quinta-feira, setembro 18, 2008

O Martírio de Joana D'Arc


Uma das maiores razões de o Cinema ser uma Arte. O Martírio de Joana D’Arc (“La Passion de Jeanne D’Arc”, França, 1928) é mais uma obra-prima de Carl Theodor Dreyer, um dos poucos mestres absolutos da Sétima Arte. Em julho de 2007, eu escrevi neste Blog sobre Vampyr (1932), outra pérola do diretor dinamarquês. Muito do que disse lá vale para ambos os filmes: particularmente os aspectos da fotogenia e do cinema de poesia. Contudo, a poesia em “O Martírio...” é de uma espécie um tanto quanto diferente em alguns aspectos. A um só tempo lírica e dramática, a poesia do destino de Joana D’Arc se dá aos nossos olhos maravilhados em uma forma de balé. Um balé de rostos e rugas.

O muito enfático jogo de olhares, expressões faciais, posturas e viradas de cabeça compõe um grandioso tour de force das diferentes faces humanas: as rígidas, iracundas, ameaçadoras ou sarcásticas “faces da perseguição” (a alegoria é quase literal), do julgamento e da condenação, nas figuras dos juízes da inquisição; e a face sofrida, amolecida, resignada (mas lutadora nos momentos decisivos), mansa, mas muito auto-confiante, embora plena de terrível medo, a “face do justo”, na figura santa de Joana D’Arc. Este filme não é composto por meras imagens. São verdadeiros ícones. Religiosos ou profanos. Tanto os já tão falados rostos humanos, quanto quaisquer objetos, principalmente os instrumentos da tortura e da imolação de Joana D’Arc.

Apesar de o cinematógrafo ser uma máquina dotada do poder de captar e reproduzir as coisas, há pouquíssimos filmes que efetivamente mostram as coisas, as coisas em si, dando-lhes (ou revelando nelas) um estatuto que vai muito além daquele de uma pretensa “realidade”. É aí que reside a poesia. É curioso dizer isso, mas a maioria dos filmes são cegos. Contudo, a “lição de coisas” de Dreyer foi aprendida, ainda que por poucos: Andrei Tarkoviski, Ingmar Bergman, David Lynch. A fotografia em “O Martírio” é pictórica: creio que nunca vi um filme em que a composição dos planos fosse tão elaborada e parecida com a dos quadros, verdadeiros quadros vivos, pinturas animadas.

Aliás, a relação entre o cinema de Dreyer e a pintura dos grandes mestres já foi muito bem assinalada por André Bazin. Os planos em “O Martírio” são compostos com base num jogo de linhas perpendiculares, mas com ângulos oblíquos, formados entre linhas de objetos (uma lança, a beirada de um púlpito) ou do cenário (a divisória entre paredes, o desenho de uma porta, uma janela), ou ainda entre linhas de objetos diegéticos e as linhas da tela em que se exibe o filme. O mesmo procedimento pode ser visto em Eisenstein, nos expressionistas alemães, em Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick... Todo cineasta deveria estudar não apenas fotografia, mas pintura, principalmente a pintura clássica.

Ainda em relação Eisenstein, a cena da ameaça que os inquisidores fazem a Joana utilizando instrumentos de tortura é uma das mais impressionantes montagens que já vi no cinema. Mais impressionante ainda se pensarmos nos filmes que se fizeram até 1928 e que se faziam naquela época. Hoje, essa montagem “de vídeo-clipe” já foi mais do que banalizada pela publicidade (comercial ou não). Aliás, isso nos leva a uma discussão muito séria. Os primeiros teóricos do Cinema colocavam uma fé incrível no poder (mágico? estético? pedagógico?) da imagem captada pelo cinematógrafo. Não há nada mais gostoso para o verdadeiro amante da Sétima Arte do que acompanhar as efusivas descobertas deles, as discussões, polêmicas, etc.

Infelizmente, para nós, hoje em dia, tudo isso parecerá meio ingênuo, se não perigoso. Traumatizados que estamos com o uso – e abuso – que fizeram da grande promessa do cinematógrafo os regimes totalitários (particularmente o nazi-fascismo) e a propaganda capitalista, a indústria cultural (o pior dela), já não enxergamos com os mesmos olhos, fascinados e puros, coisas simples e maravilhosas como a “montagem de atrações”, o primeiro plano, etc. Este último merece uma consideração especial. Nunca o poder expressivo do rosto humano fora tão explorado (nem voltaria a ser, creio eu) quanto nos primeiros planos de “O Martírio...”. E hoje em dia, o que é que se tem em relação a isso? Novelas da Globo? “Olga”? Pelo amor de Deus...

Se o alcance profissional e estético de um diretor se mede por sua decisão (e o acerto dela) em relação ao lugar em que se vai colocar a câmera para filmar, então teremos que dizer que Carl Dreyer é um autêntico gênio. Não só pelos primeiros planos, mas também por colocar a câmera muitas vezes em lugares (e ângulos) inusitados – ainda mais para a época, em que a câmera não era tão livre quanto hoje – captando sempre novos pontos de vista. Outro dia eu disse que há filmes que nos dão vontade de fazer filmes (a respeito de Ainda Orangotangos). Em relação a Dreyer, a afirmação fica um pouco diferente: há filmes que nos dão vontade de fazer Cinema.

2 comentários:

Fábio Rockenbach disse...

Uma das experiências mais absorventes que tive como espectador de qualquer coisa - provavelmente, um dos 3 grandes filmes da história do cinema se um dia viesse a ter que escolher.
Dreyer é gênio...

André Renato disse...

Concordo, concordo e concordo!