Eu tive que comprar ingresso para este filme com uma semana de antecedência, pois todas as sessões se achavam lotadas – isso porque ele já estava havia um mês em cartaz . Nunca tinha passado por isso antes; o máximo de “perrengue” que já tivera para ver um filme foi esperar algumas horinhas na fila do velho cine Marabá para assistir a Batman, em 1989, ou sentar-me no chão para ver ET – O Extraterrestre, em 1985. Chegando o tão glorioso dia (ontem), a sala I-MAX do Shopping Bourbon Pompéia parecia um parque de diversões. A última vez que entrara em uma sala de cinema absolutamente lotada foi para ver O Poderoso Chefão, na Mostra de SP de 2008. Muito bem. Os óculos 3D colocados, após alguns trailers o filme começa.
Numa panorâmica aérea, na primeiríssima cena, a vertigem já me faz quase cair para a frente e acelera meu coração de uma maneira que eu não sentia desde meus remotos tempos de Playcenter. O resto é espanto, assombro, choque, fascinação. Se o cinema nasceu com e se define pela obra de Georges Meliès (como defende Georges Sadoul), então temos de admitir que James Cameron é o seu maior mestre na contemporaneidade. Tudo em Avatar é hiperbólico, a começar pelo custo de 500 milhões de dólares desta produção e os quase 2 bilhões que ela já arrecadou – quebrando o recorde histórico de Titanic. Será James Cameron o novo Meliès ou o novo Cecil B. de Mille?
De qualquer maneira, temos aqui o mágico e o fabuloso colocados de volta à sétima arte nos níveis mais primevos da experiência sensorial. Os enjôos provocados por este filme nas salas I-MAX em 3D são muito reais. A amiga que me acompanhava passou consideravelmente mal e continuou enjoada mesmo após o fim da sessão, enquanto voltávamos para casa. Quanto a mim, só tive algumas tonturazinhas e um leve peso no estômago em um determinado momento muito “aéreo” da fita. Avatar é realmente diferente de qualquer outro filme do 3D atual, seja animação ou “live action” – a película de Cameron é literalmente um amálgama dos dois.
Imagino que a tecnologia inédita, inventada exclusivamente para este filme, tenha surtido os resultados esperados. A sensação de imersão que toma conta do espectador é quase indescritível. Já não estamos mais falando em metáforas quando dizemos que a tela do cinema é uma “janela” para o mundo. O próprio Cameron falou sobre a sua tecnologia pioneira em uma entrevista para a Variety, que eu traduzi e publiquei aqui no blog. De resto, o design dos cenários, das paisagens, dos monstros e criaturas fantásticas que povoam o mundo de Pandora foi feito com o maior esmero que se poderia esperar do orçamento “pandórico” do filme. Não mergulhávamos com tanta força numa outra realidade desde O Senhor dos Anéis.
Avatar é uma experiência a ser vivida. E geralmente, quando se discute o cinemão mais sensorial, deixa-se de lado a fábula, a intriga, o enredo, os temas e mensagens veiculadas – tanto porque estes já são como que deixados de lado pela própria produção do filme. Bem, Avatar não é tão ingênuo quanto as velhas fitas de Meliès ou de Mille. James Cameron cutuca – alegoricamente, é claro – algumas feridas abertas da situação histórica e geopolítica atual. Agora, qual a coerência “subversiva” de um filme de meio bilhão de dólares é um assunto que fica para outra hora. Vamos aqui pensar apenas na história proposta pelo diretor-roteirista.
Outro dia, vendo um programa de entrevistas em um desses canais de notícias, tive vontade de dar um tiro na televisão ao ouvir um desses “economistas” reclamando muito pomposamente que a mais recente crise internacional tinha sido causada pelo Estado, e não pelas manobras excessivamente arriscadas e desregulamentadas dos bancos, como alguns querem nos fazer acreditar. O jornalista, em afago ao discurso do entrevistado, citou como papagaio os aforismos dos papas do Consenso de Washington, de que “o Estado não é parte da solução, é parte do problema”. Isto é um absurdo tão grande, uma barbárie tão incompreensível quanto o discurso daqueles que tentam negar o aquecimento global.
