quarta-feira, julho 02, 2008

Conduta de Risco


Aqueles que se valem dos serviços de Michael Clayton acreditam que ele seja um “milagreiro”. Respeitáveis donas-de-casa, celebridades zelosas de suas imagens públicas, políticos que se pegam em “maus lençóis”, quem quer que tenha feito besteira – daquelas que não podem virar notícia – e que tenha um bom dinheiro a gastar, basta chamar o Sr. Clayton. Ele é o modelo do profissional eficiente, ou melhor, da própria eficiência em si, tal como ela é tão legitimada na sociedade da “qualidade total”. O problema é: será que o universo profissional está além de qualquer implicação ética ou moral? Em princípio não. Ou melhor, procura-se reduzir ao mínimo a pertinência dos efeitos morais de um trabalho profissional. Por mais que se fale em “responsabilidade social” das empresas, a ideologia dominante no mundo corporativo é aquela que diz respeito aos seus próprios interesses.

Mesmo assim, há trabalhos que são mais sujos do que outros. Michael Clayton, nesse sentido, é o “faxineiro” (ele mesmo se define como tal) que cuida dos casos mais cabeludos, daqueles que ninguém mais quer ou pode pegar. Por isso, ele possui uma ocupação essencial na firma de advocacia em que trabalha, mas não é sócio dela – isso seria um risco grande demais a se correr. Suas atribuições estão no limite da legalidade. Michael Clayton é o mal necessário, a amputação traumática que preservará o resto do corpo, o “agente secreto” sem carteira assinada, comprovante de pagamento ou seguro social, e que, se for capturado ou preso, estará por sua própria conta. Sua pessoa e suas atividades serão negadas pelos “contratantes”. Um James Bond do mundo corporativo. O charme de George Clooney contribui bem para essa imagem.

Apesar de tudo, Michael Clayton é um ser humano. É claro que ele não tem crise de consciência alguma em relação ao seu trabalho. Ele o abraça com a paixão desapaixonada do “homem-que-faz-o-que-é-preciso-ser-feito”. Mas possui um filho que reclama da falta de atenção do pai (como é praxe de acontecer com o perfeito profissional), um irmão policial que reclama da falta de atenção em relação à família, e outro irmão ao qual (esse sim) Michael dá uma atenção preocupada, mas mesmo assim, uma atenção “profissional”: ele se desdobre para levantar o dinheiro que pagará uma dívida do irmão “ovelha-negra” da família. Dívida que é também dele próprio: Michael Clayton é viciado em pôker. Enfim, assim a dimensão humana do personagem fica construída, com uma densidade considerável.

Apesar disso, Conduta de Risco não é um drama. É um “thriller”. E um suspense cujo tom e cuja linguagem adaptam-se muito bem ao universo retratado. O filme é exato, frio, contido, sempre zeloso da eficiência (estética, narrativa, dramática). Despojado de quaisquer elementos (sejam estilísticos, dramáticos ou narrativos) que não tenham uma ligação muito direta e profunda com a história e o efeito que ela procura provocar. E o que é melhor: é uma objetividade desinteressada. O filme trabalha com diversas questões sociais, algumas delas muito contemporâneas – como os crimes corporativos –, sem contar os limites éticos da cultura da profissionalização e da eficiência; mas sem adquirir ares alguns de filme “de tese”. Que cineastas brasileiros metidos a sociólogos aprendam. “Michael Clayton” é um filme de gênero, mas enriquecido de outras pertinências. Quem é que faz isso melhor do que os norte-americanos?

Alguém poderá objetar que o roteiro e a filmagem são muito esquematizados, calculados demais segundo as leis do gênero, sem dar abertura ao acaso e ao sem-sentido que existem na própria vida e no mundo como ele é. A fotografia é exata, a montagem é exata, e também são exatos os diálogos, a sucessão dos acontecimentos e o seu encaixe dramático-narrativo. Porém, neste caso, o “esquematismo” pode funcionar como uma função poética para expressar melhor o universo tematizado (talvez de um modo irônico até). A exatidão do filme aqui não é redutora. Pelo contrário, ela está a favor do conteúdo. Faz com que percebamos com maior gravidade a importância do que é mostrado, de uma maneira crítica, sem permitir que nossa atenção se desvie para uma catarse boba através de algum acento emocional relativo a um fato ou personagem.

