Eis que aparece mais um fort(íssimo) concorrente aos melhores de 2008. E não estamos falando apenas dos melhores desenhos animados, mas dos melhores filmes. É incrível. Se Ratatouille (2007) era bom por ser um desenho que parecia um filme (elevando a animação a um nível de arte cinematográfica jamais atingido antes pelos desenhos), WALL-E (EUA, 2008) é bom como poucos filmes “live-action” são bons (o nível artístico aqui é alcançado por poucas películas de “cinema” mesmo). Veja-se bem: já não estamos falando mais do universo dos “cartoons” (nem mesmo daqueles cuja qualidade da animação computadorizada seja para lá de impressionante); o robozinho de WALL-E simplesmente pavimentou o caminho aberto pelo ratinho precedente. A partir de agora, os desenhos animados serão analisados e julgados segundo outros e mais elevados paradigmas, justamente os mesmos paradigmas que usamos para os “filmes de arte”.
Se isso nunca havia ficado claro até agora (pois a história da animação audiovisual – desde os seus princípios – não é de todo desprovida de resultados altamente artísticos), a existência e o sucesso das duas últimas produções da Disney / Pixar é mais do que suficiente para fazer-nos mudar nossos conceitos de “animação infantil”. A vida de quem escreve sobre os filmes que vê é uma vida ingrata: em relação à maioria das fitas que a gente assiste, não dá vontade de escrever uma linha sequer. Não porque sejam ruins, mas porque a maioria dos filmes que há por aí – e que pipocam o tempo todo, de todos os cantos – não nos despertam, não nos tocam em nada; não fedem nem cheiram. Particularmente, fico muito feliz em ver um filme ruim, mas ruim de doer, pois a minha indignação será tanta que precisarei extravasar isso numa “crítica” altamente inflamada.
O difícil é tentar extrair suco de laranjas secas. Preciso confessar que minha formação cinematográfica fundamenta-se em filmes dos anos 70 para trás. Não quero ficar defendendo um classicismo pedante, mas acho fundamental que qualquer nova obra – que nunca nascerá desvinculada de um determinado contexto histórico – saiba dialogar com a tradição, com o passado. Aceitando ou renegando a história, a arte, a cultura (e o entretenimento) não devem jamais se esquecer do que já foi feito antes, como se o mundo começasse neste exato instante, tabula rasa. Por isso, bagagem cultural, artística (em todas as artes, principalmente a cinematográfica), histórica, enfim, o conhecimento de mundo é absolutamente indispensável num diretor, produtor ou roteirista que se dêem à tarefa de “fazer” um filme.
Entretanto, não detecto tal bagagem na maioria dos “novos” cineastas e realizadores. Esses aí não ficarão, não terão qualquer chance de entrar para a história. A arte que fica é sempre aquela que carrega dentro de si a densidade, o peso e o volume de uma história, de uma memória, de um mundo: é a arte de caráter (ou mais ou menos) universal, universalizante. Sem esquecer também, é claro, a relação dialética com o particular. O particular que expressa o universal; o universal que joga outra luz sobre o particular. Quantos filmes buscam e conseguem alcançar esse caráter? Contam-se nos dedos. Assim, são pouquíssimos os filmes atuais que me surpreendem e impressionam. São raros os filmes que despertam em mim o entusiasmo que tenho e tive quando descobri os grandes clássicos do cinema (tal entusiasmo pode não ser do mesmo nível, mas precisa ser da mesma natureza).
São poucos os filmes que nos ensinam a arte do cinema. Mas este ano de 2008, no circuito comercial das salas de exibição brasileiras, já nos presenteou com dois felizes exemplos: Onde Os Fracos Não Têm Vez e WALL-E. Ainda há esperanças para o audiovisual norte-americano. Esperanças que respondem pelos nomes de Joel Coen, Ethan Coen, Peter Jackson, J. J. Abrams, e agora Andrew Stanton, com o seu robozinho enamorado. Stanton é roteirista de quase todas as produções em longa-metragem da Pixar Studios: Toy Story (1995), Toy Story 2 (1999), Vida de Inseto (1998), Monstros S. A. (2001), Procurando Nemo (2003) e este WALL-E (2008). É produtor executivo de Ratatouille (2007) e diretor de Vida de Inseto (co-diretor), Procurando Nemo e agora WALL-E. Aguardamos ansiosamente os próximos trabalhos.
Qual é a “bagagem” de WALL-E? Em primeiro lugar, o melhor da ficção científica. De 2001, Uma Odisséia no Espaço (1968, de Stanley Kubrick), temos o robô-piloto da nave-arca dos humanos, chamado Auto (de piloto AUTOmático, mas no trocadilho com “alto”: no sentido de uma ordem para que se pare qualquer movimento) – do inglês “Halt” – referência ao computador maquiavélico “Hal 9000” da obra de Kubrick / Clarke. E ambos possuem o mesmíssimo e vermelho olho, que já faz parte do folclore da cultura pop contemporânea. De “2001”, também se fazem presentes, na trilha sonora, a valsa “Danúbio Azul” de Johann Strauss Filho e o “Assim Falou Zarathustra” de Richard Strauss, numa cena que talvez seja a melhor (e mais respeitosa, no sentido de tão artística tanto) paródia desse clássico do cinema: se lá tínhamos o “erguer-se” evolutivo dos hominídeos rumo ao super-homem (o über-mensch de Nietzche), aqui ocorre o reerguer-se do ser humano que, de tão “evoluído”, acabou involuindo.
O difícil levantar do obeso capitão da nave é o grande épico pós-moderno. Se os “macacos” de “2001” evoluem utilizando ossos como armas, ossos esses que se transformarão em naves espaciais, os burgueses de WALL-E deverão reaprender a utilizar seus próprios ossos – para lá de atrofiados – em atos motores essenciais a qualquer espécie animal: andar, pegar objetos, etc. De ET, O Extraterrestre (1985, de Steven Spielberg), temos o “design” do robozinho protagonista, o Wall-E (pronuncia-se “Wally”): os olhos, a cabeça, o tronco, os membros e o tamanho, tudo aqui é “copiado” do clássico “infantil” de Spielberg. Também há referências satíricas à folclórica série Star Trek (1967-1969). O visual pós-apocalíptico da (extinta) civilização urbana terrestre é dotado da fascinação de Blade Runner (1981, de Ridley Scott) e da série Mad Max (1979, 1981, 1985, de George Miller).
