quarta-feira, abril 30, 2014

A Regra do Jogo

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” Walter Benjamin, Sobre o conceito da História, in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, vol. 1.

A gente já sabe que a história é escrita pelos vencedores, que fazem valer o seu próprio ponto de vista e costumam produzir uma linha interpretativa de acontecimentos que segue pauta única: o “progresso”. Assim sendo, a história geral da humanidade seria a história de uma caminhada essencialmente homogênea, contínua. Uma caminhada vazia. O outro lado dessa moeda é o tempo histórico observado em seus acidentes, paradas, retornos (retrocessos), saltos; ou seja, em sua inerente heterogeneidade, descontinuidade. Uma história não-triunfalista, fragmentada, plena de tensões e contradições. Assumindo a visão dos “derrotados”, legitimando-a, preservando-a, divulgando-a, o historiador materialista deverá então escovar a história a contrapelo, desfazendo a sua superfície predominantemente homogênea.

Circula na internet um video curto (menos de 4 minutos), com imagens amadoras da cidade de São Paulo em 1944 e 1945. A filmagem é bastante caseira (em 8mm, com boa qualidade e em cores) e revela cenas familiares: um pai segurando seu bebê, uma criança brincando, uma família acenando, tendo como pano de fundo as ruas da cidade. Tudo com muita singeleza, lembrando bastante os primeiros filmes dos irmãos Lumière (“Le Déjeuner de Bébé”). Não encontrei referências aos autores ou pessoas filmadas, apenas à empresa que fez a telecinagem a partir do original em 8mm. O caráter prosaico e íntimo das cenas espontâneas, junto com o aspecto quase bucólico de uma São Paulo que ainda podia se vestir do epíteto de “terra da garoa”, fazem ambos o encanto dessa pequena relíquia cinematográfica, anônima.

Contudo, há algo nela que não dá para esquecer, que é impossível de não chamar a atenção de um observador atento. Quando o filme bate a marca de 1 minuto, vemos um pai (ou tio, avô, enfim) caminhando de mãos dadas com uma criança pequena (um menino), pela calçada, em direção à câmera. Poucos instantes depois, ele o tomará nos braços, beijando-o e olhando para ele com um afeto comovente. Enquanto a cena se desenrola, vemos surgir em plano de fundo, e com uma profundidade de campo extraordinariamente nítida, uma mulher – negra – que vem caminhando também rumo à câmera, na mesma direção do homem e do menino. Ela vem calmamente pelo lado de dentro da calçada, quase rente ao muro das casas. De repente (à meia distância do “assunto” da cena), ela faz uma curva de 90 graus à direita e parece que vai atravessar a rua, quando sai do quadro.

Eu disse que não consegui descobrir a identidade pessoal  dos cidadãos paulistanos que aparecem na filmagem, mas a sua identidade social pode ser facilmente deduzida. A família mostrada é branca e, é bem provável, de uma condição social minimamente confortável, uma vez que podem dispor de uma câmera para eternizar momentos de intimidade (também deviam ter acesso, logicamente, ao material de projeção), em meados dos anos 40. Lembremos também que a cena em questão se passa na rua José Maria Lisboa, no bairro nobre dos Jardins. A esses personagens, supostamente típicos de uma classe média paulistana da época, contrapõe-se a mulher negra que passa, carregando um embrulho nas mãos. Quanto a ela, sobram especulações.

Quem é essa mulher, socialmente falando? Seria também moradora dos Jardins, da rua José Maria Lisboa? Teria ido apenas até a padaria mais próxima, para comprar pão para si e para os filhos? O fato é: sabemos que a “gente diferenciada” até hoje não é residente típica de bairros nobres paulistanos, sequer bem-vinda neles (a não ser, é claro, para trabalhar sem maiores direitos legais nas casas dos “patrões”): reveja-se a polêmica da construção do metrô em Higienópolis. Se atualmente, 126 anos depois da abolição da escravatura, a questão social e racial no Brasil ainda sofre bastante para ser debatida e resolvida, como é que deviam ser as coisas em 1944 – apenas 56 anos passados da Lei Áurea? E principalmente: por que essa mulher desvia seu caminho, de maneira tão brusca? Não é estranho isso?         