É nestes momentos que eu torço sinceramente para que aconteça na realidade algo como em O Dia Em Que A Terra Parou, ou em O Fim dos Tempos, ou ainda em O Senhor dos Anéis (quando as árvores se revoltam contra a indústria e destroem a “fábrica” do mago Saruman). Pois bem. É exatamente o absurdo de alguns discursos e atitudes muito dominantes hoje em dia que aparece em Avatar, com o choque de todos os filmes que mostram a barbárie (nazista ou não): o mais recente deles era Distrito 9. Enquanto o mundo for conduzido por executivos mimados e petulantes com a idade mental de um moleque de 10 anos e por generais com as mesmas características, as coisas continuarão no rumo que estamos presenciando.
Avatar é uma fábula que posiciona sua moral contra os horrores da colonização. Os seres humanos que exploram Pandora pensam dentro da lógica positivista do neo-colonialismo do século XIX: o “progresso”, o bem-estar e a felicidade de uma população se medem apenas pelas conquistas científico-tecnológicas e pelo nível de prosperidade material. Com isso, os “selvagens” são necessariamente criaturas inferiores, pois andam semi-nus, vivem no meio do mato e praticam rituais “excêntricos”. Seja no futuro ou no passado – incluindo também boa parte do presente – não se consegue ter qualquer dimensão da visão de mundo do outro, de um outro modo de vida, de uma outra cultura.
O modus operandi dos colonizadores de Pandora é o mesmíssimo desde as grandes navegações do século XVI. Os na’vi devem se tornar civilizados e aculturados por bem ou por mal – tanto porque o que mais desejamos, no final das contas, são os recursos naturais das terras deles. Em 2154 não há mais a Compahia de Jesus, logicamente. Mas há as pesquisas “científicas” e sobretudo a “educação”. A personagem de Sigourney Weaver representa esta faceta do processo colonial. Ela tem bom coração e é inquestionavelmente bem intencionada, assim como os padres missionários do século XVI. Mas todos são frutos do seu tempo. Querendo fazer o bem – e até conseguindo, de certa forma – acabam no entanto por contribuir para o grande mal dos povos invadidos e dominados.
É claro que Avatar é uma produção de Hollywood e o bem sempre triunfa no fim. Mas em nossa realidade, as forças representadas pelo jovem executivo Selfridge e pelo coronel Quaritch sempre venceram. Exceto, talvez, no Haiti; mas veja só a história posterior e o atual estado daquele país. Ainda dentro da história das colonizações, Avatar não deixa de se arvorar nos mitos edênicos do paraíso reencontrado: Pandora é um novo Brasil – veja-se o famoso e clássico estudo de Sérgio Buarque de Holanda (“Visão do Paraíso”). Outro mito de que James Cameron se aproveita é o do encontro idílico de um homem e uma mulher que representam o “melhor” dos dois mundos: a civilização e a natureza. A história de Pocahontas e a de nossa Iracema (tão bem contada por José de Alencar) ecoam na de Jake Sully e Neytiri.
Bem, acho que é só. Quam ainda vai ver, divirta-se! E se for assistir ao filme em I-MAX 3D, não se esqueça de tomar um dramin antes (apesar do sono que ele provoca).
7 comentários:
Ótima análise. O filme é tudo isso mesmo!!!
Abs!
Explanou tudo o que eu senti no filme, principalmente no começo..haha! E realmente é sempre bom ressaltar que se trata de uma narrativa simples, mas não simplista.
Abraços!
Gostei bastante da análise. Eu amei este filme. Vai muito além da técnica. Merece todo este sucesso.
Isso aí, galera!
Vamos ver como ele se sai no Oscar, agora...
Filme é revolucionário na sua construção visual/sensorial/tecnologica mas é conservador no discurso. Tímido num roteiro que se caisse em mãos certas seria um marco mas caiu na mão de James...Oh meus deus.
P.S Aquecimento Global é uma farsa.
Também acho Cameron meio bobo, principalmente em certas declarações... Mas há que pagar um pau para "Terminator", "Aliens" e "Avatar"...
É isso aí! Só acredito no esfriamento global, que um dia ainda vai pegar!...
Discordo do Entunho Cósmico quando fala que o filme é conservador no discurso. Difícil num filme não falar do ser humano, suas atitudes, comportamento. Mesmo em ficção a essência sempre é sobre o ser humano.
O filme é fascinante, a plástica da natureza e dos animais são obra de arte. O filme cria em nossa um consciente coletivo de que podemos viver com paz entre os povos, do quanto somos egoístas, e principalmente que somos espíritos. Fantástico!
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