Melancolia (“Melancholia”, 2011) é um filme-ensaio. Essa diminuição de tom já representa seguramente uma melhoria em relação a alguns torpes filmes de tese que trouxeram ao seu diretor bastante popularidade – e polêmica: Dançando no Escuro (“Dancer in The Dark”, 2000) e Dogville (“Dogville”, 2003), principalmente. Anticristo (“Antichrist”, 2009) ainda buscava, com ambição, conteúdos além do alcance do cineasta dinamarquês, mas também ia rumando em direção a um intimismo mais focado nos personagens, que já não eram tanto “embalagens” para ideias bem vendáveis entre a inteligentzia cinéfila. O cineasta propagandeou que tinha rodado o filme durante uma fase de intensa depressão, talvez daí o lirismo e a relativa despretensão sócio-política.
Agora, Von Trier também relaciona o mais recente longa às suas disposições subjetivas (ou distúrbios psiquiátricos). A crer em suas palavras, podemos concluir que Melancolia é o filme mais pessoal que ele já realizou: um ensaio poético sobre paixões que movem o ser (ou estados de espírito que o paralisam). E acredito que terá valor – mesmo com limites muito nítidos – na medida em que for visto como expressão mais ou menos solta da alma de um “eu”. Por isso, não cabem aqui grandes divagações sobre os significados filosóficos da melancolia, da vida ou do fim do mundo; a crítica adora fazer isso, naturalmente, mas se formos admitir admitir tais propostas, então deveremos afirmar que Von Trier passou longe do seu alvo – mais uma vez.
Se querem um bom cinema “de conteúdo”, vão ver O Sacrifício (“Offret”, 1986), de Andrei Tarkovski, que trabalha mais do que satisfatoriamente alguns temas também presentes em Melancolia (a crise em família às vésperas do apocalipse). Por sinal, Anticristo, dedicado por Von Trier ao mestre russo, já emulava constrangedoramente a temática de A Hora do Lobo (“Vargtimmen”, 1968), de Bergman. Mais uma digressão: Tarkovski revela bastante apego à obra de Bergman em seu livro-ensaio Esculpir O Tempo – são, talvez, os dois maiores gênios do cinema poético-meditativo. Melancolia se divide em duas partes: na primeira, intitulada “Justine”, vemos a própria (interpretada por Kirsten Dunst, que ganhou prêmio em Cannes por isso) sofrendo uma grave crise de depressão na noite do seu casamento.
A festa é linda e maravilhosa, mas o noivo e os familiares não compreendem, absolutamente, o que se passa com Justine. À sua própria maneira, lembrando os clássicos A Regra do Jogo (“La Règle du Jeu”, 1939), de Jean Renoir, e O Poderoso Chefão (“The Godfather”, 1972), de Francis Ford Coppola, o evento social – que, neste caso, ocupa metade do filme – é mostrado em paralelo com os seus “bastidores”, o que cria um interessante efeito de contraponto: nos grandes salões e pátios da mansão vemos as pessoas “normais”, conversando, comendo, bebendo, dançando... Já na estreiteza claustrofóbica dos quartos, corredores e banheiros, Justine se encontra – como ela mesma diz – numa luta terrível consigo própria, para conseguir caminhar, respirar, funcionar como qualquer ser humano...
Justine é o equivalente feminino do “homem do subsolo” dostoievskiano: uma vez que se contempla o abismo, não se pode voltar a macaquear os mesmos e velhos gestos mecânicos daqueles que o autor russo chama de “homens de ação”. Neste ponto, cai muito bem a cena em que Justine ironiza as pessoas que lhe pedem o tempo todo para “sorrir”... Os imperativos sociais (para não dizer burgueses) da felicidade, da alegria, das relações cordiais e do prazer imediato arrebentam-se de encontro ao coração endurecido de Justine como a Terra está ameaçada de arrebentar-se contra Melancolia, um planeta errante que logo cruzará perigosamente a nossa órbita. Não é que todo espírito positivo seja uma falsidade ideológica, mas há uma forma automatizada ou neurótica de se buscar o próprio bem-estar que não corresponde à essência mais desapegada da vida.
