Cinepoesia
Há diretores que
aprendem o seu ofício sentados nas carteiras de alguma escola de cinema, ou,
para sermos mais precisos, audiovisual. Há diretores que nascem já no “mercado
de trabalho”, particularmente o publicitário. Já o arquiteto Apichatpong
Weerasethakul (também graduado em filmmaking,
por sinal) certamente aprendeu a fazer filmes assistindo a Wim Wenders, Andrei
Tarkovski, Yasujiro Ozu, Carl Th. Dreyer; é o que parece. Cada vez que paramos
em frente a um de seus longa-metragens, ficamos a admirar, embasbacados, a nua
rigidez de sua construção: blocos de tempo-concreto esculpidos com
sensibilidade, paciência e humilde elegância (tomando emprestado o princípio do
“esculpir o tempo”, de Tarkovski).
A única
materialidade que interessa a “Joe” Weerasethakul é materialidade viva,
pulsante, cambiante, do próprio mundo, da existência, dos instrumentos que a
recortam: a câmera “rodando”, os cortes-secos na montagem. Materialidade pura,
simples. Vamos evitar o clichê de chamá-la “minimalista”, pois a única coisa
mínima aqui é a técnica-tecnologia, justamente o que não importa, em absoluto,
para a expressão. O cinema de Joe é antes “maximalista”: o natural e o
sobrenatural habitam em massa o território de seus filmes. A técnica sem
fetiche, a forma a serviço da substância, sem contribuição da obsolescência
programada de dispendiosos hardwares
ou sofisticados softwares para
criação de efeitos fáceis de “expressividade” na captação ou edição das imagens.
O arquiteto Joe
poderia epigrafar-se dos versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando
Pessoa:
“Sou um técnico,
mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou
doido, com todo o direito a sê-lo.”
Mekong Hotel (2012) é seu longa mais recente, depois
de ganhar a palma de ouro em Cannes com Tio
Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). O filme caminha na
fronteira tênue entre ficção e documentário. A sinopse é praticamente
impossível, pois não se baseia em um enredo de articulações lógicas
(causa-consequência); o que dá alma a este filme são antes as associações
poéticas (analogias alegórico-simbólicas), que vão se enredando como numa
composição musical – figurativizada pela onipresente trilha incidental de um
violão dedilhado.
Desse modo, seus
elementos-versos-estrofes são: o hotel, título do filme, onde se apresentam os
outros elementos; um violonista que toca para o host do documentário (servirá de trilha para o filme inteiro); um
rapaz cujo cão de estimação foi devorado por um monstro-fantasma mitológico que
habita às margens do rio Mekong; o próprio rio Mekong, em sua largura sublime;
uma senhora que distila lembranças de um passado individual e histórico (ela é
também o monstro-fantasma); a filha dessa senhora (também a mesma criatura
mitológica e uma “alma nômade”), que se relaciona amorosamente com o rapaz que
perdera o cão (o moço também se transformará).
Em Apichatpong Weerasethakul, o físico e o metafísico, o histórico e o
mitológico se sobrepõem, fundem-se de maneira a desaparecerem as marcas de suas
fronteiras, mas sem perderem suas identidades particulares. Tornam-se,
paradoxalmente, uma coisa só, sem deixar de ser o que são. São pouquíssimos os
cineastas, hoje em dia, que enveredam por tais sendas. Joe é dos raros
guardiões de um antigo fogo, o artista-xamã que resiste firme, na coragem
quixotesca de deitar-se como ponte de ligação entre nós e o que resta do
divino.
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