quarta-feira, outubro 15, 2008

Ensaio sobre a Cegueira


Ensaio sobre a Cegueira (Brasil / Canadá / Japão, 2008, dir.: Fernando Meireles) é um filme aplicado. Disciplinado. Formalista. Lembra quase um poema parnasiano: que se leia a “Profissão de Fé”, de Olavo Bilac. Ou seja, nada poderia estar mais distante – neste aspecto – da forma tão livre do discurso de José Saramago. É claro que há o longo debate sobre como se adaptar uma obra tão literária para a linguagem cinematográfica; mas a questão não é “adaptar”, e sim buscar equivalências entre as duas formas de arte, respeitando-se as diferenças. Quero dizer, um romance não deverá ser simplesmente vertido para o cinema, mas o bom cineasta procurará buscar quais os recursos estilísticos especificamente cinematográficos que poderão equivaler (jamais traduzir) às escolhas artísticas do escritor, inspirado sempre pela lógica das analogias, das correspondências, ou seja: a lógica poética (neste particular, universal e comum a todas as artes).

Pensando nisso, a visão de Meireles teve alguns acertos. A fotografia em branco, com muitos momentos desfocados, translúcidos ou simplesmente opacos (a tela inteira em branco, ou preto, por razoáveis segundos), a expressar os efeitos do “mal branco” (a cegueira na acepção de Saramago); a câmera subjetiva (algo meio óbvio numa história dessas, mas mesmo assim, fundamental); a direção de arte que construiu bem o caos apocalíptico (é muito interessante ver a cidade de São Paulo neste filme); o tom da narrativa entre dinâmico e irônico (para o qual contribui bastante a trilha sonora): isto Meireles soube reconhecer bem na obra de Saramago. Entretanto, é nesse último aspecto que começam os problemas: a trilha sonora assinala demais praticamente todas as cenas do filme, principalmente o seu conteúdo dramático. Clichê dos clichês. É para tornar o filme mais acessível, mais palatável?

O pior é que o conteúdo dramático, cinematograficamente falando, nem fica tão assinalado assim. Pesa sobre a película uma atmosfera excessiva de descrição, quando o diretor poderia se deter mais e durante mais tempo em cima dos acontecimentos, explorando de maneira mais “meditativa” (digamos assim) suas implicações humanas. Não que o próprio Saramago seja lá muito enfático nesse sentido, mas a câmera de Meireles é apressada, enquanto a pena de Saramago é espontânea; a câmera do cineasta é ansiosa (por isso, age com volúpia e volubilidade ao mesmo tempo), ao passo que a pena do escritor é sutil (mesmo ou principalmente quando trata de coisas graves e perturbadoras, o que é uma grande marca e qualidade em José Saramago). Enfim, Meireles é pesado; Saramago é leve. “Blindness” acaba sendo mais descritivo do que expressivo, porque sentimos que o diretor quis colocar (quase) tudo do livro em duas horas de fita.

É neste caso que uma “adaptação” mais livre e indisciplinada, sem tanta e tão visível reverência ao autor da obra original, ficaria mais rica. “Blindness” é um filme mais profissional do que artístico. Eis sua conquista e seu limite. É um filme extremamente competente, mas pobre de espírito. É um filme excessivamente publicitário: muitas cenas, seja na fotografia, na montagem ou na dramaturgia, lembram aquelas propagandas mais “elaboradas artisticamente” que passam na TV ou nas salas de cinema. “Blindness” é um film dell’a arte contemporâneo. Parece que foi feito sob o peso da preocupação de “dar certo”: dar certo dentre o público (pensando nos vários “tipos” de público), dar certo dentre os críticos, dar certo nos festivais e premiações internacionais, dar certo profissional e artisticamente (por que não?). São todas preocupações legítimas, mas que podem arrastar para baixo a realização da obra.

Há algumas cenas do filme que ilustram bem o caráter mais publicitário do que artístico da adaptação, no que ela tem de apressada e descritiva. A primeira é a famosa cena do cão das lágrimas. Que se faça a concessão de que é difícil mesmo colocar em imagens esse momento tão forte do livro. Mesmo assim, da maneira como ficou no filme, a cena tem um impacto muito, mas muito menor. Era mesmo necessário mostrar (eis a mera descrição) num plano absolutamente chapado o cão lambendo as lágrimas de Julianne Moore (a câmera na frente dos dois, para que o espectador entendesse bem que o cão está lambendo as lágrimas da mulher)? Na ânsia de mostrar exatamente o que as palavras dizem no livro, o filme acaba perdendo a sua força de cinema. O curioso é que outras cenas do romance, incrivelmente fotogênicas, não foram trazidas para o filme com a força “fílmica” que elas possuem no livro.

Falo da cena da morte do ladrão, que no romance (conforme eu comentei aqui mesmo no BLOG, em outubro do ano passado) possui um aspecto muito impressionante de filme de terror, particularmente os filmes de zumbi. Em “Blindness”, esta cena também é mostrada de modo muito apressado, tentando (e não logrando) criar um efeito de susto à lá Shyamalan. Por fim, a cena da igreja, onde as imagens santas se encontram com os olhos vendados por panos ou tintas brancos: para que colocar um profeta do apocalipse fazendo um sermão assustado para alguns cegos ali presentes? Banalizou-se a cena. Exagerou-se o drama. Arrancou-se a força pura da imagem da mulher do médico descobrindo, numa igreja vazia, aqueles ícones “cegados”. Sem contar que, no ritmo da montagem que vai mostrando os santos vendados, a coisa toda fica parecendo demais uma propaganda de televisão. Enfim, Meireles acabou conquistando, para o melhor e para o pior, o título de Roland Emmerich do cinema cult.

3 comentários:

Anônimo disse...

Achei o filme excelente. Tem uns probleminhas, mas nada grave. É uma obra de arte como poucas.

Ciao!

Anônimo disse...

André, vc ainda foi parcimonioso. O filme, em meu ponto de vista, é pior. Meirelles "adaptou", no sentindo hollywoodiano do termo.E ainda quis dá toques cults que poucas vezes funcionaram. Embaçou a narrativa com o propósito de nos dá uma visão por dentro da cegueira e apenas foi óbvio e chato. Não soube sustentar o tom do filme como devia (entre o realismo bruto e a parábola).A fábula de Meirelles cai num humanismo fraco (onde Saramago é mais duro e irônico). Meirelles não sabe escavacar o mistério, ele só sabe escavacar o lado 'escroto' do homem. A cena da chuva não convence. Depois de ver o filme, pensei:'ah, se fosse o Gonzalez Iñarritú...'. Meirelles,ao meu ver, está construindo uma carreira descendente, o que é uma pena.

Wanderson Lima disse...

André, vc ainda foi parcimonioso. O filme, em meu ponto de vista, é pior. Meirelles "adaptou", no sentindo hollywoodiano do termo.E ainda quis dá toques cults que poucas vezes funcionaram. Embaçou a narrativa com o propósito de nos dá uma visão por dentro da cegueira e apenas foi óbvio e chato. Não soube sustentar o tom do filme como devia (entre o realismo bruto e a parábola).A fábula de Meirelles cai num humanismo fraco (onde Saramago é mais duro e irônico). Meirelles não sabe escavacar o mistério, ele só sabe escavacar o lado 'escroto' do homem. A cena da chuva não convence. Depois de ver o filme, pensei:'ah, se fosse o Gonzalez Iñarritú...'. Meirelles,ao meu ver, está construindo uma carreira descendente, o que é uma pena.

12 Abril, 2009 21:54