Agora, no enredo há uma grande referência literária, também no âmbito da ficção científica, contribuindo particularmente para a moral sócio-política desta fábula. Trata-se do romance A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells. Ele mostra um futuro distante no qual a classe burguesa se transforma em uma espécie física e mentalmente desabilitada. O excesso de consumo, de uma vida excessivamente apegada aos confortos da civilização industrial, tornará o homem fraco de corpo e com um intelecto meio estúpido e absolutamente preguiçoso, vivendo apenas para “brincar” e descansar. Em WALL-E, a espécie humana se reduziu a seres tão obesos que vivem e se locomovem em cadeiras flutuantes, tão atrofiada se tornou a sua estrutura óssea. E vivem a consumir “junkie food” e entretenimento barato, totalmente distraídos da realidade ao redor e uns dos outros.
Por exemplo, na “ágora” da nave em que vivem, há uma enorme piscina bem no centro, mas ninguém repara na sua existência. Pelo menos, não até o momento de desequilíbrio da situação mostrada, que será, no fundo, a revolução promovida pelos dois robozinhos protagonistas. Mas a nave-cruzeiro dos sonhos em que vivem, no espaço, nada mais é do que uma versão alegórica dos atuais condomínios fechados, ou de países (como os EUA) que funcionam como condomínios “fechados” em relação ao resto do mundo. A involução intelectual é mostrada muito jocosamente na incapacidade (analfabetismo) do capitão em ler o texto de um manual impresso em papel – aliás, ele fica muito assombrado com esse material (o papel) que nunca vira antes. O mesmo capitão, como líder e representante-mor da espécie humana, não conhece absolutamente nada da história humana, do seu patrimônio cultural (nem mesmo sabe o que é um “baile”) e do planeta Terra.
A ingenuidade dele em querer “plantar pizza” é hilária. Guardadas as devidas proporções – evidentemente –, é uma situação da mesma natureza que já se vê com crianças e adolescentes nas escolas (no Brasil e no exterior). Aí, o caso já não é de se rir, mas de chorar. Uma pesquisa divulgada há pouco tempo revelou que mais da metade dos adolescentes norte-americanos pensa que os EUA foram aliados da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Será que esses jovens nunca sequer viram filmes sobre a II Guerra? Obviamente, culpa-se a Internet por tamanho nível de ignorância e de “preguiça intelectual”. Essa dimensão da memória coletiva, sua perda e o necessário resgate, é uma das mais importantes em WALL-E, no que o filme revela sua profundidade, significado e pertinência histórica.
São bem ricas as relações que se podem fazer (estudando a memória, a coletividade e a história) entre este filme e as idéias do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) – lembrando ainda que ele era fascinado pelo ato de colecionar (assim como o robozinho Wall-E), sendo ele mesmo colecionador de brinquedos, e adorava literatura infantil, escrevendo ensaios muito ricos sobre ela. No ensaio “O Narrador”, Benjamin critica a decadência da experiência coletiva (presente nas epopéias) em função da experiência individual do herói do romance burguês. Em WALL-E, a experiência coletiva está praticamente morta e enterrada: as pessoas circulam paralíticas em suas cadeiras móveis para lá e para cá, cada uma conectada ao seu próprio terminal multimídia. Um contato real entre as pessoas só vai começar a acontecer quando interfere o elemento de desequilíbrio, de desautomatização, de revolução daquele universo: o robô Wall-E e a sua companheira Eva.
Por que Wall-E trará a “revolução”? Além do caráter de Prometeu desse incrível protagonista (que daqui a pouco discutiremos), o robozinho é o colecionador. Como teórico do colecionismo, Walter Benjamin entenderá que cada coisa isolada, fragmento, objeto, ou ruína, por menor e mais insignificante que seja, terá a qualidade e a atribuição de conter dentro de si a totalidade das coisas, do contexto que produziu esse pedaço e que ele ajuda a compor. O todo se revela no singular. Dito isto, passemos a palavra ao próprio filósofo, no livro Passagens:
“Escrever a história significa (...) citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado do seu contexto.”
Desse modo, o robozinho escreve, recompõe a história humana através dos pequenos objetos que ele retira e guarda das ruínas da civilização: isqueiros, garfos, músicas, trechos de filmes: o musical Hello, Dolly! (1969, de Gene Kelly), que funciona como mote para a pequena história de amor entre Wall-E e Eva, e é mais um exemplo de como o filme de Stanton dialoga bem com a tradição cinematográfica. Outro exemplo interessantíssimo de (re)montagem da história através de fragmentos expressivos são os créditos finais, que mostram a nova evolução da humanidade (emagrecendo e repovoando o planeta) em imagens animadas e desenhadas segundo as marcas estilísticas de diversos movimentos da História da Arte: arte egípcia, arte clássica, arte medieval / bizantina, arte renascentista, arte barroca, arte impressionista e arte pré-modernista (o estilo de Cézanne). Quando se achava que o filme não tinha mais como surpreender, eis que até depois do final ele continua dando o seu recado.
Diz o Professor Márcio Seligmann-Silva, tradutor de Benjamin e autor de estudos sobre o filósofo: “O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu contexto, assim como o gesto do catador que ‘reencanta’ o que fora descartado pela sociedade de consumo, são paralelos ao gesto do ‘materialista histórico’ que, com sua historiografia-montagem, visa romper com o continuum da dominação. Esta libertação, para Benjamin, é tanto dos homens como do próprio passado. Para Benjamin, apenas em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passado: (...)”
