Les cahiers de
la télévision?
Pode não
parecer, mas o crítico não escreve só para si mesmo. Também não escreverá tão
somente para um “público”, seja lá o que esse palavrão queira dizer. O tempero
– sempre agridoce – com que muitos escribas de cinema carregam seus textos
serve mais para estimular (dizendo o mínimo) as papilas gustativas de outros
críticos. De sutis alfinetadas ao combate aberto, fica instaurada a polêmica,
já histórica: Cahiers du Cinéma vs. Positif (quiçá as duas maiores revistas
cinematográficas de todos os tempos, onde se definiu o que entendemos hoje por
crítica); Jean-Luc Godard vs. François Truffaut (cinema de política vs. cinema
de poesia); Andrew Sarris vs. Pauline Kael (os dois grandes pesos-pesados do
lado de cá do Atlântico), e por aí vai.
O mês que passou
nos trouxe um interessantíssimo exemplo desse tipo de debate, que lá fora é
comum, executado com grande classe (síndrome de vira-lata à parte, seguimos
ganindo frente à troca de insultos chã que parece definir a mídia tupiniquim,
para além da crítica de cinema). No website da prestigiada The New Yorker, apareceu um artigo
em que Emily Nussbaum (crítica de TV da casa) carrega orgulhosamente a bandeira
da segunda “era de ouro” da TV, que vem sendo propalada desde The Sopranos (que estreou em 1999) até True Detective (o grande hype de 2014, até agora). Declarando
como princípio – óbvio – que o crítico, seja na frente da tela pequena, seja na
grande, deve apontar seus instrumentos não só para abstrações como tema, enredo
e personagens, mas também para a materialidade muito específica dos recursos
não por outro motivo chamados de audiovisuais, ela segue afirmando que TV é uma
coisa e o cinema outra, ridicularizando o que todos querem saber: “a TV é o
novo cinema?”
É verdade que as
séries de TV estão ficando cada vez mais “cinematográficas”, mas ainda são
produções majoritariamente coletivas, onde muita gente mete os palpites e
outros dedos, por razões pragmáticas (= mercadológicas); assim, fica complicado
pensar em séries “de autor” do mesmo modo como adoramos os “filmes de autor”
(ainda mais os não-hollywoodianos). Nussbaum não diz que não possa haver apuro
de linguagem audiovisual na TV, mas é preciso analisá-la na relação com os
elementos de seu meio específico de produção, divulgação e recepção, que a
autora descreverá na sequência. Sua tese é que o encanto estético puramente
cinematográfico pode se sustentar nas duas horas médias de um filme, uma forma
altamente concentrada; mas se for diluído nas múltiplas temporadas de uma série
de TV, por anos a fio, não será capaz de tomar muito do tempo e da atenção de
ninguém.
Por isso, a TV
não seria uma mídia muito favorável a diretores, mas recebe de braços abertos
os roteiristas que estão trazendo consigo a nova era de ouro: daí a
profundidade e complexidade de personagens, seus diálogos e suas histórias, que
seguimos acompanhando com paixão folhetinesca. A crítica do New Yorker se refestela com o exemplo da
série Buffy: A Caça-Vampiros (1997-2003,
criada por Joss Whedon); o título do texto é, justamente: “Cahiers du Buffy”,
procurando se arvorar na tradição rebelde dos críticos dos Cahiers du Cinéma nos anos 50 (Godard, Truffaut, Rohmer), que revolucionaram
a maneira como se vê e se escreve sobre cinema (posteriormente, mudaram também
o modo como se fazem filmes), ao enxergar autoria
artística em diretores de Hollywood (Hitchcock, Ford, Hawks) até então tidos
pela crítica “highbrow” como meros funcionários de estúdio. Para Emily
Nussbaum, há autoria na TV, mesmo em um “teen drama” como Buffy, mas trata-se de uma autoria diferente daquela que vemos no
cinema, por ser principalmente centrada na figura do roteirista-idealizador das
séries.
Ela termina o
texto fazendo uma provocação direta a Richard Brody, companheiro crítico na
mesma revista, chamando sarcasticamente de “religião” a sua crença incondicional
na política dos autores (a famosa
teoria que François Truffaut desenvolveu, durante os seus anos escrevendo para
a Cahiers). Brody teria dito que as
imagens das séries de TV fazem os seus olhos vomitar. Nussbaum responde que ele
não aprecia TV porque segue uma estética audiovisual excessivamente formalista,
baseada exclusivamente no virtuosismo técnico (“craftsmanship”, palavra de
conotações intraduzíveis).
