Jean Vigo é um daqueles diretores que os cinéfilos mais diletantes não conhecerão. Ele não é nenhuma estrela a brilhar fora dos meios cinematográficos; e, mesmo assim, é só dentro de certos meios cinematográficos que ele se fará mais conhecido. De qualquer maneira, quem frequentar com mais afinco os cineclubes, mostras especiais, e pesquisar mais à fundo a história e a estética do cinema, mais cedo ou mais tarde topará com o nome de Jean Vigo. Dentre os intelectuais, talvez o seu pai – o famoso anarquista francês Miguel Almereyda – recorra mais à memória. Entretanto, o filho é um dos cineastas mais talentosos e espirituosos da arte do cinema.
Jean Vigo teve uma vida curta (nasceu em 1905 e faleceu em 1934, aos 29 anos de idade) e atribulada, segundo Paulo Emílio Salles Gomes – o maior biógrafo e estudioso da obra do diretor (não só no Brasil, mas em âmbito internacional: seu livro, “Jean Vigo”, foi escrito em francês e publicado originalmente naquele país, em 1953, decorrendo daí diversas traduções e reedições). Realizou apenas quatro filmes: um longa (L’Atalante – 1934), um média (Zéro de Conduite – 1933) e dois curtas (Taris – 1931; e À Propos de Nice – 1930). Mas foi o suficiente para inscrever seu nome no rol dos grandes artistas da imagem em movimento.
Nesta postagem, eu gostaria de apresentar mais especificamente o Zero de Comportamento, primeira fita de Vigo com a qual tive contato, anos atrás e ainda em VHS. Mesmo correndo o risco de sermos taxativos, podemos afirmar que esse filme mostra a categoria de artista que Vigo é: alguém que circula por entre diferentes tendências estéticas de seu país e de seu tempo (o surrealismo, o realismo mágico), por diferentes tendências ideológicas (a anarquia, o socialismo revolucionário), mas que não faz por menos do que orquestrar essas diferentes forças num todo que é a sua própria voz. Vigo usa os recursos de forma e conteúdo à disposição para expressar sua própria visão de mundo.
Uma visão de mundo idiossincrática, repleta de uma sensibilidade e personalidade cujas raízes descem fundo à busca de nutrientes na história pessoal do próprio artista, e em sua memória afetiva. A história de humilhações, ressentimentos, rebeldia e companheirismo juvenil que é Zero de Comportamento demonstra o poder da arte ao se associar à vida – conforme bem explica Paulo Emílio. Contudo, o que mais chama a minha atenção no artista Vigo são as escolhas que ele faz: a arte está acima da ciência, o estilo está acima da gramática. É uma posição de consequências graves, que não se recomendaria jamais a um estudante ou “profissional” de cinema, mas Vigo a tomou para si e arcou com ela.
Na primeira vez que vi Zero de Comportamento, custou-me entender o filme. Na segunda vez também. Na terceira vez também. Durante um curto espaço de tempo, assisti diversas vezes a este filme curto (40 minutos), sem compreender que as perguntas que eu fazia é que estavam erradas; assim, eu jamais conseguiria uma resposta. Somente depois é que fui dar que já tinha entendido o filme desde a primeira exibição, mas de uma maneira que eu não tinha ainda reconhecido. Zero de Comportamento é uma daquelas obras de cinema que pedem um difícil desapego racional por parte do espectador. O filme é para ser usufruído com intuição, emoção e sensação física. A razão consciente deve adormecer.
Tal característica – que nos remete ao Surrealismo – não nasceu de uma decisão livre por parte de Jean Vigo, como no caso dos filmes mais “bizarros” de David Lynch, para lembrar um exemplo contemporâneo. Zero de Comportamento foi concebido, escrito e em grande parte filmado para ser uma película muito mais inteligível do que acabou sendo. As temáticas e mensagens veiculadas por Vigo eram bem claras e explícitas. No entanto (a maldição do cinema), por conta de múltiplas dificuldades práticas de produção e de desentendimentos com produtores e censores, o filme acabou vindo à tona mutilado, terrivelmente mutilado.
