sábado, abril 26, 2014

Mekong Hotel


Cinepoesia

Há diretores que aprendem o seu ofício sentados nas carteiras de alguma escola de cinema, ou, para sermos mais precisos, audiovisual. Há diretores que nascem já no “mercado de trabalho”, particularmente o publicitário. Já o arquiteto Apichatpong Weerasethakul (também graduado em filmmaking, por sinal) certamente aprendeu a fazer filmes assistindo a Wim Wenders, Andrei Tarkovski, Yasujiro Ozu, Carl Th. Dreyer; é o que parece. Cada vez que paramos em frente a um de seus longa-metragens, ficamos a admirar, embasbacados, a nua rigidez de sua construção: blocos de tempo-concreto esculpidos com sensibilidade, paciência e humilde elegância (tomando emprestado o princípio do “esculpir o tempo”, de Tarkovski).

A única materialidade que interessa a “Joe” Weerasethakul é materialidade viva, pulsante, cambiante, do próprio mundo, da existência, dos instrumentos que a recortam: a câmera “rodando”, os cortes-secos na montagem. Materialidade pura, simples. Vamos evitar o clichê de chamá-la “minimalista”, pois a única coisa mínima aqui é a técnica-tecnologia, justamente o que não importa, em absoluto, para a expressão. O cinema de Joe é antes “maximalista”: o natural e o sobrenatural habitam em massa o território de seus filmes. A técnica sem fetiche, a forma a serviço da substância, sem contribuição da obsolescência programada de dispendiosos hardwares ou sofisticados softwares para criação de efeitos fáceis de “expressividade” na captação ou edição das imagens.

O arquiteto Joe poderia epigrafar-se dos versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:

“Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.”

Mekong Hotel (2012) é seu longa mais recente, depois de ganhar a palma de ouro em Cannes com Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). O filme caminha na fronteira tênue entre ficção e documentário. A sinopse é praticamente impossível, pois não se baseia em um enredo de articulações lógicas (causa-consequência); o que dá alma a este filme são antes as associações poéticas (analogias alegórico-simbólicas), que vão se enredando como numa composição musical – figurativizada pela onipresente trilha incidental de um violão dedilhado.

Desse modo, seus elementos-versos-estrofes são: o hotel, título do filme, onde se apresentam os outros elementos; um violonista que toca para o host do documentário (servirá de trilha para o filme inteiro); um rapaz cujo cão de estimação foi devorado por um monstro-fantasma mitológico que habita às margens do rio Mekong; o próprio rio Mekong, em sua largura sublime; uma senhora que distila lembranças de um passado individual e histórico (ela é também o monstro-fantasma); a filha dessa senhora (também a mesma criatura mitológica e uma “alma nômade”), que se relaciona amorosamente com o rapaz que perdera o cão (o moço também se transformará).

Em Apichatpong Weerasethakul, o físico e o metafísico, o histórico e o mitológico se sobrepõem, fundem-se de maneira a desaparecerem as marcas de suas fronteiras, mas sem perderem suas identidades particulares. Tornam-se, paradoxalmente, uma coisa só, sem deixar de ser o que são. São pouquíssimos os cineastas, hoje em dia, que enveredam por tais sendas. Joe é dos raros guardiões de um antigo fogo, o artista-xamã que resiste firme, na coragem quixotesca de deitar-se como ponte de ligação entre nós e o que resta do divino.

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