Não seria Wall-E esse “catador”? O robô chega mesmo a fazer uma montagem artística a partir do lixo, entulho e ferro-velho que encontra (para impressionar a sua Eva); como as instalações daqueles artistas contemporâneos que se aproveitam de tudo o que se joga fora. Nesse sentido, é Wall-E quem – mesmo sendo máquina – rompe a “dominação” do homem e do passado pela própria máquina (o “Halt”), trazendo a “libertação” que recuperará a “memória total do passado”. Essa função do protagonista se torna ainda mais significativa se considerarmos que é ele quem encontra e guarda o único exemplar de vida vegetal a existir na Waste Land que um dia se chamou Terra. Um broto de plantinha que nos faz lembrar os versos de A Flor e a Náusea, de Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
É aí que Wall-E assume um caráter de novo Prometeu, “criador” de um novo homem que há de (re)ssurgir, presenteando-o com o novo fogo que é a plantinha. Castigado pelo velho homem – assim como o titã fora castigado pelos deuses – encontramos primeiramente o robozinho vivendo sua vida solitária no abandono, no exílio das ruínas da Terra “velha”. Posteriormente, ele será perseguido e maltratado pelos últimos representantes do “velho homem”: as máquinas lideradas por “Halt”; no entanto, assim como Prometeu, Wall-E há sempre de se regenerar. Agora, o mais incrível é unir toda essa mitologia clássico-pagã com os mitos judaico-cristãos, representados pela robozinha Eva, que fora enviada como sonda para procurar vida vegetal que possibilite a recolonização do planeta, e que se tornará companheira e par romântico de Wall-E. São muito expressivas as imagens dos dois numa Terra devastada.
Ela descobrirá a plantinha encontrada por Wall-E e a tomará dele. Tal plantinha, como um novo fruto proibido, provocará uma total ruptura no equilíbrio estagnado, “a-histórico” dos últimos remanescentes da humanidade (este momento teria tanto de Apocalipse quanto de Gênese), dominados por um deus (“Halt”) intransigente. No entanto, essa ruptura, essa nova queda do Paraíso, longe de ser o fim, de ser a desgraça absoluta, dará origem à (nova) história, à (nova) evolução do ser humano por suas próprias forças, num ambiente em que o sustento não será mais provido por algum deus, mas será cultivado pela força do próprio homem. Nesse ponto, o enredo do filme se propõe uma nova Bíblia para uma nova humanidade, mas uma bíblia igual à antiga (pois a questão é relembrar valores abandonados). Há aí também uma dimensão nietzcheana (o “super-homem”), justificando mais ainda as referências a 2001.
A nave / jardim do Éden habitada por aqueles homens chama-se Axioma. Um “axioma” é uma verdade evidente, que não precisa ser demonstrada. Ou seja, o significado alegórico dessa bolha social é evidente. A mensagem do filme é evidente: a nossa sociedade é aquela nave, nós somos aquelas pessoas ridículas. Não seriam necessárias maiores explicações. Basta olhar e ver. De qualquer modo, a nave possui ares também de uma nova Arca de Noé, escapada do dilúvio provocado pelo próprio homem crendo-se no lugar de Deus. Eva é a pomba enviada para descobrir se há “terras secas”. Enfim, a intersecção de mitos pagãos e cristãos – Prometeu e Eva dando origem à nova humanidade – pode ser lida numa chave multiculturalista ou, melhor ainda, numa chave arquetípica. Como as melhores fábulas, WALL-E é carregado de arquétipos humanos dos mais essenciais.
Voltando a Walter Benjamin, diz a professora Sônia Kramer a respeito do filósofo: “Sem negar que os conhecimentos e as atitudes humanas mudaram, ele recusa o mito do progresso da humanidade, que seria resultado de descobertas técnicas, da evolução das forças produtivas ou da dominação crescente sobre a natureza. Propõe a ruptura do ‘era uma vez’, com um tempo pleno de ‘agoras’, em que passado, presente e futuro se cruzam.” Ora, o filme parece também recusar o mito do “progresso” técnico-produtivo; a sua mensagem anti-consumista é evidente. Contanto, é claro, que entendamos que “consumo” e “consumismo” são coisas bem diferentes. O cruzamento dos tempos é o que propõe a obra de Stanton, misturando também os planos da fabulação (o enredo) e do discurso (a linguagem fílmica):
o passado da humanidade (esquecido) e o passado do cinema (citado no discurso do filme), o presente diegético (momento de ruptura) e o nosso presente do mundo real (alegorizado pelo futuro mostrado no filme), o futuro (tanto o daquela nova humanidade quanto o futuro de nossa sociedade presente, e também o futuro do cinema e das animações digitais, dotados cada vez mais de qualidade tecnológica e artística). Continua a professora: “Para Benjamin, ‘em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela’, porque o passado e o presente se conectam e se reorganizam em novas constelações.” Essa tarefa de “acordar” a tradição, que para Walter Benjamin caberá ao intelectual, é exercida no desenho pelos robôs Wall-E e Eva (Prometeu e Eva).
Quanto à conexão e reorganização do passado e do presente em novas constelações, é nesta chave que deve ser entendida as múltiplas referências – culturais, literárias e cinematográficas – tecidas por WALL-E. Ao contrário de muitos filmes contemporâneos bem cotados pela crítica, este não é apenas uma colcha de retalhos subserviente às suas fontes. O filme é criativo, tem uma força sua, uma força única, autêntica. Equilibra muito bem o seu discurso, na medida em que é formado por elementos já existentes, mas organizado de maneira a dizer coisas novas, de um modo novo. O robozinho, como já bem mostrou a crítica, tem uma base em Chaplin e Keaton – o fato de a maior parte do filme ser “mudo” possui mais de um significado, como ainda veremos.
No fundo, este filme já estava como que anunciado. A Pixar é famosa por ótimas animações computadorizadas em curta-metragem, envolvendo um humor apegado simplesmente a gags visuais (a essência do cinema mudo). Os melhores desses curtas (como Gery’s Game) foram recentemente reunidos no DVD Pixar Short Films Collection. Como abertura a WALL-E, vemos mais uma pepita: Presto, também repleto de referências clássicas. Assim, já estava demorando para fazerem um longa de gags “mudas”. A proposta, é claro, é arriscada: será que as platéias contemporâneas (o cinema falado existe há mais de 70 anos)teriam disposição para ver um filme assim? A resposta parece ser positiva. A Dreamworks também sabe disso: basta ver o curta que deu origem a Era do Gelo (2002).