Levando em consideração o que foi filmado mas eliminado na sala de montagem e também o que sequer se colocou à frente da câmera, a fita que conhecemos difere enormemente do roteiro original de Jean Vigo. Apesar de tudo, o resultado poderia ter sido muito, muito pior. Apesar dos seus defeitos elementares, coisas que nenhum estudante de primeiro ano de faculdade de cinema seria capaz de fazer, se Zero de Comportamento é a obra prima que hoje consideramos, tendo o seu valor só aumentado ao longo dos anos, isso é graças às escolhas radicais do diretor Vigo, que priorizaram o artista e não o profissional. Para explicar melhor, reproduzo um trecho de Paulo Emílio:
“Uma escolha penosa se impunha (na montagem): levar em conta a clareza do conjunto e ficar com as sequências e os planos que, a despeito de sua qualidade, pudessem ajudar a compreender melhor a ação, ou tomar as partes mais autênticas e mais bem realizadas, sem se preocupar muito com o ritmo e o resto. Em resumo, diante da impossibilidade prática de alcançar, na obra, uma unidade ideal, Vigo teria de optar entre unidade de ação ou unidade de estilo. Preferiu a segunda solução, disposto a acrescentar, se necessário, alguns intertítulos explicativos.”
Zero de Comportamento pode ser um filme inacabado, faltando clareza ao roteiro e às idéias, mas trata-se de um filme extremamente coeso quanto ao estilo de se expressar por meios especificamente cinematográficos. E aí é que está. Desde a primeira vez que se assiste, sente-se, intui-se que a fita é uma obra de artista, ao mesmo tempo que nosso cérebro racional fica extremamente incomodado e confuso com o andamento desajeitado da narrativa. Zero de Comportamento é um poema, meio cubista, meio surrealista, meio dadá. E vale por momentos de cinema puro: a viagem de trem dos meninos de volta à escola, no final das férias, na qual só vemos uma densa névoa cercar o vagão, criando com isso uma atmosfera mágica;
os movimentos de câmera, os primeiros planos e efeitos especiais como o acelerado, a câmera lenta e a animação de um desenho feito no papel, nunca gratuitos ou formalizantes, mas sempre a serviço da maior expressividade; a guerra de travesseiros no dormitório dos meninos (na qual vemos a polêmica imagem do nu frontal de um garoto); o burlesco do diretor anão e do inspetor amigo da molecada e imitador de Chaplin; a última cena, com os garotos “revolucionários” correndo pelos telhados e filmados num leve contra-plongée, como se estivessem ascendendo ao céu; a trilha sonora belíssima de Maurice Jabert, compositor clássico do cinema francês.
Bem que as faculdades de cinema poderiam ensinar mais poesia do que prosa. Ou, pelo menos, tanto poesia quanto prosa. Cansei de ver jovens estudantes gastando as suas maiores energias com o trivial da cartilha e da gramática da norma culta do “audiovisual”. Jovens vigorosos que põem os bofes para fora e perdem o maior tempo para chegar em lugares que não deveriam ser nada mais do que pontos de partida – ou etapas do caminho. Se formos falar de Cinema com C maiúsculo, deveremos admitir que a linguagem serve mais à expressão do que à comunicação. Desse modo, é irrelevante perguntar se tal ou qual decisão de decupagem funciona ou não (para o espectador, segundo a “norma culta”).
Os questionamentos que deveriam atormentar as mentes fervorosas dos jovens futuros artistas da imagem são outros, bem outros. É por isso que as melhores qualidades de cineastas profissionais e competentíssimos de hoje em dia não valem os piores “defeitos” de um Vigo. Não que devemos todos buscar fazer filmes como Zero de Comportamento no que ele tem de “tosco”. Um estilo sem uma gramática que o sustente não ficará de pé por muito tempo, tampouco dará frutos. Mas uma gramática sem estilo é daquelas pragas que infestam descontroladamente e tornam estéreis todos os solos, se não fizermos nada. Na hora mais desesperada da escolha, Jean Vigo deu o exemplo.
