Em Roma. Como os
romanos?
O cinema de Paul
Verhoeven é uma delicada construção de ironias em abismo (mise en abyme), caindo em espiral. Um cinema pós-moderno, por
excelência. Tomemos o seu Robocop (1987,
o original): o futuro próximo ali fabulado faz escárnio não apenas da realidade
ideológica da era Reagan / Tatcher (o capital privado conquistando todas as esferas
da respública: da polícia à
reurbanização completa de uma cidade[1]),
como também dos próprios discursos de propaganda daquela mesma ideologia: os
anúncios nos intervalos comerciais do telejornal mostrado dentro do filme e a
própria estrutura narrativo-estilística deste último, enquanto “filme de gênero”
(ação, policial), cinema de indústria. Verhoeven se mune dos melhores clichês do
meio apenas para desconstruí-los um a um, não pela sua inversão, mas pelo exagero
caricatural.
Assim, muitos
não entenderam – e ainda não entendem – o primeiro Robocop. Ele terá lá os seus fãs, que sonharão com o dia em que o “policial
do futuro” se tornará presente; mas terá igualmente os seus sofisticados
esnobadores, que o atirarão à cova rasa do cinema “hollywoodiano”[2].
Colocando em termos literários, Verhoeven é um Flaubert; Robocop é a sua Madame Bovary,
o romance anti-romanesco. Situação colocada, José Padilha foi sábio em se
manter longe do cineasta holandês e de maiores referências que arrastem a ele.
Obviamente, não é esse o cinema do documentarista de Ônibus 174 (2002). O fato é que, em Tropa de Elite (o primeiro e o segundo: 2007 e 2010), Padilha buscava
preencher uma das grandes lacunas do nosso cinema, com a maior das boas
vontades: fazer filmes de gênero bons (quero dizer: conseguir fazê-los, antes
de mais nada; em segundo lugar, fazer bem feito).
Conseguiu.
Naturalmente, acabaria desviando para si o olho de Sauron... Digo, dos producers da Cidade dos Anjos. Mas, levado
à terra onde se fabricam sonhos, deu conta do recado (esteticamente, pelo
menos; não me interessa aqui o box office).
Padilha não é um Gustave Flaubert, mas pode muito bem passar por um Aldous
Huxley ou George Orwell – dentre outros ficcionistas dotados de consciência
política cuja literatura fica no limiar entre o gênero (“sci-fi”) e a coisa
séria, ao elaborarem retratos detalhados de sociedades distópicas. A narrativa
cinematográfica do novo Robocop
devolve, ironicamente, ao espectador muitos dos mais adoráveis lugares-comuns
da ideologia dominante, divertindo-se com as dinâmicas da identificação (a
velha catarse) entre público e personagens ou situações narradas.
É desse modo que o Capitão Nascimento já tinha virado herói nacional,
conquistando boa parcela das plateias para cujos rostos encantados o primeiro Tropa de Elite apontava e disparava uma
escopeta, em sua última cena. Paul Verhoeven também fazia uso dessas artimanhas.
E ia além. Mas José Padilha não permite que a acidez da ironia venha a corroer
sua câmera, sua mesa de edição. Tudo bem. Teremos um ótimo filme de ação /
policial / ficção científica com conteúdo. O fato de um brasileiro fazer isso na
Hollywood da segunda década do século XXI já é mais do que uma (rara) vitória,
para o cinema nosso e para o deles. Conclusão: o primeiro Robocop é um filme de autor, camuflado sob o uniforme do gênero; o
segundo é um filme de gênero, armado até os dentes de autoria.
[2]
A coisa foi ainda pior com Tropas
Estelares (1997), quando, às custas de ter tomado emprestados alguns
ângulos de Leni Riefenstahl (a conhecida “cineasta de Hitler”) para satirizar
os heróis de uma sociedade futura altamente militarizada, Verhoeven foi tachado
de “nazista” por mais de um crítico da grande mídia na época.
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