Ainda em Benjamin: “O filósofo se refere ao presente como momento revolucionário e ao passado como obra inacabada sobre a qual devemos trabalhar (...). A tarefa que temos é tornar presente o tempo escondido sob ruínas da história universal, vinculando-nos aos que nos precederam e foram vitimados pela barbárie (...). Benjamin critica a história como continuidade, procurando na descontinuidade momentos críticos, quando mudanças podem ocorrer.” Através dos objetos colecionados, o robozinho torna presente o tempo escondido sob as ruínas da história, vinculando-se afetivamente – por que não? – aos que forma vitimados. Daí a sua paixão por música e pelo filme Hello, Dolly!. Nisto reside a humanidade do robô: no ato de colecionar e imaginar outra vida (a vida amorosa), ele vai além daquilo para o qual foi programado.
Ou melhor, ele continua exercendo sua programação, como um bom trabalhador (os robôs da série wall-e são coletores e compactadores de lixo), e são impressionantes os arranha-céus que ele construiu de lixo compactado – durante um tempo tão longo quanto a força das imagens sugere. Mas o ato de selecionar e guardar pessoalmente certos objetos, re-encantando-os com isso, não faz parte do trabalho. Nesse sentido, as verdadeiras máquinas automatizadas são os seres humanos na Axioma. E é o que dirá Walter Benjamin: “Por entender que a experiência se configura como um traço cultural enraizado na tradição e não se situa apenas no nível ‘psicológico’, Benjamin ‘denuncia o caráter medíocre da experiência no mundo moderno’. O desencanto do mundo na era capitalista significa o declínio da experiência humana coletiva.
Para ele, ‘a felicidade não está no tesouro encontrado, mas no trabalho de escavar a terra’. Na era industrial, porém, gestos repetitivos e mecânicos tornam a experiência cada vez mais imune a choques; o comportamento torna-se reativo, a memória é liquidada. A perda da experiência está ligada à mudança dos seres humanos em autômatos, peças da linha de montagem, sem significado.” Não parece uma descrição exata do que acontece na “Axioma”? Quer dizer, a fala do filósofo é uma verdade axiomática. A perda da capacidade de narrar é a perda da memória, que é a perda do passado, que é a perda da coletividade, que será por fim a perda da humanidade. O filme mostra muito claramente essas coisas. Quem é que esperaria da Disney um filme tão “subversivo”?
Como último argumento, WALL-E é um ótimo filme por uma razão muito simples: é um filme no qual as próprias imagens contam a história. As imagens nos fazem entender os acontecimentos, o caráter e o estado dos personagens e os temas discutidos através deles. Eis o cinema puro. Para que diálogos, quando se pode dispor da força incrível das imagens, e de imagens produzidas com uma tecnologia digital cada vez mais impressionante – a qualidade da animação gráfica aqui é algo que parece muito além de qualquer desenho mais recente, seja da Pixar / Disney ou Dreamworks. O começo da fita já revela toda a força e a surpresa: o robozinho em suas atividades cotidianas, sozinho numa terra devastada (sua companhia é apenas uma barata). A pequenez do personagem e a vastidão do cenário. Há algo melancólico, ridículo, absurdo, mas ao mesmo tempo simpático, sublime nessa apresentação. A trilha sonora (apenas notas melancólicas) dá o toque definitivo. Quem é que esperaria isso da mais nova produção da Pixar / Disney?
Se isso nunca havia ficado claro até agora (pois a história da animação audiovisual – desde os seus princípios – não é de todo desprovida de resultados altamente artísticos), a existência e o sucesso das duas últimas produções da Disney / Pixar é mais do que suficiente para fazer-nos mudar nossos conceitos de “animação infantil”. A vida de quem escreve sobre os filmes que vê é uma vida ingrata: em relação à maioria das fitas que a gente assiste, não dá vontade de escrever uma linha sequer. Não porque sejam ruins, mas porque a maioria dos filmes que há por aí – e que pipocam o tempo todo, de todos os cantos – não nos despertam, não nos tocam em nada; não fedem nem cheiram. Particularmente, fico muito feliz em ver um filme ruim, mas ruim de doer, pois a minha indignação será tanta que precisarei extravasar isso numa “crítica” altamente inflamada.
O difícil é tentar extrair suco de laranjas secas. Preciso confessar que minha formação cinematográfica fundamenta-se em filmes dos anos 70 para trás. Não quero ficar defendendo um classicismo pedante, mas acho fundamental que qualquer nova obra – que nunca nascerá desvinculada de um determinado contexto histórico – saiba dialogar com a tradição, com o passado. Aceitando ou renegando a história, a arte, a cultura (e o entretenimento) não devem jamais se esquecer do que já foi feito antes, como se o mundo começasse neste exato instante, tabula rasa. Por isso, bagagem cultural, artística (em todas as artes, principalmente a cinematográfica), histórica, enfim, o conhecimento de mundo é absolutamente indispensável num diretor, produtor ou roteirista que se dêem à tarefa de “fazer” um filme.
Entretanto, não detecto tal bagagem na maioria dos “novos” cineastas e realizadores. Esses aí não ficarão, não terão qualquer chance de entrar para a história. A arte que fica é sempre aquela que carrega dentro de si a densidade, o peso e o volume de uma história, de uma memória, de um mundo: é a arte de caráter (ou mais ou menos) universal, universalizante. Sem esquecer também, é claro, a relação dialética com o particular. O particular que expressa o universal; o universal que joga outra luz sobre o particular. Quantos filmes buscam e conseguem alcançar esse caráter? Contam-se nos dedos. Assim, são pouquíssimos os filmes atuais que me surpreendem e impressionam. São raros os filmes que despertam em mim o entusiasmo que tenho e tive quando descobri os grandes clássicos do cinema (tal entusiasmo pode não ser do mesmo nível, mas precisa ser da mesma natureza).