Jean Vigo teve uma vida curta (nasceu em 1905 e faleceu em 1934, aos 29 anos de idade) e atribulada, segundo Paulo Emílio Salles Gomes – o maior biógrafo e estudioso da obra do diretor (não só no Brasil, mas em âmbito internacional: seu livro, “Jean Vigo”, foi escrito em francês e publicado originalmente naquele país, em 1953, decorrendo daí diversas traduções e reedições). Realizou apenas quatro filmes: um longa (L’Atalante – 1934), um média (Zéro de Conduite – 1933) e dois curtas (Taris – 1931; e À Propos de Nice – 1930). Mas foi o suficiente para inscrever seu nome no rol dos grandes artistas da imagem em movimento.
Nesta postagem, eu gostaria de apresentar mais especificamente o Zero de Comportamento, primeira fita de Vigo com a qual tive contato, anos atrás e ainda em VHS. Mesmo correndo o risco de sermos taxativos, podemos afirmar que esse filme mostra a categoria de artista que Vigo é: alguém que circula por entre diferentes tendências estéticas de seu país e de seu tempo (o surrealismo, o realismo mágico), por diferentes tendências ideológicas (a anarquia, o socialismo revolucionário), mas que não faz por menos do que orquestrar essas diferentes forças num todo que é a sua própria voz. Vigo usa os recursos de forma e conteúdo à disposição para expressar sua própria visão de mundo.
Uma visão de mundo idiossincrática, repleta de uma sensibilidade e personalidade cujas raízes descem fundo à busca de nutrientes na história pessoal do próprio artista, e em sua memória afetiva. A história de humilhações, ressentimentos, rebeldia e companheirismo juvenil que é Zero de Comportamento demonstra o poder da arte ao se associar à vida – conforme bem explica Paulo Emílio. Contudo, o que mais chama a minha atenção no artista Vigo são as escolhas que ele faz: a arte está acima da ciência, o estilo está acima da gramática. É uma posição de consequências graves, que não se recomendaria jamais a um estudante ou “profissional” de cinema, mas Vigo a tomou para si e arcou com ela.
Na primeira vez que vi Zero de Comportamento, custou-me entender o filme. Na segunda vez também. Na terceira vez também. Durante um curto espaço de tempo, assisti diversas vezes a este filme curto (40 minutos), sem compreender que as perguntas que eu fazia é que estavam erradas; assim, eu jamais conseguiria uma resposta. Somente depois é que fui dar que já tinha entendido o filme desde a primeira exibição, mas de uma maneira que eu não tinha ainda reconhecido. Zero de Comportamento é uma daquelas obras de cinema que pedem um difícil desapego racional por parte do espectador. O filme é para ser usufruído com intuição, emoção e sensação física. A razão consciente deve adormecer.
Tal característica – que nos remete ao Surrealismo – não nasceu de uma decisão livre por parte de Jean Vigo, como no caso dos filmes mais “bizarros” de David Lynch, para lembrar um exemplo contemporâneo. Zero de Comportamento foi concebido, escrito e em grande parte filmado para ser uma película muito mais inteligível do que acabou sendo. As temáticas e mensagens veiculadas por Vigo eram bem claras e explícitas. No entanto (a maldição do cinema), por conta de múltiplas dificuldades práticas de produção e de desentendimentos com produtores e censores, o filme acabou vindo à tona mutilado, terrivelmente mutilado.