Também é irônico que a protagonista seja publicitária (a propaganda sendo uma das maiores responsáveis pelas formas ilusórias de “felicidade” a que se almeja no mundo industrial): o patrão está lá, incansável, aporrinhando Justine para que lhe dê um slogan para uma nova “campanha”. Em toda essa primeira parte, os diálogos são muito bem contruídos e conduzidos, junto dos jogos de olhares e gestos, na expressão dramática do lirismo maldito de Justine, suas consequências e relações com outras pessoas e circunstâncias, que se desenrolam de maneira satisfatoriamente natural e orgânica. Invisto na hipótese de que isso se deve ao conhecimento de causa de Lars Von Trier, a respeito das vicissitudes vividas por portadores de depressão aguda.
Pois não há, em nenhum filme anterior dele, uma mise en scène tão entregue às suas próprias forças, conduzida pela linha complexa e muito rica dos próprios personagens e fatos vividos, o que acaba por trazer uma riqueza quase clássica para o longa-metragem. Melancolia é a obra menos discursiva de Von Trier – por isso, a menos moderna: trata-se de um filme realizado com menos ideias e mais emoção (sublimada nos personagens e nas suas histórias). É claro que ainda se trata de Lars Von Trier, e a sua terrível vontade-de-dizer não conseguirá ser completamente reprimida aqui: o diretor carrega a mão, sempre, e o “videoclipe” wagneriano que abre o filme torna-se pesado, cansativo. Sutileza não é um atributo do cineasta, o qual, em alguns momentos, parece ser o “Michael Bay” do cinema-cabeça europeu.
A segunda parte concentrar-se-á em Claire (Charlotte Gainsbourg), irmã de Justine e organizadora das suas bodas, junto com o marido, John (Kiefer Sutherland). Tempos depois, quando a ameaça de Melancolia vai se tornando mais próxima e real, o casal – típicos representantes dos “homens de ação” – perde as estribeiras. Então, quem começa a fazer o papel do “controle-se” e do “deixa disso” é justamente Justine, que começa finalmente a superar sua crise psíquica. Claire e o marido, que são pessoas “felizes”, bem-resolvidas consigo mesmas, sociáveis e ricas, simplesmente não suportam ter as suas grandes certezas abaladas pela iminente, repentina e fortuita destruição. Justine, naturalmente, não se deixará afetar (em excesso), uma vez que, no seu estado depressivo, já não acreditava mesmo em qualquer suposto ideal ou consolo inventados pela mente que pensa ou pela sociedade.
Mas não dá para aplicar a Melancolia uma filosofia niilista. O filme é mais zen do que qualquer outra coisa. Como já disse, por já ter comtemplado o abismo, Justine não deixará de reconhecer e abraçar a morte como parte essencial da vida, até mesmo transformando a vivência do apocalipse num ritual, numa cerimônia que, no fundo servirá de amor à vida e aos entes queridos; uma comunhão primitiva e arquetípica com o mundo e com o ser mais inconsciente. É aí que a vida verdadeira – e deliciosamente efêmera – se encontra. Somente nesse lugar paradoxal. Os animais (os cavalos do estábulo da propriedade rural de Claire e John), que não perderam como nós essa ligação fundamental com a vida e com o universo, começam a se agitar instintivamente com a aproximação de Melancolia. Mas, nos momentos finais, eles irão se acalmar.