São poucos os filmes que nos ensinam a arte do cinema. Mas este ano de 2008, no circuito comercial das salas de exibição brasileiras, já nos presenteou com dois felizes exemplos: Onde Os Fracos Não Têm Vez e WALL-E. Ainda há esperanças para o audiovisual norte-americano. Esperanças que respondem pelos nomes de Joel Coen, Ethan Coen, Peter Jackson, J. J. Abrams, e agora Andrew Stanton, com o seu robozinho enamorado. Stanton é roteirista de quase todas as produções em longa-metragem da Pixar Studios: Toy Story (1995), Toy Story 2 (1999), Vida de Inseto (1998), Monstros S. A. (2001), Procurando Nemo (2003) e este WALL-E (2008). É produtor executivo de Ratatouille (2007) e diretor de Vida de Inseto (co-diretor), Procurando Nemo e agora WALL-E. Aguardamos ansiosamente os próximos trabalhos.
Qual é a “bagagem” de WALL-E? Em primeiro lugar, o melhor da ficção científica. De 2001, Uma Odisséia no Espaço (1968, de Stanley Kubrick), temos o robô-piloto da nave-arca dos humanos, chamado Auto (de piloto AUTOmático, mas no trocadilho com “alto”: no sentido de uma ordem para que se pare qualquer movimento) – do inglês “Halt” – referência ao computador maquiavélico “Hal 9000” da obra de Kubrick / Clarke. E ambos possuem o mesmíssimo e vermelho olho, que já faz parte do folclore da cultura pop contemporânea. De “2001”, também se fazem presentes, na trilha sonora, a valsa “Danúbio Azul” de Johann Strauss Filho e o “Assim Falou Zarathustra” de Richard Strauss, numa cena que talvez seja a melhor (e mais respeitosa, no sentido de tão artística tanto) paródia desse clássico do cinema: se lá tínhamos o “erguer-se” evolutivo dos hominídeos rumo ao super-homem (o über-mensch de Nietzche), aqui ocorre o reerguer-se do ser humano que, de tão “evoluído”, acabou involuindo.
O difícil levantar do obeso capitão da nave é o grande épico pós-moderno. Se os “macacos” de “2001” evoluem utilizando ossos como armas, ossos esses que se transformarão em naves espaciais, os burgueses de WALL-E deverão reaprender a utilizar seus próprios ossos – para lá de atrofiados – em atos motores essenciais a qualquer espécie animal: andar, pegar objetos, etc. De ET, O Extraterrestre (1985, de Steven Spielberg), temos o “design” do robozinho protagonista, o Wall-E (pronuncia-se “Wally”): os olhos, a cabeça, o tronco, os membros e o tamanho, tudo aqui é “copiado” do clássico “infantil” de Spielberg. Também há referências satíricas à folclórica série Star Trek (1967-1969). O visual pós-apocalíptico da (extinta) civilização urbana terrestre é dotado da fascinação de Blade Runner (1981, de Ridley Scott) e da série Mad Max (1979, 1981, 1985, de George Miller).
Agora, no enredo há uma grande referência literária, também no âmbito da ficção científica, contribuindo particularmente para a moral sócio-política desta fábula. Trata-se do romance A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells. Ele mostra um futuro distante no qual a classe burguesa se transforma em uma espécie física e mentalmente desabilitada. O excesso de consumo, de uma vida excessivamente apegada aos confortos da civilização industrial, tornará o homem fraco de corpo e com um intelecto meio estúpido e absolutamente preguiçoso, vivendo apenas para “brincar” e descansar. Em WALL-E, a espécie humana se reduziu a seres tão obesos que vivem e se locomovem em cadeiras flutuantes, tão atrofiada se tornou a sua estrutura óssea. E vivem a consumir “junkie food” e entretenimento barato, totalmente distraídos da realidade ao redor e uns dos outros.
Por exemplo, na “ágora” da nave em que vivem, há uma enorme piscina bem no centro, mas ninguém repara na sua existência. Pelo menos, não até o momento de desequilíbrio da situação mostrada, que será, no fundo, a revolução promovida pelos dois robozinhos protagonistas. Mas a nave-cruzeiro dos sonhos em que vivem, no espaço, nada mais é do que uma versão alegórica dos atuais condomínios fechados, ou de países (como os EUA) que funcionam como condomínios “fechados” em relação ao resto do mundo. A involução intelectual é mostrada muito jocosamente na incapacidade (analfabetismo) do capitão em ler o texto de um manual impresso em papel – aliás, ele fica muito assombrado com esse material (o papel) que nunca vira antes. O mesmo capitão, como líder e representante-mor da espécie humana, não conhece absolutamente nada da história humana, do seu patrimônio cultural (nem mesmo sabe o que é um “baile”) e do planeta Terra.
A ingenuidade dele em querer “plantar pizza” é hilária. Guardadas as devidas proporções – evidentemente –, é uma situação da mesma natureza que já se vê com crianças e adolescentes nas escolas (no Brasil e no exterior). Aí, o caso já não é de se rir, mas de chorar. Uma pesquisa divulgada há pouco tempo revelou que mais da metade dos adolescentes norte-americanos pensa que os EUA foram aliados da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Será que esses jovens nunca sequer viram filmes sobre a II Guerra? Obviamente, culpa-se a Internet por tamanho nível de ignorância e de “preguiça intelectual”. Essa dimensão da memória coletiva, sua perda e o necessário resgate, é uma das mais importantes em WALL-E, no que o filme revela sua profundidade, significado e pertinência histórica.
