa possível. “O nosso amor a gente inventa” ou “adoro um amor inventado” já dizia o poeta Cazuza. O cinema também é invenção do real, ou melhor: o cinema é a transfiguração do real atravessado pelos nossos olhos e corpos vestidos de uma máquina (o cinematógrafo).

Vestidos de amor e paixão, nossos corações também empreenderão uma viagem de exploração que conseguirá antes uma interpretação, uma representação dos lugares visitados do que uma descrição “científica”. O importante é que nessa jornada o todo não existe, será apenas um construto feito a posteriori com o grande apoio da memória, especialmente da memória afetiva. A totalização da experiência é sempre um trabalho de racionalização – envolvendo as já esperadas doses de idealização ou depreciação, dependendo do caso. O primeiro será o de Tom (Joseph Gordon-Levitt), e o segundo de Summer (Zooey Deschanel, uma graça).

Buscar um sentido para nossas vivências amorosas através de uma coesão e uma coerência entre elas, relacionando-as à nossa personalidade e à nossa história geral de vida, contruindo um texto. Mas a vida não é um romance. Tampouco uma letra de canção escrita por Morrissey (ex-Smiths). Não que seja impossível qualquer totalização e universalização, mas estas serão muito difíceis de serem alcançadas, pois a maneira como nós vivemos e sentimos as experiências em si é bem diferente. O cérebro busca o total, mas o coração concentra-se no fragmento. O amor é feito e vivido de momentos, e momentos são somente momentos.

Não significam nada além do que rolou naquele instante por qualquer razão muito particular que seja. Eis o aprendizado de Tom: não existe destino, não existe aquela que será a “the one”. Pelo menos, não será Summer. E pode não ser ninguém, tanto quanto pode ser Autumn (depois do verão, o outono). Ninguém saberá. Mas isso não quer dizer que não se poderá buscar e viver o amor naquilo que ele tem de mais fundamental e unicamente verdadeiro: o simples encontro de um homem e uma mulher. Pronto. A memória afetiva trabalha com instantes significativos, não necessariamente relacionados em uma ordem temporal.

E isso o filme expressa muito bem através da narrativa não-linear. Ela representa o processo interno de rememoração, compreensão e superação da relação que Tom possuiu com Summer. Não se trata de uma historinha folhetinesca de amor – e falsa, portanto. Repito: ninguém vive um romance de amor; mas talvez todos nós vivenciamos contos amorosos. É isso. Enquanto a maioria dos filmes românticos (mesmo as comédias românticas) arvoram-se na velha tradição do romance literário, 500 Dias Com Ela procura fazer-se de “causo”, conto, crônica, que são gêneros mais abertos às liberdades e transformações de forma e de conteúdo.

E viva o primeiro dia de outono!

2 comentários:

Mariana Lemos disse...

André,
Nunca havia feito um comentario em seu blog porém hoje, após ter lido 500 days of summer, nunca me identifiquei tanto e concordei em cada frase manifestada. Estudo Cinema na Argentina e sempre leio o seu blog, esta de parabéns!

André Renato disse...

Oi, Mariana.

Muito obrigado! Este filme é mesmo muito inspirador... Volte sempre e comente! Ah, e bons estudos...