Alguns dias
depois, Richard Brody publica, em seu blog no portal da New Yorker, um belo texto
intitulado: “Um grande filme se revela em cinco minutos”. A proposta é: assista
a quaisquer cinco minutos (não necessariamente os iniciais) de qualquer filme
de Welles, Kubrick, Ozu, Ford, Dreyer ou Vertov, e você terá revelada e concentrada
a essência da sétima arte, em todo o seu poder de despertar encanto e amor. Uma
amiga minha tem uma tese parecida: um grande filme, daqueles pelos quais a
gente se apaixona perdidamente, se mostra como tal já nos seus dez primeiros
minutos, sempre. Para não passar a impressão de que ele é um cinéfilo fanático
(e, portanto, preconceituoso para com a TV, per
se), Brody aplica a mesma teoria para a literatura, música e artes
plásticas. A natureza fundamental que anima uma obra de arte (poderíamos bem
dizer: sua alma) está presente em todas as suas partes e elementos
constitutivos, por igual, sem que haja qualquer divisão, diminuição ou resumo
dessa mesma natureza. Isso é quase uma teologia.
A essência da
arte é sua beleza estética, a qual não nada tem a ver com formalismo ou perícia
técnica, nas palavras do crítico. Essa beleza proporciona um prazer, que
despertará o desejo de fruir a obra em sua totalidade, assim como outras obras
igualmente belas. Mas ele não consegue ver tal beleza em séries de TV, não obstante
concorde com a sua colega quando ela busca parâmetros estéticos específicos
para a tela pequena (ou já não tão pequena). TV e cinema, enquanto formas de
expressão, não podem se julgar pelas medidas uma da outra. Linguagem
audiovisual, em todas as suas formas, é algo em constante construção e
redefinição; o crítico deve ter a mente aberta e vanguardista dos “jovens
turcos” da Cahiers du Cinéma, que
souberam enxergar a beleza da arte verdadeira, mesmo por trás de toda a fuligem
da indústria cultural. Brody encerra o texto com o compromisso de continuar
vendo TV, à espera de algo que lhe desperte prazer estético, assim como
Nussbaum assumira o compromisso de prestar mais atenção à importância da forma,
e não apenas do conteúdo, em seu trabalho de crítica de TV.
Bem, o que
podemos dizer a respeito? Trata-se de um debate para lá de estimulante, em um
campo temático vasto e relativamente inexplorado: a fortuna crítica da
televisão é ainda paupérrima se comparada à do cinema, mesmo levando em
consideração a diferença de idade entre ambos os meios (é preciso lembrar, não
obstante, que a TV já venha sendo levada a sério, por críticos e acadêmicos
desprovidos de preconceitos, desde o século passado). Conclusões ainda levarão
o seu tempo para chegar, mas podemos, enquanto isso, ir apontando caminhos,
ainda que pisando em terreno pouco firme.
Parece que a TV,
pelo menos no formato das narrativas seriadas (para usar a expressão de Arlindo
Machado, crítico e professor universitário), não se presta muito ao encanto do
cinema que por algum tempo foi chamado de “puro” por realizadores e teóricos
que, próximos à sua origem, buscavam o grande diferencial da “sétima arte” (expressão,
aliás, criada pelo pioneiro Ricciotto Canudo em 1912): no cinema puro, ou
cinema total, as imagens (e sons) em movimento valeriam quase que
exclusivamente por si sós, com pouco ou nenhum suporte narrativo;
cinema-vanguarda, cinema-sinfonia (basta pensar em Dziga Vertov), cinema que é
a “música da luz” (Abel Gance). Como ficaria a TV pensada e realizada segundo
esses ideais? Bem, tente imaginar o delírio (audio)visual e de pouquíssimos
diálogos dos 150 minutos do 2001 de
Kubrick esticado pelos cerca de 2600 minutos que durou Breaking Bad: será que alguém teria a paciência, tirando os
cinéfilos já muito bem iniciados?