São bem ricas as relações que se podem fazer (estudando a memória, a coletividade e a história) entre este filme e as idéias do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) – lembrando ainda que ele era fascinado pelo ato de colecionar (assim como o robozinho Wall-E), sendo ele mesmo colecionador de brinquedos, e adorava literatura infantil, escrevendo ensaios muito ricos sobre ela. No ensaio “O Narrador”, Benjamin critica a decadência da experiência coletiva (presente nas epopéias) em função da experiência individual do herói do romance burguês. Em WALL-E, a experiência coletiva está praticamente morta e enterrada: as pessoas circulam paralíticas em suas cadeiras móveis para lá e para cá, cada uma conectada ao seu próprio terminal multimídia. Um contato real entre as pessoas só vai começar a acontecer quando interfere o elemento de desequilíbrio, de desautomatização, de revolução daquele universo: o robô Wall-E e a sua companheira Eva.
Por que Wall-E trará a “revolução”? Além do caráter de Prometeu desse incrível protagonista (que daqui a pouco discutiremos), o robozinho é o colecionador. Como teórico do colecionismo, Walter Benjamin entenderá que cada coisa isolada, fragmento, objeto, ou ruína, por menor e mais insignificante que seja, terá a qualidade e a atribuição de conter dentro de si a totalidade das coisas, do contexto que produziu esse pedaço e que ele ajuda a compor. O todo se revela no singular. Dito isto, passemos a palavra ao próprio filósofo, no livro Passagens:
“Escrever a história significa (...) citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado do seu contexto.”
Desse modo, o robozinho escreve, recompõe a história humana através dos pequenos objetos que ele retira e guarda das ruínas da civilização: isqueiros, garfos, músicas, trechos de filmes: o musical Hello, Dolly! (1969, de Gene Kelly), que funciona como mote para a pequena história de amor entre Wall-E e Eva, e é mais um exemplo de como o filme de Stanton dialoga bem com a tradição cinematográfica. Outro exemplo interessantíssimo de (re)montagem da história através de fragmentos expressivos são os créditos finais, que mostram a nova evolução da humanidade (emagrecendo e repovoando o planeta) em imagens animadas e desenhadas segundo as marcas estilísticas de diversos movimentos da História da Arte: arte egípcia, arte clássica, arte medieval / bizantina, arte renascentista, arte barroca, arte impressionista e arte pré-modernista (o estilo de Cézanne). Quando se achava que o filme não tinha mais como surpreender, eis que até depois do final ele continua dando o seu recado.
Diz o Professor Márcio Seligmann-Silva, tradutor de Benjamin e autor de estudos sobre o filósofo: “O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu contexto, assim como o gesto do catador que ‘reencanta’ o que fora descartado pela sociedade de consumo, são paralelos ao gesto do ‘materialista histórico’ que, com sua historiografia-montagem, visa romper com o continuum da dominação. Esta libertação, para Benjamin, é tanto dos homens como do próprio passado. Para Benjamin, apenas em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passado: (...)”
Não seria Wall-E esse “catador”? O robô chega mesmo a fazer uma montagem artística a partir do lixo, entulho e ferro-velho que encontra (para impressionar a sua Eva); como as instalações daqueles artistas contemporâneos que se aproveitam de tudo o que se joga fora. Nesse sentido, é Wall-E quem – mesmo sendo máquina – rompe a “dominação” do homem e do passado pela própria máquina (o “Halt”), trazendo a “libertação” que recuperará a “memória total do passado”. Essa função do protagonista se torna ainda mais significativa se considerarmos que é ele quem encontra e guarda o único exemplar de vida vegetal a existir na Waste Land que um dia se chamou Terra. Um broto de plantinha que nos faz lembrar os versos de A Flor e a Náusea, de Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
É aí que Wall-E assume um caráter de novo Prometeu, “criador” de um novo homem que há de (re)ssurgir, presenteando-o com o novo fogo que é a plantinha. Castigado pelo velho homem – assim como o titã fora castigado pelos deuses – encontramos primeiramente o robozinho vivendo sua vida solitária no abandono, no exílio das ruínas da Terra “velha”. Posteriormente, ele será perseguido e maltratado pelos últimos representantes do “velho homem”: as máquinas lideradas por “Halt”; no entanto, assim como Prometeu, Wall-E há sempre de se regenerar. Agora, o mais incrível é unir toda essa mitologia clássico-pagã com os mitos judaico-cristãos, representados pela robozinha Eva, que fora enviada como sonda para procurar vida vegetal que possibilite a recolonização do planeta, e que se tornará companheira e par romântico de Wall-E. São muito expressivas as imagens dos dois numa Terra devastada.
Ela descobrirá a plantinha encontrada por Wall-E e a tomará dele. Tal plantinha, como um novo fruto proibido, provocará uma total ruptura no equilíbrio estagnado, “a-histórico” dos últimos remanescentes da humanidade (este momento teria tanto de Apocalipse quanto de Gênese), dominados por um deus (“Halt”) intransigente. No entanto, essa ruptura, essa nova queda do Paraíso, longe de ser o fim, de ser a desgraça absoluta, dará origem à (nova) história, à (nova) evolução do ser humano por suas próprias forças, num ambiente em que o sustento não será mais provido por algum deus, mas será cultivado pela força do próprio homem. Nesse ponto, o enredo do filme se propõe uma nova Bíblia para uma nova humanidade, mas uma bíblia igual à antiga (pois a questão é relembrar valores abandonados). Há aí também uma dimensão nietzcheana (o “super-homem”), justificando mais ainda as referências a 2001.
A nave / jardim do Éden habitada por aqueles homens chama-se Axioma. Um “axioma” é uma verdade evidente, que não precisa ser demonstrada. Ou seja, o significado alegórico dessa bolha social é evidente. A mensagem do filme é evidente: a nossa sociedade é aquela nave, nós somos aquelas pessoas ridículas. Não seriam necessárias maiores explicações. Basta olhar e ver. De qualquer modo, a nave possui ares também de uma nova Arca de Noé, escapada do dilúvio provocado pelo próprio homem crendo-se no lugar de Deus. Eva é a pomba enviada para descobrir se há “terras secas”. Enfim, a intersecção de mitos pagãos e cristãos – Prometeu e Eva dando origem à nova humanidade – pode ser lida numa chave multiculturalista ou, melhor ainda, numa chave arquetípica. Como as melhores fábulas, WALL-E é carregado de arquétipos humanos dos mais essenciais.
