sexta-feira, setembro 14, 2007

Cinema, Aspirinas e Urubus


Cinema, Aspirinas e Urubus é um filme que chama a atenção. Chama a atenção porque é diferente de muita coisa que se vê na produção nacional da atualidade. E o melhor é que a película de Marcelo Gomes chama a atenção não pela simples e pueril razão de “chamar a atenção” – que é justamente o que ocorre com muito do cinema tupiniquim, particularmente com o do seu conterrâneo Cláudio Assis. Cinema, Aspirinas e Urubus é verdadeiramente dotado de uma densidade poética, que carrega muito o que dizer e mostrar. Tal densidade nunca se desloca do foco essencialmente humano. O homem é o elemento mais importante, muito mais do que o ambiente físico ou o meio social. O filme exala uma paixão e um respeito reverentes pela humanidade. Um olhar abrangente e livre em cima dos personagens, um olhar que não julga, que não “analisa”, que não busca compreender ou explicar dentro de categorias muitas vezes questionáveis, um olhar que simplesmente vê. E ponto. Não é isso o que deveria ser o Cinema? No entanto, já é muito mais do que se pode pedir da moda “naturalista” que assola a nossa sétima arte e os seus filmes “de tese”.

É claro que Cinema, Aspirinas e Urubus mostra muitas coisas sobre as quais o espectador pode – e deve – exercer um julgamento discernente. Mas isso caberá ao espectador. O filme em si, em seu próprio discurso, não se encaminha para qualquer linha argumentativa, não defende nenhuma “tese”. É uma obra aberta. Como a vida é aberta. Como o homem é aberto. Repito: Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra notável porque não apresenta os vícios e as afetações que infestam o cinema brasileiro contemporâneo. É um filme sóbrio e sereno: na fotografia, na montagem e na direção dos atores (isso é o melhor, pois os atores aqui passam longe daquela afetação teatral-televisiva que polui muitos filmes com pretensão a serem “grande arte”). A fita de Marcelo Gomes deixa-se levar natural e espontaneamente, como um rio, pelo embalo de suas próprias forças simples – particularmente o enredo (minimalista e fluente, bem amarrado e centrado no cotidiano, quase “neo-realista”) e os personagens. Se o problema tão falado do nosso cinema é o roteiro, este filme é a solução.

Cinema, Aspirinas e Urubus passa longe de virtuosismos barrocos / parnasianos. É claro que a estética do filme é muito bem trabalhada, mas sempre e exclusivamente a serviço do conteúdo humano, trabalhado de maneira sadia. É o que fazem as grandes obras de arte. Só o fato de chamá-lo de “road movie” já seria uma pretensão, um excesso de análise e de categorização racionalizante a que o filme não se propõe de maneira alguma. O máximo de análise a que nos permitimos aqui é dizer que Cinema, Aspirinas e Urubus trata de grandes temas (a seca no sertão nordestino, a Segunda Guerra Mundial) sem descair para a pretensão, a prepotência ou a auto-indulgência. Repito: a humanidade simples dos fatos e questões humanas essenciais é o que prevalece. O filme une o particular e o universal, o micro e o macro de maneira admiravelmente equilibrada e pertinente. Isso é raro de se atingir. A tensão entre esses elementos opostos – que não obstante se unem e se igualam – é o que faz a força e a beleza da película.

Deixo para que o leitor reflita sobre o significado desses elementos: um imigrante alemão vendendo aspirinas no sertão nordestino em 1942; a sua amizade com um retirante da seca; o fato de o próprio alemão acabar se tornando um retirante (spoiler: tendo o Brasil declarado guerra à Alemanha nazista); as bombas que caem na Europa fria e escura e a quietude faminta do sertão ensolarado vigiado pelos urubus; uma cena altamente poética: as imagens cinematográficas do Rio de Janeiro projetadas na mão do retirante cujo sonho é ir para lá. Por mais remoto que pareça, o sertão não é tão isolado assim. A confluência dessas oposições que o filme trabalha tão sabiamente, a confluência do sertão e do mundo, faz-nos pensar nas antológicas frase de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:

O sertão é do tamanho do mundo.

O sertão está em toda parte.

Cinema, Aspirinas e Urubus desnuda-se completamente daquela pretensão messiânica que o nosso cinema, cronicamente carente de auto-afirmação, possui. Cinema, Aspirinas e Urubus não pretende vir para ficar. Por isso é que acaba ficando. O filme não pretende ser coisa alguma além de um filme. Por isso acaba sendo um grande e notável filme. É muito difícil encontrar paralelos em nossa produção audiovisual atual, por isso apelamos (mais uma vez) para a Literatura: a poesia de Marcelo Gomes tem aquela simplicidade e espontaneidade (que, no entanto, são frutos de uma elaboração estética conscienciosa), aquele olhar generoso, humilde e apaixonado pelo gênero humano e pelas coisas que encontramos na poesia de Manuel Bandeira.

Maçã

Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário

És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

2 comentários:

Vinicius Maciel disse...

bom... se o filme tem seu mérito por não tecer "categorizações racionalizantes", este seu texto peca por isso. Parnasianos, barrocos, naturalistas, "de tese", etc, etc, etc... você bensa muito bem sobre as obras, mas talvez teria um texto mais amigável se não permanecesse nesse "ir e vir" de conhecimentos escolásticos. Ok, vc já disse que conhece, que sabe categorizar, agora vamos bater um papo sobre o filme: e aí, tem-se um post legal.

Ah, do filme, adorei a fotografia.

André Renato disse...

Mea culpa! Você tem razão: livrar o pensamento de categorizações é uma luta árdua, sempre… Mas prometo que me esforçarei pela reflexão mais livre e ampla e despretensiosa que for possível… Valeu pelos toques!