sábado, fevereiro 14, 2009

O Curioso Caso de Benjamin Button - o livro

F. Scott Fitzgerald
O filme de David Fincher e Eric Roth, apesar das ressalvas que fizemos (na postagem do último dia 07), merecia um selo de aprovação. Mas isso foi antes de ler o conto de F. Scott Fitzgerald. Não vamos pensar aqui nos velhos e manjados termos de que a “adaptação” ficou pior do que o “original”. Imaginemos apenas o seguinte: existem duas obras com a mesma premissa. No entanto, os resultados atingidos pelas duas não foram igualmente felizes. O conto é bem mais ousado e espirituoso do que este filme, em relação ao qual não conseguimos abandonar a impressão de que o diretor e o roteirista fizeram de tudo para tornar a história o mais palatável possível para o espectador médio contemporâneo.

É incrível o como a obra de Fincher empalidece, enfraquece e finalmente desaparece perto da “voz do sangue” (expressão nietzcheana) que discursa na obra de Fitzgerald. Existem muitos aspectos do conto cujas soluções encontradas no filme só alcançaram esterilizar quaisquer sementes de criatividade e significado que poderiam se desenvolver. Comecemos pelo mais básico: a fantasia. O caráter mágico do conto é dotado daquela delícia, daquela liberdade, daquela irreverência ilógica e nonsense que estão na alma de toda uma linha de grandes clássicos da literatura universal. O Pantagruel e o Gargântua, de Rabelais (século XVI), e o Macunaíma, do nosso Mário de Andrade (composto no mesmo espírito da modernidade – dos anos de 1920 – que o autor norte-americano), são apenas dois dentre muitos exemplos.

Já o roteiro de Eric Roth promove uma tenebrosa pasteurização da fantasia, ao apelar para uma espécie de ultra-realismo biológico, o que está bem de acordo com a neurose científica e racionalizante que domina o pensamento e o gosto contemporâneo. Já escrevi antes sobre o como a indústria de filmes (e também as platéias?) não aceita mais a fantasia, em toda a sua ingenuidade e pureza inconscientes, a não ser que se dê ares “verossímeis” (leia-se: de pertinência “científica”) para o fantástico, o mágico, etc. Lembre-se, mais uma vez, o filme Tróia (2004), que não passa de um fetiche historicizante a dedetizar psicoticamente o grande repositório de mitos que é a Ilíada de Homero.

Cansei de ver filmes que parecem aqueles “documentários” científico-sensacionalistas do Discovery ou do History Channel (este sim, é o fim da picada). Em relação à história de Benjamin Button, por que será que Roth não permitiu que a “criança” nascesse na forma de um senhor barbudo de 1,73 de altura, como o fez Fitzgerald? Porque o público não iria aceitar que um homem desse tamanho saísse pela vagina de uma mulher? Convenhamos. Este é o maior crime do filme: arrancar ao espectador a liberdade infinita de sua imaginação – mesmo que seja aquele espectador que reza fielmente pelo breviário das “verdades” científicas.

A imaginação, neste filme, é metamorfoseada no fetiche de se considerar a “possibilidade” de alguma anomalia genética (é claro) que faça com que um bebê (nas devidas proporções de um recém-nascido) venha ao mundo com a pele toda enrugada e com todas as peculiaridades corporais de alguém em idade avançada (catarata, reumatismo, etc); e, conforme esse bebê, criança ou jovem vá crescendo, o aspecto de seu corpo vá rejuvenescendo. Bonito, mas pobre. E tem mais: por que é que o filme não apresentou o jovem Benjamin com a mente também “de velho”? – conforme faz Fitzgerald (resultando em algumas cenas bem engraçadas) e que estaria mais de acordo com a proposta “realista” do filme.

Mas aqui, muito convenientemente, o melodrama fala mais alto: faz parte dos nossos fetiches romanescos comovermo-nos com a tragédia de uma alma de criança presa num corpo idoso. O Benjamin do filme é nada mais do que reservado. No entanto, sua mente e seus interesses são essencialmente infantis, conforme nos mostra a cena em que ele, na cadeira de rodas, fica observando melancolicamente outras crianças correrem e brincarem; também podemos citar a cena em que ele e Daisy ouvem com muito gosto uma história infantil contada pela mãe dela. No final do filme, também com grande conveniência (só que agora passando de volta à função realista), a mente do protagonista volta a ser infantil (mais do que nunca), conforme seu corpo avança rumo às idades mais tenras.