Voltando a Walter Benjamin, diz a professora Sônia Kramer a respeito do filósofo: “Sem negar que os conhecimentos e as atitudes humanas mudaram, ele recusa o mito do progresso da humanidade, que seria resultado de descobertas técnicas, da evolução das forças produtivas ou da dominação crescente sobre a natureza. Propõe a ruptura do ‘era uma vez’, com um tempo pleno de ‘agoras’, em que passado, presente e futuro se cruzam.” Ora, o filme parece também recusar o mito do “progresso” técnico-produtivo; a sua mensagem anti-consumista é evidente. Contanto, é claro, que entendamos que “consumo” e “consumismo” são coisas bem diferentes. O cruzamento dos tempos é o que propõe a obra de Stanton, misturando também os planos da fabulação (o enredo) e do discurso (a linguagem fílmica):
o passado da humanidade (esquecido) e o passado do cinema (citado no discurso do filme), o presente diegético (momento de ruptura) e o nosso presente do mundo real (alegorizado pelo futuro mostrado no filme), o futuro (tanto o daquela nova humanidade quanto o futuro de nossa sociedade presente, e também o futuro do cinema e das animações digitais, dotados cada vez mais de qualidade tecnológica e artística). Continua a professora: “Para Benjamin, ‘em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela’, porque o passado e o presente se conectam e se reorganizam em novas constelações.” Essa tarefa de “acordar” a tradição, que para Walter Benjamin caberá ao intelectual, é exercida no desenho pelos robôs Wall-E e Eva (Prometeu e Eva).
Quanto à conexão e reorganização do passado e do presente em novas constelações, é nesta chave que deve ser entendida as múltiplas referências – culturais, literárias e cinematográficas – tecidas por WALL-E. Ao contrário de muitos filmes contemporâneos bem cotados pela crítica, este não é apenas uma colcha de retalhos subserviente às suas fontes. O filme é criativo, tem uma força sua, uma força única, autêntica. Equilibra muito bem o seu discurso, na medida em que é formado por elementos já existentes, mas organizado de maneira a dizer coisas novas, de um modo novo. O robozinho, como já bem mostrou a crítica, tem uma base em Chaplin e Keaton – o fato de a maior parte do filme ser “mudo” possui mais de um significado, como ainda veremos.
No fundo, este filme já estava como que anunciado. A Pixar é famosa por ótimas animações computadorizadas em curta-metragem, envolvendo um humor apegado simplesmente a gags visuais (a essência do cinema mudo). Os melhores desses curtas (como Gery’s Game) foram recentemente reunidos no DVD Pixar Short Films Collection. Como abertura a WALL-E, vemos mais uma pepita: Presto, também repleto de referências clássicas. Assim, já estava demorando para fazerem um longa de gags “mudas”. A proposta, é claro, é arriscada: será que as platéias contemporâneas (o cinema falado existe há mais de 70 anos)teriam disposição para ver um filme assim? A resposta parece ser positiva. A Dreamworks também sabe disso: basta ver o curta que deu origem a Era do Gelo (2002).
Ainda em Benjamin: “O filósofo se refere ao presente como momento revolucionário e ao passado como obra inacabada sobre a qual devemos trabalhar (...). A tarefa que temos é tornar presente o tempo escondido sob ruínas da história universal, vinculando-nos aos que nos precederam e foram vitimados pela barbárie (...). Benjamin critica a história como continuidade, procurando na descontinuidade momentos críticos, quando mudanças podem ocorrer.” Através dos objetos colecionados, o robozinho torna presente o tempo escondido sob as ruínas da história, vinculando-se afetivamente – por que não? – aos que forma vitimados. Daí a sua paixão por música e pelo filme Hello, Dolly!. Nisto reside a humanidade do robô: no ato de colecionar e imaginar outra vida (a vida amorosa), ele vai além daquilo para o qual foi programado.
Ou melhor, ele continua exercendo sua programação, como um bom trabalhador (os robôs da série wall-e são coletores e compactadores de lixo), e são impressionantes os arranha-céus que ele construiu de lixo compactado – durante um tempo tão longo quanto a força das imagens sugere. Mas o ato de selecionar e guardar pessoalmente certos objetos, re-encantando-os com isso, não faz parte do trabalho. Nesse sentido, as verdadeiras máquinas automatizadas são os seres humanos na Axioma. E é o que dirá Walter Benjamin: “Por entender que a experiência se configura como um traço cultural enraizado na tradição e não se situa apenas no nível ‘psicológico’, Benjamin ‘denuncia o caráter medíocre da experiência no mundo moderno’. O desencanto do mundo na era capitalista significa o declínio da experiência humana coletiva.
Para ele, ‘a felicidade não está no tesouro encontrado, mas no trabalho de escavar a terra’. Na era industrial, porém, gestos repetitivos e mecânicos tornam a experiência cada vez mais imune a choques; o comportamento torna-se reativo, a memória é liquidada. A perda da experiência está ligada à mudança dos seres humanos em autômatos, peças da linha de montagem, sem significado.” Não parece uma descrição exata do que acontece na “Axioma”? Quer dizer, a fala do filósofo é uma verdade axiomática. A perda da capacidade de narrar é a perda da memória, que é a perda do passado, que é a perda da coletividade, que será por fim a perda da humanidade. O filme mostra muito claramente essas coisas. Quem é que esperaria da Disney um filme tão “subversivo”?
Como último argumento, WALL-E é um ótimo filme por uma razão muito simples: é um filme no qual as próprias imagens contam a história. As imagens nos fazem entender os acontecimentos, o caráter e o estado dos personagens e os temas discutidos através deles. Eis o cinema puro. Para que diálogos, quando se pode dispor da força incrível das imagens, e de imagens produzidas com uma tecnologia digital cada vez mais impressionante – a qualidade da animação gráfica aqui é algo que parece muito além de qualquer desenho mais recente, seja da Pixar / Disney ou Dreamworks. O começo da fita já revela toda a força e a surpresa: o robozinho em suas atividades cotidianas, sozinho numa terra devastada (sua companhia é apenas uma barata). A pequenez do personagem e a vastidão do cenário. Há algo melancólico, ridículo, absurdo, mas ao mesmo tempo simpático, sublime nessa apresentação. A trilha sonora (apenas notas melancólicas) dá o toque definitivo. Quem é que esperaria isso da mais nova produção da Pixar / Disney?