No entanto,
existem precedentes para uma teleVISÃO relativamente mais pura, feita por
cineastas à sua própria maneira (alguém poderá objetar, com razão, que não se
trata de séries, mas de minisséries, coisa que todo mundo já considera como o
“filé” da TV, ou seja, investimento de retorno certo): os 910 minutos de Berlin Alexanderplatz (1980) dirigidos
por Rainer Werner Fassbinder em 14 episódios para a TV alemã, especialmente o
surreal episódio de encerramento; os 286 minutos de The Kingdom (“Riget”, 1994 e 1997) dirigidos por Lars Von Trier em
oito episódios para a TV dinamarquesa; os 550 minutos de Decálogo (“Dekalog”, 1989) dirigidos por Krzysztof Kieslowski em
dez episódios para a TV polonesa. Com isso, podemos dizer que há (algum) espaço
para diretores na TV, mas o mais comum são cineastas de peso que idealizam ou
abraçam uma série e dirigirão – ou escreverão – apenas o primeiro episódio, ou
alguns episódios-chave, ou ainda sentarão tão somente na cadeira de produtor.
Todos os casos que seguem são da TV norte-americana.
O mais clássico
e melhor exemplo é Alfred Hitchcock, que apresentou (à moda de Rod Serling em Twilight Zone) os 268 episódios de Alfred Hitchcock Presents (1955-1962),
assumindo as rédeas da direção de 17 deles. O maior cineasta de todos os tempos
soube reconhecer, logo cedo, o potencial de expressão e divulgação da TV, além
de usar a equipe técnica da série para filmar Psicose (1960) a toque de caixa, como se fosse mais um episódio. Hitchcock
também foi, à sua maneira, um ferrenho defensor do cinema puro: nas famosas
entrevistas dadas a Truffaut, ele despreza colegas que ignoram o potencial
expressivo da câmera e resolvem todas as questões da narratividade através de
diálogos, e não por meios exclusivamente cinematográficos. No episódio de sua
série intitulado Back for Christmas
(exibido em 04 de março de 1956), o “mestre do suspense” dá um grande exemplo
da sua arte: um homem planeja assassinar a sua esposa e cava o buraco onde
pretende enterrá-la, no porão da casa onde moram. Surpreendido por ela, ele
mede com os olhos o tamanho da cova, e Hitchcock nos mostra isso através de uma
panorâmica subjetiva que percorre toda a extensão do buraco e vai parar no
rosto da pobre mulher, parada de pé em uma de suas pontas.
Em segundo
lugar, temos Twin Peaks (1990-1991),
criada por David Lynch em trinta episódios, divididos em duas temporadas. Ele
escreveu todos e dirigiu seis. Como é comum na TV dos EUA, nos episódios que
não escreve ou dirige, o criador age como revisor / orientador / parâmetro para
os trabalhos, o que faz com que a série mantenha uma identidade temática / de
enredo e visual bastante forte e coerente. Isso vale muito bem para Hitchcock e
para Lynch. De resto, seguem, dentre muitos outros que não vamos enumerar aqui:
Michael Mann, que foi produtor-executivo de Miami
Vice (1984-1990) e dirigiu o filme homônimo em 2006; Martin Scorsese, produtor
e diretor do episódio piloto de Boardwalk
Empire (2010 – ainda em exibição); Steven Spielberg – esse é prolífico na
TV: produziu, dentre várias séries e minisséries, Amazing Stories (1985-1987), Band
of Brothers (2001), Terra Nova
(2011, infelizmente cancelada), Falling
Skies (2011-2013); Robert Altman, que produziu Combat! (1962-1967), além de produzir e dirigir Tanner’88 (1988) e Gun (1997, dirigiu apenas um episódio).
Também há séries
de alta qualidade e criatividade que contaram com a direção de grandes
cineastas em alguns de seus episódios. Alguns exemplos: Columbo (1968-2003), que contou com Steven Spielberg (um episódio),
John Cassavetes (um episódio, não-creditado) e Jonathan Demme (um episódio); Amazing Stories (1985-1987): Steven
Spielberg (dois episódios), Clint Eastwood, Martin Scorsese, Robert Zemeckis, Joe
Dante (um episódio cada); Twilight Zone (a
segunda versão, de 1985 a 1989): Wes Craven (cinco episódios), Joe Dante,
William Friedkin (um episódio cada). Vale a pena citar o caso único de M*A*S*H (1972-1983), série genial
derivada do genial longa-metragem de Robert Altman (M.A.S.H, 1970), mas na qual ele não tem, aparentemente, nenhuma
participação direta. Todos esses diretores se expressam, na TV, de diferentes e
desiguais maneiras, se formos comparar com suas obras no cinema. O mesmo
encanto que vemos no cinema de Alfred Hitchcock – aquela teoria do grande filme
que se revela em cinco minutos – vemos nos episódios que ele dirigiu para a sua
série de televisão. Por outro lado, é claro que o encanto do cinema
hitchcockiano de Um Corpo Que Cai (“Vertigo”,
1958) é consideravelmente superior ao de Marnie,
Confissões de Uma Ladra (“Marnie”, 1964), por exemplo. O consolo é que o
pior filme – ou episódio de TV – de Hitchcock vence de goleada o melhor longa-metragem
de, digamos, M. Night Shyamalan.