Meio incoerente, não? O filme, aparentemente, circula com irrepreensível desenvoltura entre a função realista e a função melodramático-folhetinesca, apenas conforme melhor convém ao que se acredita ser o gosto ou aceitação do espectador... Outro elemento importantíssimo da história de Fitzgerald, mas que foi “sabiamente” eliminado do roteiro de Eric Roth, é o substrato social. É curioso pensar no fato, com implicações sutilmente implícitas, de que o pai de Benjamin, no conto, chega a desejar que o filho fosse negro, ao passarem na frente de um mercado de escravos, enquanto voltam do hospital no qual o jovem velho Button acabara de nascer (sim, a história do conto começa em 1860).

O filme, por sua vez, começa na Nova Orleans do início do século XX, onde Benjamin será adotado por uma governanta negra. Não há qualquer elemento de racismo a ser discutido. Assim como não se fala da crise de 1929 (e olha que o pai de Benjamin era um industrial, hein?) e mal se toca na II Guerra Mundial. Ao passo que o conto alfineta com ironia a Guerra de Secessão, a Guerra Hispano-Americana, a questão da escravidão e a I Guerra Mundial. Outra coisa importantíssima para a literatura de F. Scott Fitzgerald é o conflito de gerações. O escritor é o maior expoente da chamada “geração perdida”, do começo do século XX, que reunia jovens americanos rebeldes, em busca de vida, arte, sentido e sentimento, contra as convenções fossilizadas da mentalidade tradicionalmente burguesa dos seus pais.

Há uma passagem do conto dotada de grande espírito, humor e significado, que sugere exatamente os embates promovidos pelo escritor. Trata-se do momento em que o Benjamin “jovem” (ainda no primeiro terço de sua vida) e o pai voltam para casa de carruagem, no final da noite, após uma festa em que o protagonista acabara de conhecer aquela que será sua futura esposa, a jovem Hildegarde (“Daisy” fica bem melhor no cinema, não?):

“Ao voltar de faetonte para casa, pouco antes do romper da aurora, quando as primeiras abelhas zumbiam e a lua, pálida, brilhava sobre o frio orvalho, Benjamin percebeu vagamente que o pai falava acerca da venda de ferragens por atacado.
- ... E que acha você deveria merecer nossa maior atenção, depois dos pregos e martelos? – dizia o Button mais idoso.
- O amor – respondeu, alheado, Benjamin.
- Tambor? – exclamou Roger Button. – Mas se já falei, há pouco, em tambores!...
Benjamin fitou-o com olhos estonteados, justamente no momento em que o céu, a leste, se abria, de repente, numa inundação de luz, e um oriole pipilava estridente, em meio às árvores que despertavam.”

Por acaso há, no filme, alguma cena tão provocante e poética quanto essa? A não ser que pensemos numa poesia bastante convencional, da qual a película de Fincher está cheia. O livro mostra com muita riqueza as dificuldades do pai em criar Benjamin e, com mais riqueza ainda, as dificuldades do filho de Benjamin – já adulto – em “criar” o protagonista, aqui reduzido a uma criança peralta. O filme, como sabemos toma as medidas extremamente facilitadoras e “noveleiras” de fazer o pai de Benjamin abandoná-lo à criação e, posteriormente, o próprio Benjamin abandonar mulher e filha, acreditando não ser capaz de se fazer um bom pai, nas condições dadas... Assim, fica fácil fugir dos desafios narrativos que toda obra nos propõe, não?

Uma outra incoerência entre a abordagem realista do filme e suas escolhas folhetinescas, ainda mais se comparadas ao realismo (mágico) puro que o conto apresenta, encontra-se nas relações entre Benjamin e sua esposa. Soa excessivamente “novela das 8” o fato de, no filme, o amor vencer e o adolescente Benjamin (já entrando no final de sua vida) ainda dedicar uma noite de amor à sua (ex) esposa já quase sexagenária. Enquanto que, no livro, o interesse de Benjamin por sua mulher vai diminuindo na proporção em que ela vai envelhecendo e ele, rejuvenescendo. Seria de se esperar um filme mais ousado por parte de David Fincher, ainda mais tendo como fonte a obra de Fitzgerald.

Por fim, mas não menos importante, há o aspecto do humor. O conto possui bons ares de sátira (social e psicológica) e de narrativa picaresca – conforme o próprio narrador admite num dado momento. Na tradição do pícaro (espécie de malandro, mas com diferenças fundamentais), há o clássico Lazarillo de Tormes, obra anônima do século XVI, e o nosso Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (século XIX). E é aí que residem as maiores diferenças em relação ao filme, o qual não é uma comédia; o humor só aparece nele muito pela tangente, numa cena aqui, numa fala ali. Mas não faz parte da estrutura narrativa, como visão cômica em relação aos fatos.