10 comentários:
André, seu texto ta brilhante! Parabéns! Agora já fico com vergonha de escrever uma crítica, rsrsrrs. Mas nossas visões foram muito, muito parecidas.
Adorei esse filme. SENSACIONAL!
Ciao!
Porra, na moral, que texto incrivel, um texto assim como o filme, que seduz, que instiga o espectador.
Acho que só eu que coloquei o filme entre apenas o bom ... Mas deixa para lá, o mais importante para mim foi que apesar de alguns pontos negativos, é uma das coisas mais belas já feitas ...
abraços
André, como é bom ver que o robozinho da Pixar está suscitando tantos textos reflexivos. Sua análise está muito boa. Gostei especialmente do que você diz sobre a referência a "Assim Falou Zaratustra". E o lance do Prometeu também me bateu depois. O diretor diz que tem disso mesmo no personagem. Muito bem sacado. A Pixar vem fazendo um senhor cinema de autor, hã? hehehe :)
[]s!
Mais uma vez o texto desse André vai além, muito além, de uma crítica de cinema!!
Sinceramente, wall-e também me encantou como há tempos eu não me encantava. E acabei por redescobrir hoje as minha antigas coleções, desde pedras até botões! E meu cubo mágico ainda montado desde a última vez que consegui.
E realmente, os créditos foram incríveis. Até mesmo no fim os desenhos estilo video games!!
A trilha sonora também estava impecável. Uma parte que me marcou muito foi quando wall-e e eva se apresentam. A procura pela sonoridade.
A animação acabou sendo além de uma valorização de valores, também uma incrível valorização dos sentidos. E creio nunca conseguir esquecer os dedos dos dois se cruzando.
e vou tentar comentar mais vezes aqui, André. De verdade. Vou dar um jeito de ir mais ao cinema nesse mês... ao menos ele começou bem!
Carol Fiori.
Valeu pelo apoio, galera! Só mesmo os melhores filmes despertam tantas e tão vivas reações!
Simplesmente o melhor filme de 2008 e a melhor animação já feita. Acredito que isso baste.
Ótima crítica.
Costuma se dizer que as obras são muito mais importantes do que as críticas. Octávio paz dizia que um poema, por menor que seja, explica melhor o que é poesia do que um enorme tratado sobre o tema.Contudo, acho que sua crítica é tão sublime quanto o filme. Me fez compreender e apreciar de maneira mais intensa a animaç~~ão. concordo, Wall-E é um trabalho diferente dos filmes de animação. Hà nele um sarcamo, uma ironia não comun aos filmes da disney- que na maioria das vezes propõe apenas mensagens de bom carácter, de bons modos, uma esécie de moral cristã decadente. Wall-e realmente nos ensina a apreciar o cinema de animação por outros vieses.
parabéns
O grande desafio de um crítico é,para mim, saber dissecar amorosamente seu objeto de estudo. Fazer critica não é como desmontar um relógio. O ensaio,como eu o penso, deve ser esta mistura de intuição e rigor, deve conter um formalismo relaxado. Isto vc conseguiu,e por isso está de PARABÉNS. O diálogo explícito com Benjamin (fim da narração e da experiência) e implícito com Jung mostra sua sensibilidade de "escutar" a obra e não, como fazem em geral os alunos de pós-graduação,empurrar na obra,por goela abaixo, uma teoria. Parabéns mesmo, cara.
Concordo, André: WALL-E conquista um pedaço na história do cinema.
É um dos felizes momentos em que as intenções e os resultados se grudam indissoluvelmente...
(bota organicidade nisso)
Sua análise é brilhante, sobrando pouco espaço para complementos...
ainda assim, não resisto dar um pitaco rsrs
- Intencional ou não, o nome do robozinho remete no mínimo a outras 2 referências... (pra mim, pelo menos). Primeiro ao álbum conceitual do Pink Floyd; a contundência e o vigor das letras se emprestam um tanto à animação...
- A outra (mais óbvia) tem um tanto a ver com a questão do colecionador que você abordou tão bem: é a 'coleção' 'onde está o wally' mesmo... e aí dá pra pirar... rs O trabalho de 'escavação', de seleção dos objetos pelo robozinho em meio ao lixo... se pensarmos na brincadeira de encontrar o Wally, é como buscar no 'lixo' do excesso, da poluição visual (e outras), a 'informação' relevante, o objeto de valor: o que serve à construção da memória... etc e tals que você já apontou com muito mais competência...
- Realmente: fundamental boa parte do filme não ter palavras... é possível entender na perda do referencial, da memória, como você apontou, a perda da comunicação (entre os tempos, mas entre os seres também). A recuperação dos esforços no sentido da comunicação (do entendimento, do diálogo), é provocada pela presença do elemento "externo": fruto proibido, a plantinha, a VIDA, imediatamente paralela ao sentimento que atrai o robô para Eva (e ao momento em que isso ocorre). Dá pra viajar tb no que a comunicação representa para a homem na fruição da vida...
- Não dá pra evitar enxergar o W.Bush no comandante em seu período alienado, ignorante e infantil... rsrs
- Finalmente (talvez o mais importante), seguindo seu raciocínio sobre as referências todas ao próprio cinema, à 'bagagem anterior', ao diálogo + à importância da narrativa, é perceber o papel privilegiado da Arte na Cultura em significado amplo, ou, se preferir, o papel privilegiado da cultura em sentido restrito, na civilização humana e uma sua (possível?) evolução...
...
bj
Ótimas sacadas, Mônica!
A referência ao Wally dá muito mesmo o que pensar. A informação relevante no meio da poluição visual/informativa é um tema atualíssimo, ainda mais em tempos de internet...
Valeu!
Bj
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