O filme dá o seu recado e ponto. Nesse valor de exatidão, “Conduta de Risco” possui algumas cenas bem fortes e significativas. O homicídio de Arthur Edens (muito bem interpretado por tom Wilkinson, que concorreu a um Oscar) é mostrado com tal frieza e exatidão, que pensamos estar vendo médicos praticando uma “intervenção cirúrgica”. Aliás, os assassinos são profissionais quase inumanos, absolutamente serenos e racionais, mesmo quando as coisas saem dos trilhos. Outra cena de destaque (talvez a melhor, do ponto de vista cinematográfico) é a que mostra o depoimento de uma das vítimas da U-North (corporação criminosa), visto pelos advogados da companhia num pequeno aparelho de televisão. O depoimento da moça segue natural e tranqüilo, sem qualquer excitação emocional, quase que tímido.

Então, de repente, ouvimos (na mesma sala em que ocorre o depoimento) alguém gritar disparates, causando uma tremenda comoção em todos que estão ali. A câmera então (a que filma o depoimento) vira para o lado e pega o advogado Arthur Edens (que defendia a companhia) no meio de um “surto”, a tirar a roupa e gritar loucamente palavras de apoio à vítima. Da maneira como a vemos, parece uma cena de filme de terror, ou um daqueles vídeos absurdos que pipocam no Youtube. A cena final também possui bastante força expressiva: a câmera fica concentrada no rosto de George Clooney durante muito tempo, enquanto ele sai do prédio onde acabara de realizar o maior dos seus atos profissionais e o grande ato heróico de sua vida.

O olho da lente, que funciona aqui quase que como um cérebro, parece procurar adivinhar, ou mesmo captar os pensamentos do personagem: no começo, com uma expressão vazia e aturdida, calma e excitada ao mesmo tempo, como que não acreditando no que acabara de fazer, enquanto pega um táxi e diz ao condutor para levá-lo a qualquer lugar. Michael Clayton parece totalmente perdido dentro de si, a real (e gigantesca) dimensão da atitude que acabara de tomar ainda não lhe caiu. Finalmente, quando a ficha parece cair, ele esboça um leve sorriso. Tela negra. Fim do filme. É esse tipo de sutileza que dá graça para uma obra cinematográfica. Finalmente, parece que Michael Clayton se realizou com o seu trabalho “sujo” (porém, aqui, a sujeira foi feita com uma finalidade realmente positiva).

Finalmente ele parece ter alcançado aquele equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional, tão difícil em profissionais envolvidos assim com o “grand monde”. O mesmo equilíbrio que foi perguntado àquela que tem na U-North a mesma função que Clayton em sua firma, e que será sua nêmesis, Karen Crowder (Tilda Swinton, que ganhou um Oscar pelo papel). Também é rica a cena que mostra, em montagem paralela, o ensaio que ela faz do seu discurso, em casa e em frente ao espelho, e a execução de fato desse discurso na frente da câmera de entrevista. O equilíbrio que ela atinge é falso, artificial e sem significado. Ela é apenas uma profissional, no pior sentido do termo. Faz o que lhe mandam fazer, o que é preciso fazer em busca da eficiência corporativa. Quanto a Michael Clayton, no final das contas, ele será de fato milagreiro.

4 comentários:

Anônimo disse...

Adoro "Conduta de Risco", para mim foi um dos três melhores filmes do ano passado - só perdendo para "Ratatouille" e "Desejo e Reparação". O destaque não poderia ser outro, visto que o elenco beira a perfeição, sem falar na direção segura do estreante Tony Gilroy. Até mais!

ღ mey ♥¨`*•.¸¸.•*´¨♥ღ disse...

com clooney não tem erro. nunca vio um filme ruim dle

bjs

Anônimo disse...

Taú um filme bem interessante, cujos personagens são oq há d melhor, disparado. A história é boa, mas acaba seguindo camninhos um pouco manjados, inclusive em seu final. Mas Gilroy está de parabéns!

André Renato disse...

Alguns caminhos são típicos de "thrillers" com implicações políticas ou sociais, ou ainda típicos de filmes de "anti-herói". Mas Tony Gilroy os segue com classe e sutileza. Esse é o grande diferencial.

Agora, George Clooney é um daqueles atores / produtores / diretores "sábios" mesmo. Ele não se involve em projetos "bomba". Tem um faro muito bom.