Este filme é algo como se Steven Spielberg decidisse filmar a história do Lazarillo de Tormes; ou como se Jayme Monjardim (pensando no Olga, de 2004) fizesse uma “adaptação” de qualquer história de Machado de Assis. Fincher e Roth, por suas escolhas, deveriam ter mudado, antes de mais nada, o título; pois a palavra “curioso” em “O Curioso Caso de Benjamin Button” já sugere um tom de fantástico e de cômico que o filme, como analisamos, abandona quase que completamente. Mas, ainda bem que esta fita não se apresenta como “baseada” no conto de Fitzgerald, e sim, apenas “inspirada” por ele. Mesmo assim, se for para ter tais inspirações, que se deixe a memória do pobre escritor descansar em seu túmulo.

11 comentários:

Anônimo disse...

EXCELENTE texto, André!!! Adorei como, o tempo todo, você fez um paralelo entre o tipo de trabalho de adaptação feito pelo Eric Roth e David Fincher e sobre o que encontramos no conto de Fitzgerald. É assim que as adaptações e obras originais devem ser abordadas. Parabéns!!!

Tuma disse...

Muito interessante essa comparação. Não tive a oportunidade de ler o conto de Fitzgerald, mas fui ver o filme de Fincher com alguma expectativa e me decepcionei. Não que tenha achado o filme ruim: ao menos uma cena foi bem recompensadora. Mas, como você disse, o clima é de algo convencional, e até um pouco maçante. De resto, nada que eu não deveria, esperar, também: fiquei igualmente decepcionado com Clube da Luta, que foi o outro filme do Fincher a que assisti. Você recomenda Zodíaco ou Se7en, que são bem elogiados? Tenho vontade de vê-los, mas minhas experiências com o diretor não me dão muito ânimo para isso.

Pedrita disse...

não vi o filme, nem li o livro. talvez veja hj o filme com minha mãe. se a chuva deixar. beijos, pedrita

Luis Felipe disse...

Ok André, seu texto me convenceu!!! Quero muito ler o texto original de Fitzgerald para não ter como parâmetro apenas a versão de Roth, que pelo que você disse, parece-se muito mais com Forrest Gump do que com o conto original...
Parabéns pelo blog, e por James Joyce no perfil...

André Renato disse...

Valeu, galera!

Tuma: O "Se7en" é um clássico contemporâneo, e o "Zodíaco" é um filme extremamente inteligente, estimulante mesmo. Vale muito a pena ver os dois!

Abraços a todos e mais uma vez: obrigado!

Fábio Rockenbach disse...

Texto maravilhoso - o primeiro que eu vi a transcender os limites de uma adaptação, de um filme ou seja lá o que for, e fazer um paralelo aos limites possíveis dessa história a partir do que realmente foi feito originalmente por Fitzgerald.
Vou linkar esse texto aqui direto na capa do Cinefilia...
Abraço

Anônimo disse...

Adorei sua análise, muito boa. Mas eu discordo quanto ao filme, que a meu ver fez uma adaptação extremamente imaginativa, significativa e importante, entendendo o foco do livro e o trabalhando de uma forma lírica e poética.

Ciao!

André Renato disse...

Valeu, Fábio!

You got a point, Wally! Mas, para aproveitar melhor o valor do filme, eu prefiro esquecer que já li o livro e esquecer até que ele existe... rsrsrsrs

Abraços!

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

Conto e filme têm (quase) nada a ver. Aliás, em alguns momentos, o filme chega mais perto do romance "As confissões de Max Tivoli", do americano Andrew Sean Greer do que do conto de Fitzgerald.

Abração

Fernando Caldas disse...

O filme é muito bom. Mas os intelectuais só enxergam com a cabeça (porque precisam ser respeitados por uma comunidade de iguais). Os outros, como eu, choramos ao assitir Benjamim Button, porque as questões cruciais são maiores que qualquer literatura crítica.

Anônimo disse...

Como seria possível explicar a saída da vagina de uma mulher (o nascimento) de um velho de 1.76? No conto a mulher some de uma hora para outra sem explicação, num filme, como se resolveria esta questão mais claramente? Se é que era da intenção de Fitzgegald resolver isso ou deixar a bola para a mente imaginativa do leitor tentar resolver?