O próprio encontro das massas colossais dos dois planetas, anunciado e depois mostrado ao som do “liebestod”, da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner (tema musical do filme todo), também possui esse caráter simbólico, essa conotação amorosa. Um verdadeiro idílio. Dessa maneira, por incrível que pareça e de forma bastante paradoxal, Lars Von Trier realizou um filme feliz, afirmativo, de bem com a vida, com as pessoas e com o mundo. Eu tinha dito lá atrás que não adiantava filosofar sobre Melancolia. Mas o fato é que este filme funciona – ao contrário do resto da obra do diretor – apenas porque tais conteúdos aparecem como efeito da manifestação de lirismo e drama aos quais o longa se dedica acima de qualquer outra coisa. E não o contrário. Com isso, a narrativa ganha em autenticidade.
Dogville, como contra-exemplo, parece ser feito a partir de ideias, com a construção de personagens e acontecimentos nitidamente pensados para se comunicar e persuadir o espectador a respeito dessas mesmas ideias. É o discurso que acaba sufocando a arte – por mais anti-pós-moderna que tal crítica possa parecer. Enfim, os problemas de Melancolia são dois: além do já citado carregamento emocional (na cena inicial, especialmente), temos a câmera estilo “24 Horas” (é até engraçado vermos um Kiefer Sutherland pós “Jack Bauer” captado por ela), com seus giros e trepidações enjoativos, os quais não têm nada a ver com um filme poético-filosófico como este. De resto, desejamos a Von Trier muitas infelicidades, para que prossiga com filmes menos cabeça e mais coração.
7 comentários:
Belo texto, e boa análise. Abraço.
Valeu, Bruno. Fiz esse texto devagar (quase desistindo), relendo muito, pois nunca gostei de Von Trier. Mas esse filme é um pouco diferente.
Gosto imensamente da fase Ondas do Destino/Dançando no Escuro/Dogville do Von Trier, mas o cineasta tava perdendo a mão (e a cabeça) nos últimos trabalhos. Anticristo, por exemplo, eu acho insuportável. Já em Melancolia ele consegue manter os pés no chão e sabe exatamente onde quer chegar com sua história, filmada com o mesmo estilo de sempre, mas nunca gratuita. E parece realmente um filme feito de coração, ainda mais por fazer sua personagem encontrar paz de espírito em meio ao caos, uma das melhores ideias do longa. Belíssimo filme.
Concordo com tudo que você falou (e quase todas as outras críticas positivas sobre o filme). Levando em conta o leque de possibilidades que um pretexto "fim do mundo" deixa nas mãos de um misantropo como Lars Von Trier, Melancolia é filme até bem bonzinho.
Mas 90% das coisas que se extrai dele, consegue-se lendo um resumo do roteiro. O filme, como experiência, pouco acrescenta. Pelo contrário, só se sabota. Senti tédio vááárias vezes e me peguei olhando pro relógio muitas outras.
Queria até dizer que gostei, mas só de lembrar do enjoô (físico, mesmo) que senti após a sessão, fica difícil.
Melancolia me pareceu mesmo um filme mais equilibrado, Rafael. É feito mais como "expressão", do que como "persuasão". Sua realização não é nada genial, mas, em relação aos outros longas de Von Trier, este surpreende um pouco.
Concordo que este tema nas mãos do diretor de "Dogville" teria sido sofrível, Bernardo. Misantropo é uma palavra boa. Agora, o que mais me cansou em "Melancolia" foi aquela câmera "24 Horas", de provocar enjôos mesmo. Este pode até ter sido o objetivo do diretor mesmo (fazer o espectador sentir o mal estar do fim do mundo), mas utilizar pra isso um recurso de linguagem que não tem nada a ver com o espírito do filme (que, de "24 Horas" só tem o "Jack Bauer") não dá.
Acho que esse diretor mostra bem a diferença entre intelectuais e artistas. Ele é um intelectual tentando ser artista, Credo.
A melhor crítica do filme que li. A articulação do díptico Justine e Claire ficou excelente.
Só ressalvo essa dualidade cabeça x coração. O diretor está tão convencido da inautenticidade da narrativa fílmica como se apresenta, que usa as "regras do jogo" contra o espectador, a crítica, o espetáculo. Não parece ser por crítica social, mas por uma sensibilidade artística revoltada e virulenta.
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