Experiência de pedestre: quem vem andando, de maneira calma, firme e em linha bastante reta (sem aquele leve ziguezaguear de quem passeia à esmo, ainda mais do lado de dentro da calçada), sabe muito bem para onde está indo e não vai, normalmente, desviar-se em uma curva de 90 graus, de repente. Pelo menos, não sem algum gesto de cabeça, mãos ou tronco indicando que a pessoa esqueceu algo muito importante em outro lugar, fora do seu caminho; ou que viu algo chamativo do outro lado da rua e decidiu rumar para lá. Na filmagem que vemos, a mulher vem de cabeça e (provavelmente) olhar firmes na direção da câmera – não dá para ver seu rosto em detalhe. Experiência de pedestre: quem anda e olha de modo tão reto assim, e muda de direção de repente, é porque viu algum obstáculo à frente (real ou presumido – o medo, por exemplo, de algum pedestre “suspeito” caminhando na direção contrária).

O que será que essa mulher viu? Será que o cinegrafista – ou alguém da família, ao lado dele – teria feito para ela aquele gesto sutil de “chega para lá, a genta tá filmando um negocinho aqui, coisa rápida”? Ou será que ela percebeu a filmagem e, por gentileza (ou constrangimento), decidiu passar pelo outro lado da rua, para “não atrapalhar”? E principalmente: qual o significado simbólico disso, tendo em vista os preconceitos e desigualdades sociais e raciais, no Brasil e em São Paulo, ao longo da sua história? Tendo em vista também nossa “cultura”, ainda muito viva em 2014, da divisão social dos espaços, tanto os públicos quanto os privados: os apartamentos de luxo com “quartinho de empregada”, os elevadores “de serviço”, os “rolezinhos” em shopping centers, etc, etc, etc. Imagine em 1944!

Essas perguntas poderão parecer inúteis para muita gente, mas o fato é que este pedaço de fita de cinema de 8 milímetros ilustra um dos grandes poderes da imagem audiovisual, ainda que por acaso (entre os grandes cineastas, a coisa é bem proposital): as relações – principalmente de contraponto – entre o primeiro plano e o plano de fundo, usando uma lente que possibilite a profundidade de campo. Temos aqui duas narrativas, dois universos temáticos, dois conjuntos (tipos) de personagens, que vão se desenrolando e construindo suas relações paralelamente, em um mesmo plano. São duas histórias, completamente independentes, e uma terceira: aquela que nasce do contato (para não dizer o choque) entre ambas, quando a mulher percebe a câmera e procura sair do seu próprio caminho, o caminho da lente.

Para aqueles que gostam de escovar a história e o cinema à contrapelo, no dizer de Walter Benjamin, a história dessa mulher negra será bem mais interessante, enquanto narrativa cinematográfica. É a história dela que deverá ser trazida e focalizada, através da reflexão crítica, para o primeiro plano, ao contrário do que seria a história “principal” nesse filme (o homem e o menino). Em cinema, muitas coisas importantíssimas – para não dizer as mais importantes – residem nos pequenos detalhes, nas laterais ou no fundo do quadro, fora do âmbito do assunto / drama principal. É à contrapelo que se descobrem e se comunicam coisas que nos fazem realmente entender o conjunto de uma realidade cujo recorte, aparentemente ingênuo, temos na frente dos olhos.

No fundo de uma cena tão idílica e clara da vida da classe média paulistana (cena essa de valor humano naturalmente incontestável), percebemos quase que literalmente uma mancha. Uma coisa que, em princípio, parecer ser nada (e pode ser nada mesmo); mas que, por outro lado, pode revelar algo terrível: uma tensão incômoda, um elemento de desagregação no tecido de uma sociedade que, em primeiro plano, parece tão homogênea, harmônica, tranquila, feliz... No fundo da imagem, pulsa uma outra cena, que logo será praticamente varrida para fora do quadro, mas cujo valor humano também precisa ser lembrado, enaltecido, eternizado com o mesmo poder dos instrumentos da sétima arte, sob pena de... Bem, a História já se cansou de nos tentar ensinar.

O link para o vídeo é:


P.S.: A sutileza de Woody Allen nos dá outro exemplo, este perfeitamente irônico, do poder da imagem cinematográfica em condensar e equilibrar, dentro de um único plano, duas narrativas, dois universos opostos – e de pesos diferentes, tendo em vista as estruturas sociais. Em Blue Jasmine (seu filme mais recente), vemos a irmã e o cunhado da protagonista chegarem para fazer uma indesejável visita; ambos são pobres, enquanto ela é uma socialite nata, casada com um milionário. Com a câmera fixa em um plano incomodamente longo, vemos todos se cumprimentarem e engatarem aquela conversa inicial sobre amenidades, parados na entrada do apartamento, enquanto a pobre da empregada segura a porta aberta, sem que ninguém entre ou saia completamente, absolutamente ignorada por todos, objeto de cena...

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