Levando em consideração o que foi filmado mas eliminado na sala de montagem e também o que sequer se colocou à frente da câmera, a fita que conhecemos difere enormemente do roteiro original de Jean Vigo. Apesar de tudo, o resultado poderia ter sido muito, muito pior. Apesar dos seus defeitos elementares, coisas que nenhum estudante de primeiro ano de faculdade de cinema seria capaz de fazer, se Zero de Comportamento é a obra prima que hoje consideramos, tendo o seu valor só aumentado ao longo dos anos, isso é graças às escolhas radicais do diretor Vigo, que priorizaram o artista e não o profissional. Para explicar melhor, reproduzo um trecho de Paulo Emílio:
“Uma escolha penosa se impunha (na montagem): levar em conta a clareza do conjunto e ficar com as sequências e os planos que, a despeito de sua qualidade, pudessem ajudar a compreender melhor a ação, ou tomar as partes mais autênticas e mais bem realizadas, sem se preocupar muito com o ritmo e o resto. Em resumo, diante da impossibilidade prática de alcançar, na obra, uma unidade ideal, Vigo teria de optar entre unidade de ação ou unidade de estilo. Preferiu a segunda solução, disposto a acrescentar, se necessário, alguns intertítulos explicativos.”
Zero de Comportamento pode ser um filme inacabado, faltando clareza ao roteiro e às idéias, mas trata-se de um filme extremamente coeso quanto ao estilo de se expressar por meios especificamente cinematográficos. E aí é que está. Desde a primeira vez que se assiste, sente-se, intui-se que a fita é uma obra de artista, ao mesmo tempo que nosso cérebro racional fica extremamente incomodado e confuso com o andamento desajeitado da narrativa. Zero de Comportamento é um poema, meio cubista, meio surrealista, meio dadá. E vale por momentos de cinema puro: a viagem de trem dos meninos de volta à escola, no final das férias, na qual só vemos uma densa névoa cercar o vagão, criando com isso uma atmosfera mágica;
os movimentos de câmera, os primeiros planos e efeitos especiais como o acelerado, a câmera lenta e a animação de um desenho feito no papel, nunca gratuitos ou formalizantes, mas sempre a serviço da maior expressividade; a guerra de travesseiros no dormitório dos meninos (na qual vemos a polêmica imagem do nu frontal de um garoto); o burlesco do diretor anão e do inspetor amigo da molecada e imitador de Chaplin; a última cena, com os garotos “revolucionários” correndo pelos telhados e filmados num leve contra-plongée, como se estivessem ascendendo ao céu; a trilha sonora belíssima de Maurice Jabert, compositor clássico do cinema francês.
Bem que as faculdades de cinema poderiam ensinar mais poesia do que prosa. Ou, pelo menos, tanto poesia quanto prosa. Cansei de ver jovens estudantes gastando as suas maiores energias com o trivial da cartilha e da gramática da norma culta do “audiovisual”. Jovens vigorosos que põem os bofes para fora e perdem o maior tempo para chegar em lugares que não deveriam ser nada mais do que pontos de partida – ou etapas do caminho. Se formos falar de Cinema com C maiúsculo, deveremos admitir que a linguagem serve mais à expressão do que à comunicação. Desse modo, é irrelevante perguntar se tal ou qual decisão de decupagem funciona ou não (para o espectador, segundo a “norma culta”).
Os questionamentos que deveriam atormentar as mentes fervorosas dos jovens futuros artistas da imagem são outros, bem outros. É por isso que as melhores qualidades de cineastas profissionais e competentíssimos de hoje em dia não valem os piores “defeitos” de um Vigo. Não que devemos todos buscar fazer filmes como Zero de Comportamento no que ele tem de “tosco”. Um estilo sem uma gramática que o sustente não ficará de pé por muito tempo, tampouco dará frutos. Mas uma gramática sem estilo é daquelas pragas que infestam descontroladamente e tornam estéreis todos os solos, se não fizermos nada. Na hora mais desesperada da escolha, Jean Vigo deu o exemplo.
2 comentários:
Cara, é por isso que é ótimo ter um blog para descobrirmos um cinema de qualidade que foi feito antes de nosso nascimento. O que é o meu caso. Tento ao máximo ver os filmes antigos e este já está na lista.
Agradeço pelo o selo, retribui um a você por merecimento e não como uma retribuição.rs!
Abraços!
Valeu, Alyson!
filmes antigos são o meu xodó, fazer o quê? :)
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