Sinceramente,
não acho que devamos procurar na TV a mesma epifania que encontramos em um
Tarkovski, Bergman, Tati, Bresson, Resnais, Pasolini ou Antonioni. Estaríamos
latindo para a árvore errada. E isso não desmerece, de forma alguma, as
narrativas seriadas de televisão enquanto meio expressivo, cultural, artístico.
O fato é que muitos e diversos diálogos entre a tela pequena e a grande já
foram travados, com benefícios para ambas as partes, e outros ainda o serão.
Além do mais, como bem disse o crítico da New
Yorker, a linguagem audiovisual é algo em constante mudança, em frequente
reelaboração prática e teórica. Como um todo, esteticamente a TV ainda se
encontra na era da narrativa clássica de Hollywood, cujo período de ouro foi
dos anos 30 aos 50. Ou seja, um audiovisual que se pensa e se apresenta como
“janela” para determinada realidade, exercitando mecanismos de identificação
catártica entre os personagens, suas histórias e os espectadores, com todo o
devido cuidado para que permaneçam imperceptíveis os elementos que poderiam
quebrar essa ilusão e revelar ao público a artificialidade das séries enquanto
discurso elaborado, recorte de mundo e persuasão quanto a pontos de vista
historicamente determinados: a montagem é “invisível”, as narrativas são
lineares, a “quarta parede” fica sempre de pé, etc.
Naturalmente,
sempre houve e continua havendo gloriosas exceções – cada vez mais, nesta
segunda era de ouro da TV: desde as alegorias dos direitos civis em Star Trek (1966-1969), passando pelo
anti-belicismo da já citada M*A*S*H e
pela luta de classes em Columbo (os
criminosos são sempre os ricos e poderosos), até as armadilhas catárticas de Arrested Development (2003-2013), Mad Men (2007 – ainda em exibição) e Breaking Bad (2008-2013), além dos
virtuosos mise en abyme
metalinguísticos de Community (2009 –
ainda em exibição). Não obstante, sentimos que a TV ainda não descobriu a fundo
as vanguardas cinematográficas, a nouvelle
vague, o neorrealismo italiano, etc. Mas será que precisa mesmo descobrir?
Em que medida? Por outro lado, a TV pode pensar e desenvolver suas próprias
vanguardas, através de questionamentos que levem em conta seu próprio meio,
questionamentos esses não iguais aos que o cinema já empreendeu, mas
equivalentes; algumas séries já realizadas podem apontar caminhos: por exemplo,
Lost (2004-2010) e The Office (2005-2013), que incorporam,
misturam e reescrevem inversamente a lógica do reality show, da soap-opera
e do documentário-reportagem.
Enfim, eu tinha
dito que, “como um todo”, a TV (norte-americana) coninua parada na Hollywood
dos anos 50; corrijo-me: falo apenas dos melhores e sempre poucos exemplos
dentre o grosso do que é televisionado – tirando também os casos ainda mais
raros de séries “vanguardistas”. Quando se diz, falando da nova era de ouro,
que a criatividade e qualidade do cinema de Hollywood migraram para a TV, eu
entendo como: assistir a um bom seriado, hoje em dia, é como assistir a um bom
filme hollywoodiano de antigamente. Mas, deixando de lado esses bons seriados,
o que sobra não vale mais do que os velhos folhetins, vaudevilles e circos de aberrações do século XIX, ou ainda o “teatro
filmado” dos primórdios do cinema, antes de aparecer um Griffith. A televisão
vem se tornando, sim, cada vez mais cinematográfica. Contudo, apesar dos J. J.
Abrams, Vince Gilligan, Ricky Gervais, Dan Harmon, Mitchell Hurwitz e outros, a
TV ainda não produziu os seus Sergei Eisenstein, Orson Welles, Roberto
Rossellini, Jean-Luc Godard, etc. – pensando numa Arte que transcenda o seu
próprio contexto e se iguale às grandes produções do pensamento e da
sensibilidade humana, de todos os tempos. De qualquer maneira, esses gênios
podem estar apenas esperando que alguma emissora leia seus roteiros e decida
bancar a produção de um piloto...
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